No dia 9 de maio deste ano, a maquiadora e influenciadora britânica radicada em Nova York Meredith Duxbury decidiu publicar em seu perfil no TikTok um vídeo em que ela testava o What The Foundation, um hidratante com cor da Jones Road. Quem a segue por lá sabe que ela sempre aplica uma quantidade propositalmente exagerada de base no rosto e é fã de um visual mais carregado, com alta cobertura. Sua “marca registrada” é mergulhar as pontas dos dedos nos produtos e logo na sequência espalhar todo aquele conteúdo pelo rosto. O vídeo em questão, contudo, culmina em uma maquiagem desastrosa, uma vez que o WTFoundation não foi feito para ser usado dessa forma. O que surpreende, no entanto, é o fato de que a tal catástrofe angariou mais de 16,6 milhões de visualizações. Antes disso, as publicações de Meredith na plataforma tinham uma repercussão que girava em torno de 1 ou 2 milhões de plays. Ou seja, o sonho do viral aconteceu.
@meredithduxbury I’m gonna have to pass….
♬ Love You So – The King Khan & BBQ Show
É claro que, nos comentários, duetos e respostas ao vídeo da maquiadora, não faltavam críticas à sua aplicação equivocada do produto. Não à toa, no dia seguinte, Meredith publicou um novo vídeo usando o WTFoundation da maneira como os fabricantes indicam. A pergunta que fica é: vale “forçar a barra” ou até mesmo mentir por likes e views na comunidade digital de beleza? De acordo com Vanessa Rozan, desde 2009 – com a ascensão da lógica algorítmica de distribuição de conteúdos nas redes sociais – cresce uma onda sensacionalista nos ambientes digitais de beauté. “Pense naqueles ‘antes e depois’ completamente radicais que apareciam na timeline da época. Ainda que aquela não fosse uma maquiagem da vida real, é um tipo de vídeo que captura o olhar, te paralisa por alguns segundos”, diz a expert de maquiagem do programa Esquadrão da moda, do SBT, e fundadora do Liceu de Maquiagem, uma escola especializada na formação de profissionais de beleza em São Paulo.
“Quando a gente pensa na primeira geração de blogueiras, havia uma euforia em torno do que elas faziam porque, em alguma medida, aquilo representava um escape da comunicação verticalizada, impositiva e normativa que a mídia tradicional fazia antes da internet”, continua. “Hoje, me pego refletindo se não fomos um pouco ingênuos ao acreditar nessa tal democratização da informação. Se por um lado a gente criou novas possibilidades de ampliar vozes historicamente marginalizadas, por outro a desinformação motivada pelo sensacionalismo, pelos likes, parece ainda ser a voz mais ouvida, a que fala mais alto. Ou pelo menos é isso que os algoritmos nos fazem acreditar, porque é o que gera os números mais impressionantes.”
Issaaf Karhawi – pesquisadora em comunicação digital na USP e autora do livro De blogueira a influenciadora (2020) – explica que houve uma mudança na motivação das criadoras de conteúdo de beleza desde o começo da internet até agora. “Naquele primeiro momento, havia uma leitura de que as blogueiras eram muito autênticas. Primeiro porque nunca tínhamos visto esse tipo de conteúdo, depois porque, de fato, quem tinha a coragem de se colocar na internet, em uma era pré-redes sociais, precisava estar muito interessada em falar sobre beleza. A motivação era intrínseca. Quando a lógica de mercado invade o território das blogueiras, a motivação se torna extrínseca”, compara. Isso implica que atualmente tem muita gente investindo nessa carreira mais pelo que ela pode trazer em termos de benefícios particulares (publicidade, recebidos, estadias em hotéis, entradas em eventos VIP etc.) do que por um interesse genuíno no assunto que está no centro de todo esse espetáculo.
“Outro aspecto da dinâmica das redes que mudou bastante foi a trajetória até a fama. No Instagram e no YouTube – ainda que o sensacionalismo também marcasse presença por lá –, você precisava construir um personagem que, com o tempo, seria validado por uma comunidade interessada no que ele tem para mostrar. Com o TikTok, isso muda radicalmente. Você não precisa de um público para viralizar e a própria plataforma se denomina menos uma rede social e mais um produto de entretenimento. Ou seja, você até pode se destacar por lá devido à sua expertise em algum assunto, mas a lógica viral privilegia mais quem aposta na controvérsia”, prossegue Issaaf.
