“Vou usar minha plataforma e todas as outras que puder para levantar e dizer: Quero fazer algo. Quero fazer a próxima Ralph Lauren.” O autor dessa frase é polêmico. É também uma das pessoas mais influentes do mercado de moda atual. Seu nome é Kanye West, ou só Ye, como prefere ser chamado.
Ame-o ou odeie-o, poucas figuras da cultura pop contemporânea dividem tantas opiniões como o rapper, ganhador de 21 Grammys. As controvérsias são várias – vão de candidaturas frustradas à presidência dos Estados Unidos, apoio ao ex-presidente Donald Trump e atitudes misóginas a discursos calorosos sobre assuntos problemáticos nas redes sociais. Ainda assim, é inegável o poder de influência do artista – e na moda principalmente.
Desde sua ascensão na cultura pop, Ye sempre se mostrou determinado a alcançar objetivos históricos para além da música e a transformar o cenário fashion. Aliás, esse traço ambicioso de personalidade fica explícito em seu documentário recente de três episódios para a Netflix,
Jeen-Yuhs: A Kanye trilogy.
Ye e sua mãe, Donda.Foto: Divulgação | Netflix
Do começo…
Sua saga na indústria da moda tem início em 2004, com o lançamento do álbum de estreia
College dropout. Como um touro em uma loja de porcelanas, o MC de Chicago desafiou o status quo ao adotar um look preppy, totalmente na contramão do que rappers usavam à época. Enquanto Jay-Z vestia camisetas esportivas oversized, calças ultralargas e sneakers, Kanye preferiu o estilo clássico de certa parcela da elite dos EUA. No clipe “All falls down“, faixa que se tornou um de seus maiores hits, ele aparece com uma camisa Ralph Lauren rosa por baixo de um blazer de veludo marrom. “Serei um dos rappers mais bem vestidos do cenário”, disse ele em entrevista ao programa de televisão Def poetry jam, em 2003.
Após o sucesso meteórico daquele primeiro álbum, Ye fez sua investida oficial na moda em 2007. Mais especificamente, no universo dos sneakers, segmento que mais tarde o consagraria como uma das principais referências na área. Em colaboração com a marca japonesa de streetwear A Bathing Ape, do designer Nigo, o rapper desenhou uma versão própria do modelo Bapesta, com estampa do mascote Dropout Bear, o ursinho de pelúcia que aparece nos álbuns
College dropout, Late registration e Graduation.
Nesse último disco, aliás, o rapper homenageou a etiqueta do amigo em versos e anunciou seu próximo passo como designer: sua própria linha de roupas, chamada Pastelle. No clipe de
Stronger, provou a capacidade de transformar em ouro tudo aquilo que toca após usar os icônicos óculos persiana, que não demoraram muito para virar febre nas ruas.
Com a ajuda criativa de figuras notáveis da indústria da moda, como os designers Virgil Abloh e Kim Jones (então diretor artístico da linha masculina da Louis Vuitton), Ye pretendia lançar sua Pastelle em 2009. No entanto, após o episódio polêmico de interrupção do discurso de Taylor Swift, durante a premiação do VMA daquele ano, e a morte de sua mãe, Donda, a marca nunca chegou a ver a luz do dia.
Paralelamente, naquele mesmo ano, Kanye retornou ao mundo dos calçados para fincar de vez os dois pés criativos na área: em parceria com a Louis Vuitton, lançou três modelos de tênis e assinou contrato com a Nike para a criação do Air Yeezy. O tênis vinha em três cores e se esgotou em instantes. Em 2021, um protótipo do modelo usado pelo rapper durante sua apresentação na premiação do Grammy de 2008 foi vendido pela casa de leilões Sotheby’s por 1,8 milhão dólares, quebrando o recorde do tênis mais caro do mundo.
Em 2009, mais moda: Ye estagiou na Fendi ao lado de Virgil. Segundo o
The New York Times, a dupla ganhava 500 dólares por mês para enviar recados e servir café. “Nós estagiamos na Fendi, mas não fizemos merda nenhuma. Não pudemos fazer nada, mas ficamos felizes por ter um crachá”, contou no programa de rádio The Breakfast Club, em 2013. “Não conseguimos descobrir como fazer as roupas, então fazíamos no Photoshop. Virgil se tornou o artista de Photoshop mais rápido que já conheci”, acrescentou.
