Spotify com uma ilha no Roblox. DJ Alok como personagem de Free Fire. Shows de Travis Scott, Emicida e Ariana Grande no Fortnite. Os ternos setentistas do duo Silk Sonic, de Bruno Mars e Anderson Paak, disponíveis para compra virtual no mesmo jogo. Justin Bieber e Nando Reis se apresentando no metaverso. Criolo usando realidade estendida em live. Madonna, Snoop Dogg, Elton John, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Pitty, Pabllo Vittar e André Abujamra com coleções de NFTs. Sem contar a possibilidade de comprar com criptomoeda parte dos direitos de uma música de Elza Soares ou Dinho, dos Mamonas Assassinas.
Se a pandemia acelerou uma imersão profunda da música nas mais variadas possibilidades que o ambiente digital oferece, passada a fase da enxurrada (e exaustão) de lives, errou quem apostou que essa conexão com o virtual se perderia com os artistas voltando à estrada. Os exemplos acima são uma pequena amostra que indica que os dois universos devem se encontrar cada vez mais, na medida em que nos aproximamos da Web 3.0 (a próxima fase da internet, descentralizada e baseada na blockchain). Nela, somos criadores e donos do conteúdo que produzimos. Atualmente, estamos na chamada Web 2.0, em que produzimos conteúdo, mas não somos donos dele.
Traduzindo: a blockchain é uma tecnologia que permite rastrear do início ao fim, sem violação de dados, o envio de uma informação pela internet. Ela está associada à ideia de descentralização, porque os dados não ficam em alguns poucos servidores de big techs como ocorre hoje, mas sim nas chamadas fazendas virtuais de servidores. O que isso significa? “Hoje, se o Mark Zuckerberg tirar o Instagram do ar, você perderá tudo o que postou. A partir do momento em que você posta qualquer coisa em uma rede social centralizada, o conteúdo deixa de ser seu. Quando a gente fala em descentralização, tem o conteúdo em servidores espalhados pelo mundo. Então, ele não se perde. Ainda que a empresa saia do ar, você consegue recuperá-lo. Tudo que você faz e coloca na blockchain é seu”, explica Lalai Persson, pesquisadora de Web 3.0.
Nessa tecnologia são comercializados produtos digitais em NFT, ou token não fungível, que é uma espécie de certificado ou documento virtual que prova a autenticidade e a propriedade daquele conteúdo digital. As transações se dão normalmente em criptomoedas como Ethereum.
Em meio aos termos difíceis, os artistas vão tateando esse universo. Nos EUA, Snoop Dogg, por exemplo, já anunciou que quer transformar a gravadora de rap Death Row Records, comprada por ele neste ano, em uma label NFT. O rapper lançou o disco Bacc on death row (2022) via blockchain, por salgados US$ 5.000. O álbum está disponível nas plataformas de streaming, mas os fãs que desembolsaram a quantia ficaram elegíveis a recompensas reais, como churrascos na casa do cantor ou joias de uma edição limitada. “Fiz um levantamento, e o Snoop Dogg foi o cara que mais ganhou grana com NFT na música. Ele não precisaria da blockchain para fazer isso (oferecer recompensas), mas essa tecnologia oferece uma facilidade de juntar tudo isso de um jeito simples”, diz Lalai. Para ela, as possibilidades infinitas da blockchain podem levar os artistas a investir em iniciativas que, apesar de possíveis via internet, seriam muito mais complicadas.
O cenário nacional
No Brasil, André Abujamra, de bandas como Karnak e Os Mulheres Negras, é um dos pioneiros a apostar nesse casamento virtual. “Quando vi que a música não estava ainda na história do NFT, comecei a me juntar com artistas plásticos e fazer as trilhas das artes deles, passei a estudar muito sobre isso e consegui ganhar uma grana. Mas, dois anos depois, já não é mais assim”, diz. Embora não tenha se desfeito de sua carteira digital e ainda tenha itens em NFT à venda, hoje se diverte (e ganha dinheiro) em um outro modelo de negócio, que diz ser um híbrido entre as plataformas de streaming e o blockchain: a plataforma BandCamp, onde disponibiliza as músicas e é remunerado via PayPal com o valor que o fã quiser pagar. “Eu tenho 20 mil seguidores no Spotify e 60 no BandCamp, mas rentabilizo mais no segundo. Outro dia, por exemplo, um chinês pagou US$ 18 em uma trilha minha.” Neste modelo, o usuário pode fazer o download do arquivo, mas não comercializá-lo.
