Os baús abertos de dois gênios: Elza Soares e Letieres Leite

A cantora e o arranjador, que partiram recentemente, deixaram trabalhos inéditos. Dois deles chegam ao público neste mês de maio.

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Elza Soares sabia que estava se despedindo ao gravar seu último trabalho, em 17 e 18 de janeiro, dois dias antes de morrer. É no que acredita seu empresário (e agora gestor do legado da cantora), Pedro Loureiro, que aponta vários indícios deixados por ela em suas últimas horas. Algumas dessas pistas estão no álbum audiovisual Elza ao vivo no Municipal, no Theatro Municipal de São Paulo, gravado sem público no dia 17 e para uma plateia seleta de 50 espectadores no dia seguinte – Elza morreu no dia 20, aos 91 anos, de causas naturais.

Também deixou um álbum pronto o arranjador, músico e compositor baiano Letieres Leite, morto em outubro de 2021, aos 61 anos, por insuficiência respiratória causada pela Covid-19. Terceiro álbum de Letieres à frente da Orkestra Rumpilezz, Moacir de Todos os Santos, traz a obra do maestro pernambucano Moacir Santos (1926-2006). O trabalho de Elza está nas plataformas digitais de streaming desde o dia 13. O de Letieres, disponível desde o dia 19, sai também em LP de vinil.

“Como empresário da Elza, eu diria que não, que é impossível saber isso, mas como amigo digo que com certeza ela sabia”, afirma Loureiro, que trabalhou com a artista desde 2017, sobre a morte dois dias depois das gravações. “Os sinais foram muitos. Ela agiu de maneiras que não se comportava normalmente. Estava um pouco mais saudosista e mais analítica da vida. Duas vezes, ela me disse: ‘É, cara, eu construí uma história, hein?’ São coisas que não eram da Elza falar”, conta. Loureiro afirma que ela se despediu com pesar na volta de São Paulo para o Rio e respondeu com um “será?” à afirmação dele de que se reencontrariam no dia seguinte. “Elza não era disso. Na hora não entendi. Ela sabia. A gente ficava sempre de olho numa possível depressão senil, mas a única coisa estranha foi que não quis ouvir Chet Baker na fisioterapia, como sempre fazia. Quando passou mal, ela disse: ‘Eu estou indo embora’. Minutos depois, disse: ‘Eles chegaram’. A gente pensou que era a ambulância, mas não era”, lembra.

 

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Elza Soares, na gravação do álbum no Theatro Municipal de São Paulo, em janeiro passado Foto: Denise Ricardo

 

Produzido pela gravadora Deck com apoio do programa Natura Musical, Elza ao vivo no Municipal começa com a voz da cantora dizendo que a “maratona” de gravações “não foi fácil”, mas que está “muito feliz”. Acompanhada apenas por piano, ela canta no salão do Municipal, com voz fragilizada, “O meu guri”, composição de 1981 de Chico Buarque, que se tornou um hino em sua voz a partir de 1997. A seguir, já no palco ao lado da banda que funde rock, percussões de samba e pegada afrofuturista, emenda com “Dura na queda” (2002), também de Chico, composta para ela quando começou a enfrentar problemas de coluna que a impediram de andar nos últimos anos.

Um tom de saudade e despedida pode ser reconhecido no repertório de 15 músicas, selecionado pela cantora de modo a contemplar fases distintas de sua história. Estão ali o primeiro sucesso popular de Elza, “Se acaso você chegasse”, de 1959, e a bossa negra que ela formulou nos anos 1960, com “Balanço Zona Sul”. O lado MPB dos anos 1970 é representado pelo protesto “Comportamento geral”, de Gonzaguinha. Da fase sambista, ressurgem “Salve a mocidade”, que Elza transformou em hino informal da escola de samba Mocidade Independente em 1974, e o antológico samba paulista “Volta por cima” (1963), de Paulo Vanzolini. “Reconhece a queda e não desanima/ levanta, sacode a poeira e não desanima”, canta, no mesmo espírito de fênix de “Dura na queda”.

“Lata d’água” (2003) reaviva a memória dos anos iniciais, em que Elza viveu no planeta fome, como respondeu ao compositor e apresentador Ary Barroso quando ele perguntou, em seu show de calouros, de que planeta ela vinha. A esse imaginário pertence também “O morro”, de dona Ivone Lara, gravado por Elza em 1979 (e creditado erroneamente nas plataformas como de autoria de Tom Jobim). “A carne mais barata do mercado foi a carne negra. Foi, não é mais. A minha pele e a minha voz, escravizar jamais. Nunca mais”, diz Elza em depoimento que antecede “A carne”, do grupo Farofa Carioca, de Seu Jorge, tornada emblemática na voz da cantora a partir de 2002. Em comentário às mudanças dos últimos 20 anos na sociedade brasileira em relação ao racismo, ela canta trocando o verbo do presente para o passado, como vinha fazendo em anos recentes.

“Letieres estava no auge das forças. Mostrou uma obra incontornável na história da música brasileira e ia continuar fazendo isso, pois já estava cheio de ideias.”

