Como vai ser o seu metacorpo?

No contexto da Web 3.0, os avatares que nos representarão lá dentro são 100% customizáveis. Pensando em padrões hegemônicos de beleza e na tendência à disforia corporal que o mundo digital tem incentivado, o que nos espera?

O Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas de rosto no mundo. Os dados são de uma pesquisa de 2020 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, que nos posiciona como o segundo maior expoente de plásticas do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. No caso das intervenções médicas restritas à região da face, passamos a marca estadunidense largamente – só em 2019 foram feitos mais de 483 mil procedimentos desse tipo por aqui, o que dá a média de 40 250 deles por mês. Tendo em vista este cenário, pense: e se as pessoas pudessem transformar a forma que elas são vistas – corpo, cabelo, altura, roupa, tudo – sem restrições? No metaverso, é possível viver com essa aparência desejada em todas as áreas da vida, dos encontros românticos às reuniões profissionais. Como você desenharia seu corpo se pudesse começar do zero?

“As pessoas acham o metaverso muito surrealista, mas a verdade é que a gente já passa a maior parte do tempo na internet por trás de um avatar – a população brasileira gasta mais de nove horas por dia online, sendo que 30% desse tempo é reservado exclusivamente para as redes sociais”, afirma Simone Sancho, cofundadora da plataforma de marcas independentes de beleza Belong Be e co-fundadora da Eve, uma comunidade brasileira liderada por mulheres com objetivo de trazer mais mulheres para o universo de criptomoeda e NFT. “Olhando para a história da internet, a Web 1.0 era muito mais assistida. Nosso comportamento frente a ela era muito mais passivo. Depois, chegou a Web 2.0, da qual a gente faz parte, cria conteúdo e é capaz de acessar respostas em tempo real para ele. A Web 3.0 vem com o compromisso de ser muito mais imersiva, de conectar o mundo real ao mundo virtual.”

A definição de metaverso ainda é polissêmica, mas suas funções e possibilidades vêm sendo testadas há anos. Basta olhar para o mundo gamer para entender esse processo. Por lá, realidade virtual, realidade aumentada, inteligência artificial e muitas outras ferramentas se combinam para a criação de experiências 360º. O objetivo por trás do rebranding do Facebook para o Meta, portanto, é trazer tudo isso que já está disponível no nicho dos jogos virtuais para o mercado global das redes sociais.

Enquanto crescem os debates políticos sobre o metaverso – desde seu caráter alienante até a regularização dos espaços virtuais –, também ganha fôlego uma nova e importante discussão sobre saúde mental, autoimagem e autoestima. Essa conversa começa lá nos fakes do Orkut, passa pelos filtros do Instagram e ganha uma nova amplitude porque dentro do metaverso as capacidades de um avatar têm proporções nunca antes vistas. Sair com amigos, visitar exposições, ver shows, conhecer pessoas, fazer reuniões de trabalho, tudo pode acontecer no metaverso. Assim, a porosa barreira entre online/offline tende a se dissipar ainda mais. E, dessa vez, o digital sai com uma vantagem tentadora: sua aparência é 100% customizável.

Os avatares do metaverso podem ser construídos do zero até se tornarem algo que pode ir desde um personagem humanoide até uma figura completamente distante disso. “Quando eu cheguei nesse assunto de Web 3.0, criptomoedas e NFT, eu imaginava que os avatares fossem representações perfeitas daquilo que você é. E o que eu me deparei foi uma coisa diferente: os avatares estão menos para o perfeccionismo e mais para o imaginário, para o divertido, para o super-heroísmo”, relata Simone. A priori, o vasto catálogo de representações indicaria que pessoas que não costumam ver seus corpos refletidos nos avatares disponíveis no universo de jogos – como pessoas negras, gordas e transexuais – finalmente encontrariam uma circunstância mais favorável no mundo digital. No entanto, tendo em vista a autonomia do usuário dentro do metaverso e como tem ocorrido a lenta abertura para o acesso a ele, o cenário que se desenha é menos democrático.

 

Ainda que personagens como Satiko (avatar da apresentadora Sabrina Sato), Pink (da empresária Bianca Andrade) e Luks (do influenciador Lucas Rangel) tenham alguma semelhança com a imagem de seus paralelos no mundo físico, essa ainda não é a representação mais fiel do que será a dinâmica das imagens do metaverso. A pesquisadora, professora e consultora de comunicação digital e mídias sociais Carolina Terra ressalta que a Web 3.0 ainda não tem um acesso expandido. De acordo com ela, o login de primeira mão tem um critério muito bem definido: classe.

“Quem tem acesso ao metaverso hoje é quem tem à sua disposição uma tecnologia de ponta. Em muitos cenários, você precisa de console de games e óculos de realidade virtual para figurar nesses ambientes”, comenta a pesquisadora paulistana. Portanto falar sobre beleza no metaverso agora é entender que ela está sendo construída lá dentro por uma fatia da população que tem interesses específicos que, muitas vezes, casam com os padrões hegemônicos que privilegiam corpos magros, brancos, altos, simétricos e marginalizam tudo o que foge à regra. Enquanto o metaverso não se abre de fato para o grande público, a nossa experiência com as redes sociais aponta para um caminho sombrio no que se refere à autoimagem.

Atualmente, pensar em beleza dentro da Web 2.0 é entender que gatilhos para transtornos alimentares, depressão e viagens à mesa de cirurgia estão sempre à espreita. Em setembro de 2021, o The Wall Street Journal publicou uma reportagem sobre as pesquisas internas do Facebook – empresa que pretende liderar a expansão do metaverso para o campo das redes sociais – que vazaram no ano passado. Ali, revelou-se que o próprio Facebook estudou (e, portanto, conhece) seu impacto negativo na saúde mental de adolescentes do gênero feminino. Segundo a pesquisa vazada, o Instagram é a rede social que mais prejudica as adolescentes, especialmente por ser uma plataforma focada em corpo e lifestyle. Os concorrentes TikTok e Snapchat, em contrapartida, sublinham mais as questões disfóricas relacionadas ao rosto, principalmente devido ao uso dos filtros digitais.

“Definitivamente, a internet bagunça nossas noções de autoimagem, sobretudo quando navegamos no mundo cor-de-rosa pintado por influenciadores digitais, marcas e todo aquele espectro corporativista, ‘belo’, ‘liso’, ‘aceitável’ das redes sociais”, defende Camila. “O metaverso cria uma disparidade ainda maior entre o que se pode viver no virtual e o que efetivamente é possível na vida real. Para conseguir se entender nesses novos ambientes e manter um olhar crítico frente a eles, é preciso muita educação, muita educomunicação e muito letramento digital. As pessoas não podem esquecer por completo que a vida ainda acontece fora das telas.”