Ponto de interrogação

Sobre as responsabilidades da influência.

 

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Essa coisa de ser influenciadora virou um grande sonho de consumo. Sonho e consumo não combinam por excelência, são de naturezas diferentes, embora o vocabulário comercial insista no contrário. E isso ajuda a entender muita coisa.

Pessoas gostam de coisas, compram coisas, querem coisas. Isso sempre existiu e assim, digo sem risco, seguirá. Porém a forma como esses processos acontecem é que pode variar – de fato varia, e deveria ser radicalmente modificada.

Uma influenciadora dos nossos tempos, por exemplo. Ela pode anunciar coisas, produtos variados. Pode fazer as vezes de modelo, de promoter, de outras palavras que foram sendo substituídas no mercado. Há a dimensão do consumo, e há no consumo algo que se dá bem com esse ciclo de querer, comprar, querer outra coisa, comprar, querer etc. Mas nem tudo na vida cabe nesse esquema. Mesmo quando tudo está organizado para que caiba, continua não cabendo. E essa insistência em fazer apertar à força tem muitas e más consequências.

A uma influenciadora, nesse sentido, cabe responsabilidade. A principal é a de dizer algo do mundo em que vive. E, de um jeito ou de outro, elas dizem. Mas seria legal se tomassem consciência daquilo que fazem, de como participam da coisa toda.

Vender luxo em um mundo em crise não é novidade. Há sempre afinal uma elite interessada. Mas a questão é também outra, bem mais importante. Vender a ideia de que há um mundo de maravilhas que exclui a miséria, onde a miséria não existe porque simplesmente não importa. Isso é bem mais grave.

Como na tirinha do cachorro que toma um café e diz “está tudo bem”, enquanto o entorno está em chamas. Como se ele jamais fosse ser atingido. Ele está em negação? O que se passa, afinal?

Pessoas não deixam de desejar coisas boas ou bonitas mesmo nos piores cenários. Mas não caberia a todas as pessoas que se autointitulam influenciadoras um pingo de solidariedade? Não no sentido da caridade, mas do diálogo mais sincero. De influenciar seus seguidores a sonhar não só com um bunker-unicórnio, dentro do qual toda manhã é de sol em Paris com café deluxe na sacada panorâmica, mas com um outro mundo para todos.

O problema não é sonhar com coisas bonitas, looks elegantes e viagens bacanas, mas naturalizar que, enquanto alguns poucos podem viver esses prazeres, outros sejam fixados como parte integrante de uma miséria que só pode ser mudada a partir de um golpe de sorte ou de uma meritocracia de mentira.

Quem tem voz pode falar, mas será que pode escolher livremente o que dizer? Será que os algoritmos e empresas recompensam influenciadores que adotam posturas mais solidárias ou premiam o delírio egoísta?

Existe uma ideia de que os algoritmos só refletem os hábitos e posições dos usuários. Porém essa ideia é falsa. Os algoritmos das redes comprovadamente criam hábitos e posições, têm papel fundamental em como elas se consolidam. Um exemplo clássico são as pessoas que se irritam com influenciadores, designers e artistas que assumem falas políticas, mesmo que não partidárias. Essas pessoas foram ensinadas que as coisas não se misturam. Ora, as coisas são misturadas desde sempre, porque a vida é social, porque a vida é vida com outros, entre outros, e nada escapa a esse fato.

Há muita concentração desse debate em tempos de eleição, mas ele é necessário fora desses picos, no dia a dia mesmo.

Por exemplo, há muitos perfis de blogueiros e influenciadores, mas parece que a maioria deles pensa e deseja dentro dos limites do mundo como está agora. As mudanças propostas são sempre pontuais, nunca radicais, nunca ultrapassando um certo teto. Qualquer ousadia fora do script é reprimida.

Mesmo a ideia da “inclusão” quer negar o potencial bombástico da mudança de lugar social das chamadas minorias em nome de uma acomodação tranquilinha, sem cutucar as margens, mexendo o mínimo possível com as bases. E aqui não estou nem falando em termos de militância organizada nem de nada parecido. Estou falando de sonhos mesmo.

Parece que todo mundo sonha e deseja igual, dentro dos mesmos padrões, com diferenças cosméticas. Ou seja, não se trata de dizer “sejam mais realistas”. Pelo contrário. Trata-se de apontar como é problemático que fantasias, sonhos e desejos sejam tão pasteurizados, padrãozinho, encaixadinhos, sempre a favor da manutenção do sistema que os gera e alimenta.

Se o sonho não combina com isso, assim como o desejo está sempre além dos limites de sua realização consumista, o que vemos por aí é o sonho no cabresto e o desejo sem acesso a seu potencial sonhador, um sonho sem criatividade.

Fico pensando que, mais do que entrar no infinito ciclo de criticar o mundinho influencer, talvez fosse legal imaginar a blogueirinha do novo mundo. Como será que ela seria? Mas pra isso temos de nos arriscar a sonhar um outro mundo e não enfiar mais uma antiga novidade nos moldes desse aqui e chamar isso de mudança.

Será que no mundo da influência é proibido repensar utopias e sonhar o impossível? A quem interessa bloquear esse potencial, especialmente para as novas gerações?