A experiência também serviu para baixar a poeira pós-VMA. Em outubro de 2011, o rapper/designer ressurgiu para lançar a linha feminina
Dw by Kanye West, em homenagem à sua mãe, durante a semana de moda de Paris. O desfile mostrou roupas com estampas animais, calças de couro skinny e abundância de casacos de pele. Mas não agradou – os críticos destacaram o caimento inadequado das peças e alegaram que Ye estava “se esforçando demais”. “Na próxima temporada, Kanye deve arranjar um alfaiate para que as roupas caibam nas modelos”, escreveu a jornalista Cathy Horyn, à época crítica de moda do The New York Times. Sem o apoio financeiro de uma grande firma, o rapper fechou as portas da marca após produzir sua segunda coleção.
Nos anos seguintes, fez da moda um tema recorrente em letras e um componente-chave de suas turnês, principalmente por meio de colaborações com pesos-pesados do business. Para o projeto
My beautiful dark twisted fantasy, ele introduziu aos adolescentes o designer Phillip Lim, responsável pela assinatura do figurino da obra. Na turnê de Watch the throne, álbum colaborativo com Jay-Z, foi a vez de Riccardo Tisci, então diretor criativo da Givenchy, elaborar todo o guarda-roupa para as apresentações da dupla – incluindo as saias de couro e a icônica camiseta com estampa de Rottweiler, que dominou o armário de estrelas do streetstyle e de fashionistas ao redor do mundo.
Em 2014, a relação de Ye com a moda foi catalisada. Além de experimentar o sucesso estratosférico da linha de merchandise da turnê de
Yeezus, assinada pelo artista Wes Lang, o rapper desenvolveu outro look para seus shows ao vivo. Dessa vez, se uniu a Maison Martin Margiela, que forneceu uma série de figurinos customizados, como jaquetas bomber, casacos oversized e as clássicas máscaras de diamantes.
Não à toa, no mesmo ano Ye foi eleito pelos leitores da revista GQ o homem mais estiloso do mundo. E de fato ele definiu a estética da moda masculina à época, com o look de botas Chelsea Common Projects, jaqueta bomber de veludo Haider Ackermann e calças skinny da A.P.C., marca de jeans francesa com quem teve a oportunidade de lançar uma coleção em 2013.
Da esq. para dir., Riccardo Tisci e Ye, Virgil Abloh e Ye, Ye e Jay-Z.Fotos: Reprodução
Nasce um império
Após alegar falta de domínio criativo e o não pagamento de royalties sobre as vendas dos tênis Air Yeezy, Kanye encerrou o contrato com a Nike em 2013. “Há uma razão pela qual fui o único rapper autorizado a projetar um tênis com a Nike”, afirmou em entrevista à rádio BBC One. “O que significa que deve haver outro passo. Tem que ter uma continuidade. As pessoas não amavam os Yeezys do jeito que amavam sem motivo”, continuou.
Dito e feito. O passo seguinte do rapper veio em forma de uma nova parceria, agora com a Adidas. A marca das três listras concordou em oferecer os royalties, além de 100% de propriedade sob sua etiqueta, a Yeezy, e o controle total do processo criativo dos produtos. Em 2015, dois anos após o anúncio do projeto, a colaboração foi lançada oficialmente com a coleção
Yeezy Season 1, apresentada durante a semana de moda de Nova York.
E a linha de
ready-to-wear serviu para sinalizar uma mudança no visual do artista. Até então, Ye teve sua carreira pautada por certo estilo maximalista ou nem tão discreto. Agora, sua abordagem vinha mais minimalista e funcional, com roupas oversized, elementos utilitários e tons terrosos. Para ajudar na direção do desfile de estreia, o rapper convidou a artista performática Vanessa Beecroft (responsável também pelo icônico videoclipe de Runway, de 2010), que construiu uma espécie de quadro vivo na passarela, com modelos imóveis e quase sem expressão.
