Cadê meus amigos?

Com a mudança de algoritmo, as mídias sociais, tal como conhecemos, correm o risco de desaparecer. Será o fim de uma era?

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Ilustração @alexgyurkovicz

Talvez você não saiba, ou não lembre, mas, desde os anos 1990, o modelo das chamadas mídias sociais despontou no horizonte dos pixels, contrariando a sensação de que Mark Zuckerberg é o deus dessa ideia. No início, a possibilidade de teclar com outras pessoas distantes geograficamente de nós surgiu no formato de bate-papo e Messenger – alô, AOL, obrigada.

Logo depois, vieram redes mais parecidas com as que frequentamos hoje, Classmates e Friendster, entre elas. E foi só na viradinha do milênio que nos rendemos totalmente à possibilidade de: 1) encontrar amigos reais online, 2) fazer novos amigos e 3) espiar a vida alheia, como em um grande show de Truman, sendo Truman qualquer pessoa ligada a nós por um algoritmo, pela inteligência artificial.

Dessa safra, recordar é viver, o Orkut foi memorável. Lançado em 2004 pelo engenheiro de software turco Orkut Büyükkökten, que felizmente batizou a rede com nome, não com o impronunciável sobrenome, ele conquistou as terras tupiniquins – os brasileiros disputavam o controle mundial com os indianos, deixando os estadunidenses pra trás. Em 2008, éramos 40 milhões de usuários no país, eu incluída.

E arrisco dizer que a decadência do Orkut começou por um detalhe pequeno, mas significante para quem era fã da plataforma: a IA começou a dedurar quem entrava na página alheia, a mostrar para o crush (na época chamávamos assim) que você estava stalkeando a vida dele.

Claro, não foi só isso que fez a plataforma naufragar, até ser oficialmente fechada pelo Google. No mesmo ano de nascimento do Orkut, 2004, Mark Zuckerberg, agora sim, programava o The Facebook dentro de um campus bem elitista, o de Harvard, nos Estados Unidos. Ligava os estudantes Ivy League em uma seleta e exclusiva rede friends and family. O embrião do social graph.

Dois anos depois, boom! O Facebook perdeu o The, saiu de Harvard e fez o que o Orkut nunca conseguiu: conectou pessoas de diferentes regiões, agindo globalmente e não localmente, dentro de um mesmo país. Resultado: engoliu, pouco a pouco, qualquer concorrente, transformou o mercado publicitário ao coletar uma quantidade massiva de dados, mudou a comunicação e passou a interferir até na política, com direito a escândalos envolvendo possíveis manipulações eleitorais. Virou uma espécie de Olho de Sauron, o olho que tudo vê, tudo sabe, com mais de um terço da população mundial atualmente alimentando essa máquina. Embora venha perdendo aderência nas gerações mais novas, virando “coisa de velho”, ainda são 2,9 bilhões de usuários ativos.

E ainda temos que adicionar Twitter e Instagram nessa história, afinal, eles são outros dois gigantes devotos do social graph popularizado pelo Face: o algoritmo capaz de unir pessoas por afinidades, “brodagem” ou admiração. Segue que eu te sigo de volta.

Corta, próximo capítulo, segunda década dos 2000, tic-toc.

Criado pela companhia de tecnologia chinesa ByteDance, o TikTok foi lançado na China em 2016 e ganhou os Estados Unidos em 2018, quando se tornou o aplicativo mais baixado por lá, para infelicidade do então presidente, Donald Trump, que ameaçou banir o programa chinês e colocar mais lenha na fogueira da “guerra fria” com a China. Não conseguiu.

O sucesso da plataforma, um mix de trechos de músicas que grudam na cabeça e dancinhas executadas por completos estranhos, que a princípio foram vistas com desconfiança pelos mais céticos, evoluiu para diferentes tipos de conteúdos, de lancheiras fofas a entrevistas, de maquiagens a sessões nostalgia com looks dos anos 1990. E pôde ser mensurado em números: em 2021, ele ultrapassou os 3 bilhões de downloads. E, no primeiro trimestre deste ano, segue na dianteira da App Store e Google Play.

Tiro, bomba, reboliço – felizmente, metafóricos.