“O que eu procuro explicar na minha pesquisa é a teoria de uma erosão da comunicação. Se a comunicação prevê o diálogo, o entendimento, a verdade, estamos cada vez mais distantes disso”,
Michelle Prazeres, professora do mestrado da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.
Para influenciadoras como Brigitte Calegari e Victoria Ceridono, por exemplo, manter-se em alta se tornou um desafio, uma vez que não há interesse por parte delas em ceder para essa nova lógica. “Eu tenho três pilares que guiam tudo o que eu faço na internet. Eles são compartilhar, ensinar e inspirar. A sensação que eu tenho muitas vezes é a de que isso não basta. De que eu tenho o meu público que gosta e se relaciona bem com aquilo que eu produzo, mas que a ideia de crescer nas redes sociais está cada vez mais ligada a esse tipo de conteúdo apelativo e não tem como não se sentir desestimulada por isso. É uma crise mesmo. Falo muito disso na terapia”, diz, rindo, Brigitte. Para Victoria, que fundou seu blog, o Dia de Beauté, 15 anos atrás, a ideia é se manter firme naquilo que você de fato deseja fazer. “Nunca foi uma grande questão para mim porque se eu não tenho vontade de fazer eu não faço. As pessoas podem até achar que eu virei uma ‘influencer preguiçosa’, mas eu estou muito comprometida em criar somente aquilo que faz sentido para mim e acho que essa autenticidade é algo que se nota”, defende.
A questão é que, assim como o sensacionalismo e a desinformação da grande mídia ainda são problemas graves da história da comunicação de massa, eles continuam gerando um afastamento potencialmente catastrófico entre o público e a realidade dentro desse novo contexto da internet. “Eu estava no TikTok com a minha mãe, que é cosmetóloga, e nós caímos em um vídeo em que uma garota esquentava a base em uma frigideira antes de aplicar no rosto e dizia que essa era uma dica de ouro para chegar ao acabamento que ela desejava. Isso é um perigo e ficamos chocadas. Sabe-se lá o que acontece com a fórmula quando você faz isso”, espantou-se Vanessa.
“É muito complicado fazer a aposta de que a propagação da desinformação nas redes pela chave do entretenimento será entendida como tal. O analfabetismo funcional no Brasil tem números alarmantes e o mesmo vale para o analfabetismo midiático. Nem todo mundo vai entender que um meme é só um meme. Muita gente vai achar que aquilo é verdade e vai reproduzir aquilo, espalhar aquilo como verdade”, alerta Michelle Prazeres, professora de mestrado da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. “A leitura crítica dos meios digitais está cada vez mais desafiadora. Não basta ter uma noção de como um conteúdo é produzido. Precisamos também entender como é que ele ganha circularidade nas redes quando catapultado pelos algoritmos.”
Michelle e Issaaf apoiam a noção de uma literacia midiática, ou seja, a promoção de uma educação dedicada a um refinamento do diálogo entre o indivíduo e as mídias que o atingem. “As empresas gigantescas de tecnologia do Vale do Silício foram muito eficazes na propaganda que fizeram de seus produtos. Se hoje a gente promove uma vida que resiste aos impulsos digitais, isso soa retrógrado. Tudo o que é digital, virtual, online – ainda mais depois da pandemia, que nos obrigou a estar ainda mais em contato com essas ferramentas – vem envelopado por um verniz positivista. Quando, na verdade, o que eu procuro explicar na minha pesquisa é a teoria de uma erosão da comunicação. Se a comunicação prevê o diálogo, o entendimento, a verdade, estamos cada vez mais distantes disso”, propõe Michelle. “Como saída, gosto de acreditar em um caminho pedagógico em que a gente ensine as pessoas a lidar com os conteúdos que chegam até elas pelas redes sociais. E também acredito na luta política, na tentativa da regulamentação desses espaços. Nesse sentido, vale seguir o perfil @desinformantebr, que faz um trabalho jornalístico muito sério a respeito disso no Brasil.”