A celebrada fase final, dos ásperos e densos álbuns A mulher do fim do mundo (2015) e Deus é mulher (2018), é representada por “Maria da Vila Matilde”, libelo antiviolência doméstica apoiado na Lei Maria da Penha, e “Mulher do fim do mundo”, que encerra o show cumprindo a profecia: “Eu quero cantar até o fim/ me deixem cantar até o fim”. Intercalados com as músicas, aparecem depoimentos recentes sobre ela de Chico Buarque, Carlinhos Brown, Sérgio Britto, Taís Araújo, Lázaro Ramos, Alcione, Caetano Veloso, Rita Lee, Regina Casé e Paulo Gustavo.

Letieres Leite, do axé ao afro-samba

Diferentemente de Elza, o maestro Letieres Leite não teve oportunidade de deixar uma obra autoral volumosa, apesar de ter atuado como diretor musical de centenas de discos de axé music nos anos 1990 e 2000 (foi o arranjador, por exemplo, de “Festa”, sucesso de Ivete Sangalo em 2001). Artista com formação musical erudita na Áustria, Letieres ergueu somente a partir do final da década de 2000 uma obra própria, à frente da Orkestra Rumpilezz, orientada pela fusão de instrumentos orquestrais tradicionais com forte percussão afro-baiana. Nessa formação, deixou apenas dois álbuns de composições próprias,
Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (2009) e A saga da travessia (2016). A partir do ocaso da indústria axé e da ascensão da Rumpilezz, Letieres fez trabalhos com artistas como Elza (na canção “Libertação”, de Russo Passapusso, da BaianaSystem), Maria Bethânia, Caetano Veloso, Lenine, Lucas Santtana, Mariana Aydar, Liniker e Zé Manoel, além de dois álbuns de jazz lançados em 2019, O enigma Lexeu, como Letieres Leite Quinteto, e Canção da cabra, com o Sylvio Fraga Quinteto.

 

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Letieres Leite, entre Pepê Monnerat (à esq.) e Sylvio Fraga, do selo Rocinante, que lança álbum póstumo do arranjadorFoto: João Atala

 

Na sequência desses dois últimos, lançados pelo selo carioca Rocinante, dos também economistas Sylvio Fraga e Pepê Monnerat, Letieres concretizou o projeto Moacir de Todos os Santos, de releitura do clássico álbum Coisas (1965), de Moacir Santos, pioneiro em elaborar música instrumental brasileira na confluência entre vanguarda erudita, jazz, bossa nova, samba-jazz, afrossamba e assim por diante. O disco de Moacir era formado por dez faixas denominadas “Coisa” e numeradas de 1 a 10, das quais a “Coisa Nº 5” se tornou a mais conhecida, ao ser gravada por Wilson Simonal com letra e sob o título “Nanã”. Igualmente vanguardista, a abordagem de Letieres torna mais explícita do que nunca a origem afrodescendente da música de Santos, ao combinar os naipes de sopros com os atabaques de candomblé (rum, rumpi e lé) e o timbal (protagonista da criação da Timbalada por Carlinhos Brown). A Orkestra Rumpilezz refaz sete das dez “Coisas”, inclusive “Coisa Nº 5 ‒ Nanã”, a única faixa cantada, por Caetano Veloso.

“Elza queria lançar esse disco antes das eleições. Dizia que a gente precisava mandar esse recado para essa turma.”

“Letieres é o padrinho musical da Rocinante. O primeiro disco que gravamos foi o do quinteto dele”, diz Fraga, cujo empreendimento, na contramão da virtualização da música, inclui estúdio próprio em Arararas (RJ) e uma fábrica de LPs que prensa álbuns físicos para a Universal Music e para artistas como Bethânia, Caetano, Sandy & Junior, Ana Frango Elétrico etc. A fábrica, segundo os sócios, é o que torna o negócio viável e sustentável e permite a gravação de trabalhos de Letieres Leite e outros artistas vistos pela indústria musical como não comerciais.

Moacir de Todos os Santos estava pronto quando Letieres morreu. “Ele acompanhou tudo até o final da mixagem. Faleceu uma semana antes de vir para Araras para ouvir”, explica Monnerat. “Letieres estava no auge das forças. Mostrou uma obra incontornável na história da música brasileira e ia continuar fazendo isso, pois já estava cheio de ideias. Tinha um problema respiratório e tomou as três doses da vacina, mas estava positivo para covid quando faleceu”, diz Fraga.

Mais inéditas vêm aí

Os lançamentos de Letieres e Elza não esvaziam os baús musicais desses artistas. A Rocinante, responsável pelo álbum com o encontro musical de João Donato e Jards Macalé, programa para o ano que vem a edição de um show inédito do Letieres Leite Quinteto em Londres. Elza, segundo seu empresário, deixou concluído um álbum de estúdio, sob o título No tempo da intolerância, que a Deck deve lançar em agosto próximo. Traz nove faixas inéditas, todas com assinatura de compositoras mulheres, inclusive cinco com letras compostas pela própria Elza e canções feitas especialmente para ela por Rita Lee e por Pitty.

“Elza queria lançar esse disco antes das eleições. Dizia que a gente precisava mandar esse recado para essa turma e que cada coração tocado seria um voto a menos para quem a gente não quer que seja eleito”, afirma Loureiro. Ele define o disco como “de amor, mas com mão pesada”: “Toca em assuntos como luta antirracista, luta contra violência doméstica e familiar, posicionamento político, contestação de padrões que a sociedade às vezes acha lindo e aplaude, um tapa na cara da sociedade”. Mesmo desfalcada de dois gênios, a música afro-brasileira segue em frente.