Com a ascensão meteórica do TikTok, Zuckerberg e cia., a.k.a. acionistas, começaram a vislumbrar a queda de um império, de um modelo de operação fincado agora no algoritmo “errado”, o social graph. As ações da Meta, que engloba Facebook e Instagram, caíram 50% desde o início de 2022, mais do que o suficiente para despertar mudanças – que, segundo Ronaldo Lemos, advogado especialista em tecnologia e professor da universidade de Columbia (EUA) e do Schwarzman College (Pequin), são inevitáveis, a despeito da gritaria generalizada.

Sim, nas últimas semanas, não faltaram manifestações contra a tentativa de o Instagram (#makeinstagraminstragamagain) se transformar numa versão do TikTok. Reels se sobrepondo a fotos e, o mais importante, um feed controlado por uma IA que não leva em conta quem você segue/quer espiar. Um ponto final nas mídias sociais, tal qual as conhecemos.

As mudanças são inevitáveis. O protesto pode atrasar a implementação, o Instagram pode levar um tempo para afinar os seus algoritmos , mas ela acontecerá.

E, agora, Ronaldo, a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu?

O que podemos esperar pela frente? Confira a entrevista.

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Reprodução

Em 2008, o Facebook já tinha 100 milhões de usuários ativos e passou a dominar o mundo como a mídia social em que você encontra seus amigos, inclusive os “perdidos”, e se atualiza sobre a vida deles – além de participar de grupos e ficar em contato com pessoas que se parecem com você, a chamada bolha. Essa bola furou? O que tem acontecido com a plataforma?

Não furou, mas está furando. Facebook, Twitter, Instagram e outras redes são baseadas no chamado “social graph”, o mapa dos seus relacionamentos. Quem você segue e quem decide seguir você. A premissa é que você escolheu aquelas pessoas porque se interessa pelo conteúdo e até pela vida delas. No entanto, o TikTok rompeu com esse modelo. Mostrou que o social graph pode ser um limitador para as plataformas e se livrou dele. Ele passou a entregar o conteúdo principalmente baseado na medição das preferências subjetivas dos usuários, independentemente de quem você segue ou não. Isso mudou o jogo e está provocando um terremoto nas mídias sociais.

Como usuária do Instagram e do TikTok, o que sinto é uma espécie de cansaço do Insta, uma sensação de que as pessoas que sigo sempre falam/mostram as mesmas coisas, enquanto o TikTok parece me surpreender. Essa sensação faz sentido?

Faz todo o sentido. Você acabou de descrever o xis da questão. O TikTok já mapeou exatamente o que você pensa e o que te interessa. Ele não se prende às pessoas que você escolheu seguir para entregar o conteúdo que ele entende que melhor atende ao que você quer ver. Ao fazer isso, o TikTok ganhou você e a sua atenção. No Instagram você ainda está presa aos seus amigos. Em breve você estará sozinha no TikTok ou nos modelos sem o social graph, mas essa solidão será compensada por um monte de conteúdo divertido, que vai ser colocado na frente dos seus olhos.

O que isso impacta na sociedade, nos nossos hábitos e até na publicidade?

Em um mundo em que as instituições coletivas são cada vez mais fracas, o social graph era um dos únicos resquícios de uma ideia de “comunidade” online. Com a superação desse modelo, vai haver uma exacerbação do individualismo, da atomização. Vai ser cada um por si e os laços sociais online vão ser cada vez mais irrelevantes, ao menos nas grandes plataformas que deixarem o social graph de lado.

Para marcas e empresas de comunicação, vai ser possível pensar em clusters, por exemplo, no caso de conteúdos impulsionados?

A publicidade vai continuar, pois ela ainda será a principal fonte de receita das plataformas. Será um dos poucos jeitos de furar a lógica do algoritmo. Quem tem dinheiro poderá fazer com que seu conteúdo seja distribuído para públicos que não necessariamente teriam acesso a ele pelos parâmetros normais.

Muita gente tem reclamado dessa provável mudança de algoritmo, desse feed onde não aparece exatamente quem você segue. Vendo o lado positivo, isso não seria uma boa chance para evitar, por exemplo, as polarizações políticas? A tendência de só se comunicar com quem pensa como a gente?

