Há grupos dentro da sociedade que são alvos mais fáceis dentro das disputas de poder. Não porque sejam natural ou essencialmente mais frágeis ou piores, mas porque estão em lugares desvantajosos, marginalizados e marcados pela opressão.
A opressão não se resume a discurso, mas não há opressão que não passe pela palavra. Em geral, conhecemos expressões que são reconhecidas como agressivas. O palavrão, por exemplo, que dá a ideia de uma palavra em exagero, em excesso.
No dicionário das redes não se fala mais em palavrão, mas em palavras tóxicas, discurso tóxico, coisa que, como tem sido posta, estaria na base de relações tóxicas.
Mas o que faz de uma fala ou de uma palavra algo tóxico? Será a palavra em si? Sua origem, sua trajetória de uso, seu contexto? Será que isso muda conforme o lugar que quem fala ocupa nas dinâmicas de poder?
As mulheres, como certo recorte de gênero, têm sido alvos de discursos opressivos. Assim comos os negros, os indígenas, os que se identificam como lgbtqiapn+.
Uma palavra pode ser em si agressiva, pode ter nascido para expressar algo de agressivo, mas mesmo essas dependem de circunstâncias. E essas circunstâncias falam necessariamente de poder.
Num nível de exemplo comum. Certas palavras trocadas entre pessoas negras têm um significado interno a essas condições de troca. Se uma pessoa branca troca essas mesmas palavras com uma pessoa negra, o significado pode mudar. O que era elogio ou reconhecimento pode virar ofensa. Podemos pensar que certas palavras foram forjadas dentro da estrutura de poder dos brancos. Coube às pessoas negras revirá-las, retomá-las e criar novos sentidos de troca e reconhecimento. Retomar o poder do que havia sido criado para oprimir, incluindo a interdição de que brancos as usem.
Em uma relação semelhante, há termos que circulam de forma afetuosa na comunidade lgbtqiapn+, mas que são usados por hétero/cis preconceituosos como xingamento.
Dentro de uma relação entre gente que namora, é casada ou algo do tipo, o poder também muda a cara das palavras. Eu te amo pode ser uma expressão de amor, mas também pode ser uma facada. Uma pessoa pode usar essa frase, por exemplo, numa dinâmica de abuso para manter a outra pessoa sob o poder de seu discurso.
Vale dizer aqui que “abusivo” é necessariamente sobre concentração de poder. O abusador é aquele que detém o poder de manter as coisas como estão, de exercer poder sobre o outro de maneira desproporcional e, pelo próprio desequilíbrio de poder, abusiva.
Um abusador pode dizer: “Mas, meu amor, eu te amo e quero cuidar de você”, “você sabe que não é capaz de fazer isso e dá tanto trabalho, mas eu estou aqui pra resolver e por isso vou controlar sua conta”, “seus amigos só querem se aproveitar do seu coração, que é tão bom e não vê maldade, mas em mim você pode confiar”. Não há palavras notadamente agressivas, mas há violência e uma atitude que visa concentrar o poder sobre a vida do outro nas mãos do abusador.
Há violência, abuso e toxicidade, por exemplo, quando alguém diz que não há racismo no Brasil. Porque uma afirmação como essa só pode ser feita a partir da concentração de poder branca. Mesmo que eventualmente seja dita por uma pessoa negra. Nesse caso, inclusive, o que se revela é o altíssimo grau de violência e supremacia envolvido. Se uma pessoa negra não consegue uma vaga de emprego e percebe algo estranho, por exemplo, suas qualificações superiores às do contratado, algo fica no ar. O entrevistador então diz: “Ah, mas você não tinha o perfil que estávamos buscando”. Não há ataque direto, mas há violência e abuso de poder, racismo.
Isso não quer dizer que pessoas não brancas, pobres e/ou fora da identificação hétero-cis não possam ser mau-caráter ou escrotas com as demais. Quer dizer que, social, política e economicamente, elas não possuem esse poder. É por isso que não existe, entre outras bobagens, racismo reverso. O discurso que estabeleceu até mesmo a ideia que temos hoje, por exemplo, de brancos e negros, é branco e racista em sua gênese. As mudanças e conquistas nesse sentido só têm ocorrido por causa de muita luta e organização.
Embora um certo feminismo liberal tente separar as coisas, não existe nenhuma possibilidade de qualquer produção de mudança social a não ser que o feminismo considere também como suas as questões de classe e raça. Mulheres que se revoltam contra os gritos masculinos, mas os reproduzem com suas empregadas domésticas ou mesmo não questionam as condições de trabalho dessas mulheres, não trabalham pelo coletivo, mas apenas para tornar mais confortável a situação de uma certa elite e perpetuar desigualdades.
O politicamente correto que se escora em certos termos para tornar a opressão mais arrumadinha, para comer preconceito com taças e talheres refinados, não nos serve de nada. Uma discussão franca e politizada sobre discurso e violência é necessária.
Se os homens gritam e atacam até mesmo uma assistente de pesquisa virtual, como vocês lerão em uma das reportagens dessa ELLE View, é porque se sentem ocupando com propriedade certo lugar de poder. O irônico disso é que muitos dispositivos usam voz de mulher, mas capturam massas de dados para criar um tipo de concentração de poder inédita na história da humanidade.
As opções são confiar que o 1% mais rico, que já controla quase 40% de toda a grana do mundo, vá fazer mais do que esforços muito pontuais e restritos para melhorar a situação, o que inclui desmontar a própria estrutura que lhe garante poder, ou apostar que os outros 99% podem virar esse jogo e criar um mundo com distribuição mais igualitária de poder e, digamos, outras palavras.