Já Nando Reis criou recentemente uma carteira digital com NFTs e recompensas exclusivas. A essa ação estava associada sua estreia no fim de agosto no metaverso, com um show gravado no bar Opinião, em Porto Alegre, mas que podia ser acessado de qualquer lugar por quem comprasse o ingresso de NandoVerso Experience via blockchain. Essa foi a primeira experiência do NandoVerso, em que fãs criam o próprio avatar para interagir com o ídolo. “O surgimento dos NFTs foi uma coisa que me intrigou, especialmente como ele poderia se relacionar com meu trabalho”, diz. “Confesso que me atenho naquilo que é minha participação, porque sou um homem de 60 anos e, há tanta coisa nesse mundo, que eu me concentro naquilo que é de fato a minha área de habilidade, a composição.” No palco, outra das áreas que domina, sentiu-se à vontade, mesmo no metaverso. “A minha impressão foi a melhor possível. O show foi relacionado ao lançamento em vinil do disco Para quando o arco-íris encontrar o pote de ouro (2000) e, por uma grande coincidência, a banda que gravou o álbum nos EUA na época estava no Brasil. Então, fizemos pouquíssimos shows, mas pessoas de outros lugares puderam assistir. Isso, vamos combinar, é espetacular.”
Compre essa canção
O futuro, para Lalai, passa por exemplos como o de Nando, de compra de ingressos via blockchain, e pela comercialização de royalties de canções, ou seja, um artista disponibiliza a própria música para venda em uma plataforma, e fãs podem comprar pequenas porcentagens dela. Se a música se tornar um hit ou for usada, por exemplo, em uma campanha publicitária, o comprador arrecada o equivalente a sua fatia em direitos autorais. Ele também pode revendê-la. “Se você comprar um pedaço de uma música minha por R$ 100, e começar a bombar, pode revender por US$ 1 milhão. E eu sempre vou ganhar também”, exemplifica Abujamra. A lógica é parecida com a do mercado de ações. De olho nele, Sony e Universal, donas do catálogo de Bob Dylan, por exemplo, já fizeram um acordo para transformá-lo em NFT e lucrar com os direitos autorais do artista. “A blockchain já consegue fazer isso de uma forma mais segura porque você tem a garantia de que todo mundo vai receber. Mas acho a parte criativa, que é gigante, a mais interessante e onde os artistas estão tentando se encontrar”, diz Lalai.
Já na conexão da música com o metaverso vão se sair melhor os artistas que conseguirem levar para o ambiente virtual experiências que não seriam possíveis presencialmente, acredita a pesquisadora. Ou seja, requer mais do que fazer um show online. “Apenas emular não é o futuro. Acho que nesse sentido o show do Travis Scott no Fortnite foi um dos melhores porque só dava para ter dentro de um game”, diz Lalai sobre a apresentação de 2020, com um avatar do rapper, mudanças de cenário e que foi assistida por mais de 12 milhões de pessoas na plataforma. “O metaverso vem como outro produto que pode ser show, mas diferente do já que vemos.”
Estamos, então, diante de uma revolução na indústria da música, como foi, por exemplo, a transformação do CD para o MP3? “Não enxergo como uma revolução, mas como uma evolução. Acho que toda a parte legal que envolve a indústria da música é complexa demais e, para a blockchain conseguir responder 100% a isso, se é que vai, ainda precisaremos de muitos anos. Então, vejo mais como uma evolução de como o artista pode extrapolar a sua criatividade, além da própria música”, completa a pesquisadora.
Enquanto grandes gravadoras, como a Universal, já montam suas próprias áreas de Web 3.0, começam também a surgir plataformas de streamings descentralizadas, como Audius e Catalog, com uma melhor remuneração do que as tradicionais oferecem aos artistas, embora com catálogo muito mais limitado. “Não ouço muita música nas plataformas descentralizadas, justamente porque os grandes ainda não estão lá. É muito mais a galera independente, até porque a maioria dos gigantes está presa a labels”, afirma Lalai.
Mais do que oferecer algo interessante o suficiente para atrair o público, quando as transações envolvem comercialização de NFTs em criptomoedas, há ainda um enorme desafio de compreensão deste universo. “Acho que no futuro a gente nem vai usar esse nome, NFT. Vamos falar ‘eu vou comprar um álbum, um ingresso de um show’. Vai passar pela criptomoeda, mas o NFT é só o meio, é um documento, contém a música, o ingresso, mas é uma coisa muito técnica. Enquanto a gente insistir nisso, vai demorar mais para se popularizar. Já estão surgindo marketplaces que permitem comprar (itens que fornecem o certificado de NFT) com cartão de crédito”, avalia Lalai. Abujamra tem opinião semelhante. “É um movimento meio peristáltico do meu coração essa história. No começo, achava que ia ser mais rápido do que está sendo para isso virar uma realidade. Não é simples, precisa estudar para entender. Mas vai ser maravilhoso. Só não sei se é meu neto ou meu bisneto quem vai ver.”