De jeito nenhum. Essa mudança não resolve o problema da polarização. Pelo contrário, exacerba essa questão. Com a diluição da sua comunidade de interesse, que você acompanha justamente por causa da proximidade, a tendência é um conteúdo que vai precisar ser cada vez mais radical para conseguir chamar a atenção. Como você vai estar recebendo conteúdos de pessoas que nem sabe quem são, esse conteúdo tem de ser ou cada vez mais apelativo ou cada vez mais nichado, ou cada vez mais caro de ser produzido. Isso vai agravar o problema do debate público online.

O TikTok parece mesmo ser o principal responsável por essas mudanças, essas tentativas do Instagram, do Facebook, de mudar a interface e privilegiar, por exemplo, vídeos curtos. Mas o TikTok não é uma plataforma de entretenimento, diferente das mídias sociais?

O TikTok não é uma plataforma de entretenimento. Ele é uma inteligência artificial em torno da qual foi construída uma plataforma. Essa inteligência artificial foi parametrizada para otimizar determinadas funções, no caso, a retenção ao máximo da atenção de cada usuário, baseada na coleta cada vez mais precisa dos padrões de uso e resposta de cada pessoa. A partir daí ele é muitas outras coisas, inclusive entretenimento. Mas na essência ele é uma máquina de coletar dados e capturar atenção.


BeReal – Just your Friends, for Real.

A GeraçãoZ tem se colocado contra esses conteúdos perfeitos do Instagram, por exemplo, e adotado redes como o BeReal. O quanto o usuário impacta no possível fim das big techs, desses monopólios que emergiram nos últimos anos?

O mercado de Big Techs está passando por uma fase de transição. O BeReal é interessante, tem capacidade de crescer. Mas também é facilmente copiável. É possível que o próprio Instagram integre uma funcionalidade parecida com o BeReal e com isso tem chances de matar a plataforma antes que ela decole.

Falando nisso, o Instagram voltou atrás depois de muitas manifestações, inclusive das Kardashians, contra as mudanças anunciadas. Você acha que a tendência é eles continuarem ouvindo os usuários ou as mudanças são inevitáveis?

As mudanças são inevitáveis. O protesto pode atrasar a implementação, o Instagram pode levar um tempo para afinar os seus algoritmos para que sejam mais satisfatórios para os usuários quando a mudança for feita, mas ela acontecerá.

A comunicação tem mudado drasticamente desde a implementação das mídias sociais e vimos novas profissões aparecerem, como blogueiras e depois influencers, críticos e analistas de todos os assuntos. Todos muito dependentes das plataformas. Como fica esse mercado de trabalho a partir de agora?

Dá até certa pena de quem vive de redes sociais. Essas mudanças podem sacudir completamente a forma como muita gente se acostumou a trabalhar online. De repente, a estabilidade que você construiu nas suas contas pode desaparecer. Seu conteúdo pode se tornar irrelevante ou sem alcance do dia para a noite. A verdade é que os criadores estão totalmente à mercê da forma como as plataformas vão organizar seus algoritmos. Nessas mudanças, haverá perdedores e alguns ganhadores.

Como você vai receber conteúdos de pessoas que nem sabe quem são, esse conteúdo tem de ser ou cada vez mais apelativo ou cada vez mais nichado.

Você escreveu na sua coluna da Folha de S. Paulo que vem aí o triunfo do algoritmo onipresente e onisciente. Nesse cenário, nossos dados ficarão mais expostos de alguma forma, mesmo com a Lei de Proteção de Dados? Devemos nos preocupar?

Os dados já estão expostos. A LGPD é uma lei necessária no sentido de criar uma espécie de “Código de Defesa do Consumidor” com relação aos dados pessoais. Mas o normal no mundo de hoje é a coleta e análise detalhada dos dados de cada pessoa.

Por fim, o 5G vai ter algum papel nessas mudanças?

Sim, o 5G permite novos tipos de aplicações, de comunicações instantâneas, de tráfego, de vídeo e outras possibilidades. Assim como o Uber só foi possível de ser inventado por causa do 4G, o 5G permitirá a criação de aplicações que ainda não conhecemos atualmente.