Resultado: a coleção não só foi um sucesso entre os críticos, como também um marco para o nome Yeezy. Pela primeira vez, a marca apresentou o sneaker de cano alto, Yeezy Boost 750, e o de cano baixo, Yeezy Boost 350, sendo esse último a silhueta que definiu a década no universo streetwear, se tornando um dos itens mais requisitados por sneakerheads graças ao sistema de lançamento limitadíssimo, à construção tecnológica e à associação a um dos nomes mais influentes do
streetstyle, o próprio Kanye West.
Atualmente, o segmento de calçados é o motor que mantém a colaboração pulsando. Os números mostram que o império construído por Ye continua mais sólido do que nunca: apesar da pandemia, as vendas da parceria se mantiveram resilientes e chegaram à receita anual de 1,7 bilhão de dólares em 2020, segundo a Bloomberg. O crescimento é de 31% em relação ao ano anterior e rendeu à Yeezy 191 milhões de dólares em royalties.
Com isso, ele cumpriu um papel vital para a etiqueta esportiva. Mais do que números positivos, a parceria ofereceu relevância cultural e aumentou a credibilidade da Adidas junto a consumidores das novas gerações, motivos pelos quais outra gigante do vestuário procurou a Yeezy para um projeto colaborativo recente. Em 2020, a Gap fechou contrato de dez anos com a marca de Ye para tentar ressuscitar e retomar seu papel de destaque na moda. Desde o anúncio da parceria, a varejista estadunidense tem lutado para se manter de pé após queda de 18% nas vendas gerais e o fechamento de mais de 225 lojas. Com a chegada da Yeezy, a Gap esperava atingir a marca de 1 bilhão de dólares em receita anual. Mas, até os 18 primeiros meses da colaboração, apenas dois itens foram vendidos online: uma jaqueta puffer e um moletom (ambos esgotados em instantes).
Foi só neste ano que a dobradinha ganhou volume, quando Ye integrou um velho conhecido ao projeto: o designer e diretor criativo da Balenciaga, Demna Gvasalia, ou apenas Demna, como prefere ser chamado agora. Batizada
Yeezy Gap Engineered by Balenciaga, a união entre as três entidades apresentou uma coleção de 25 looks, com modelos de rostos cobertos vestindo roupas predominantemente pretas, de silhuetas exageradas e repletas de elementos da moda de rua. “Ye me ligou em março de 2021, dizendo que estava nesse projeto e que era seu sonho eu trabalhar junto com ele”, contou Demna ao The New York Times. “Ele disse que é isto o que ele precisava: trazer esse know-how para a marca, a estrutura, provas, ateliê, modelista.”
A relação entre Ye e Demna não é nova. O designer georgiano se tornou uma das mais importantes figuras da moda na última década por meio do seu trabalho na Balenciaga e na Vetements, sua própria marca, hoje dirigida pelo irmão Gurum Gvasalia. Dada a capacidade única de identificar talentos emergentes, como Virgil Abloh e Jerry Lorenzo, Ye logo recrutou o estilista para ajudar a desenhar a
Yeezy Season 1, em 2015. A partir de então, a dupla passou a trabalhar em projetos menores, como a criação das roupas de Halloween da Balenciaga, em 2020, e o merchandise de tributo ao falecido rapper DMX. No ano passado, o primeiro grande projeto do duo veio a público: Demna assumiu a direção criativa dos eventos de audição do décimo álbum de estúdio de Kanye, Donda, onde também elaborou a linha de merchandise e forneceu figurinos da Balenciaga, como a jaqueta de espinhos da coleção de inverno 2020 e o vestido de noiva de alta-costura usado pela ex-esposa do rapper, Kim Kardashian.
À esq., Ye com saia Givenchy. No centro, acima, tênis Yeezy x Adidas e, abaixo, desfile da Yeezy na NYFW. Ao lado, Demna e Ye e casaco Yeezy X GAP. À dir., Ye com máscara Maison Margiela.Foto: Reprodução e Getty Images
Um caso de amor, influência e estilo
Falar da influência de Ye na moda é também falar da sua ex-esposa, a empresária e socialite Kim Kardashian, com quem foi casado por oito anos e teve quatro filhos. Durante o relacionamento, o rapper desempenhou um papel de destaque na transformação do estilo pessoal da fundadora da Skims. Isso porque existem duas imagens de Kim: a pré e a pós-Kanye.
A primeira é dos anos 2000, quando ela ficou conhecida como a melhor amiga de Paris Hilton. Naquela época, o visual de Kim era bem chamativo e característico da virada do milênio: calças de cintura baixa e looks exagerados, cheios de brilho e cores vibrantes. Foi nesse período que a empresária e Ye se conheceram. Oito anos depois, em 2008, viraram amigos e o namoro engatou em 2011, dando início à transformação dela.
Durante um dos episódios da sétima temporada do reality show
Keeping up with the Kardashians, Kanye, ao lado da stylist Renelou Pandora, se desfez de boa parte do armário de Kim para dar lugar a uma infinidade de araras repletas das peças mais sofisticadas e requisitadas naquele momento: blazers Celine, vestidos Balmain, saias lápis da Lanvin e looks poderosos de Riccardo Tisci para Givenchy. “Kanye definitivamente me inspirou a ser um pouco mais individual. Meu estilo está mudando e acho que realmente deveria”, disse Kim no episódio.
Em seguida, veio a era Yeezy. Nas campanhas de divulgação da marca, Ye aproveitou a fama dos cliques de
streetstyle de sua esposa para transformá-la na principal musa da etiqueta. Junto de sua assistente, a empresária viajava para algum lugar do mundo, onde chamavam paparazzi e fotografavam uma variedade de looks Yeezy pelas ruas durante o dia. Horas depois, as imagens “espontâneas” viralizavam em sites e perfis de redes sociais. De seguidora de tendências, Kim passou a defini-las.
Anos mais tarde,
quando o casamento começou a entrar em crise, o guarda-roupa da Kim também passou a dar sinais de cansaço do visual minimalista em tons neutros. Foi quando a influenciadora e empresária mergulhou na moda vintage e desenvolveu relação próxima com estilistas lendários dos anos 1980 e 90, como Vivienne Westwood e Thierry Mugler.
Atualmente, assim como Ye, ela também se uniu a Demna após o divórcio, e no início deste ano, se tornou um dos principais rostos da Balenciaga. Nas redes sociais, o debate sobre a possibilidade de a grife espanhola ter “patrocinado” de maneira não oficial a separação do casal colocou a etiqueta ainda mais em evidência.
Fato é que a influência de Ye também reside no buzz marketing, estratégia focada em gerar conversas, comentários e barulho sobre sua marca, produto, serviço e si próprio. No caso do rapper, essa habilidade é somada a um olhar artístico e sensível em suas criações, que frequentemente promovem a sinergia entre moda, música, arte, estilo e design.
Ao longo de sua carreira, ele se mostrou um visionário capaz de mudar a maneira como enxergamos e consumimos moda.
Na moda, Ye faz com que ela seja instrumento de visibilidade para pessoas que compartilham dos mesmos interesses e antes não se sentiam representadas por grandes grifes. “Há uma garotada nas ruas que esperava por alguém para falar por eles e é isso que eu vou fazer. Eu sou o Robin Hood da moda”, disse ao extinto site Style.com. É exatamente sob essa perspectiva democrática, racial e disruptiva que ele continua a impactar o setor e subverter suas normas.
Seja como estagiário na Fendi, seja como dono de uma das marcas mais requisitadas do mundo, é indiscutível a influência de Kanye West para além do microfone. Ao longo de sua carreira, ele se mostrou um visionário capaz de mudar a maneira como enxergamos e consumimos moda. Ye também provou não se contentar com migalhas, nem rótulos. Ele quer colaborar com talentos emergentes, artistas visuais, arquitetos, usar óculos persiana, ser a próxima Ralph Lauren e fazer coisas que outros rappers nunca nem imaginariam. Mais importante, continua a se desafiar e a quebrar nossas expectativas. Um homem que se move com o tempo e nos leva adiante com ele.
Da esq. para dir., Kim Kardashian com look Mugler, no seu casamento, com look Balenciaga rosa e preto e com conjunto Yeezy.Fotos: Getty Images