Dez anos de amor em app

Do Tinder aos aplicativos de relacionamento no metaverso, confira como essas ferramentas mudaram – e continuam a mudar – a dinâmica dos encontros amorosos.

Não era amor de verão: este mês, o Tinder completou dez anos de existência. O aplicativo de relacionamentos está presente em 190 países, já foi baixado mais de 530 milhões de vezes e, segundo a empresa, possibilita 1,5 milhão de encontros por semana. Mais do que ostentar números impressionantes, no entanto, o fato é que o app, criado em um hackathon promovido pela incubadora Hatch Labs, em Los Angeles, em setembro de 2012, mudou a dinâmica do jogo amoroso.

De acordo com dados do think tank Pew Research Center, de Washington, três em cada dez adultos estadunidenses já utilizaram algum aplicativo de relacionamento. Cerca de 12% namoraram ou se casaram com alguém que conheceram por meio dessa ferramenta. Essa porcentagem sobe para 17% entre pessoas de 18 a 29 anos e chega a 21% na parcela LGBTQIA+.

Mas ninguém prometeu fidelidade eterna ao Tinder. Embora ele continue a ser, de longe, o rei dos matches, vários outros santos casamenteiros digitais surgiram ao longo da década. Um dos primeiros concorrentes de peso foi criado, justamente, por uma ex-funcionária da empresa. Whitney Wolfe Herd, que havia processado os cofundadores do Tinder por assédio, lançou em 2014 o seu próprio app de relacionamento, o Bumble. Nele, o grande diferencial é que o primeiro passo deve ser dado pela mulher (nas interações heteronormativas. Nas demais, não há essa regra).

Na comunidade gay, bi, trans e queer, no entanto, quem reina é o Grindr. Aliás, justiça seja feita: o Grindr surgiu antes do Tinder. Foi criado em 2009, também em Los Angeles, pelo empresário Joel Simkhai. Já o Happn, lançado em 2014, em Paris, foi o primeiro a usar o GPS do celular para dar uma ajudinha ao destino: a ideia é conectar usuários que passaram pelos mesmos lugares recentemente.

Match 2.2

Para além dos pioneiros, há toda uma nova geração de aplicativos que procuram atender a requisitos cada vez mais específicos. Não come proteína animal e teme o cardápio do primeiro encontro? O
Veggly, app exclusivo para veganos e vegetarianos, evita situações indigestas. Prefere morrer encalhado a se relacionar com direitista? O Lefty faz aquela peneira nos pretendentes: é voltado apenas para quem se identifica com o campo político da esquerda.

Ambos os aplicativos foram criados pela startup brasileira Similar Souls, de São Paulo. “Acreditamos que pessoas com visões de mundo semelhantes têm mais chances de avançar para um relacionamento”, afirma o CEO da empresa, Alex Felipelli. “É uma conexão muito mais profunda, porque se baseia em ideais de vida e valores parecidos”, completa.

O Veggly foi o primeiro a ser lançado, em 2018, e o Lefty veio este ano. Segundo Felipelli, a iniciativa surgiu a partir de percepções reportadas por usuários de aplicativos sobre a dificuldade de encontrar quem busque relacionamentos sérios entre um volume grande de pessoas, que têm pouco ou nada em comum, tornando essa jornada cansativa e desanimadora.

 

 

O usuário Ives Lima, coordenador de operações do Instituto de Pesquisa e Inteligência Mobile, concorda. Ele se identifica como alguém de esquerda e estava cansado de se colocar em situações desagradáveis em encontros com pessoas de outros perfis políticos. “A maioria da minha rede é de esquerda. Achei interessante a proposta do Lefty de juntar pessoas com a mesma concepção, as mesmas referências. A visão de mundo influencia muito num relacionamento, então é uma forma de evitar desgaste e constrangimento”, frisa.

Por mais que essa pré-seleção amorosa tão restrita possa soar como um episódio de Black mirror (a série da Netflix sobre um futuro tecnológico distópico), ela não é assim tão descabida. “Procurar nichos não é necessariamente ruim, já que muita diversidade pode mais atrapalhar que ajudar”, diz Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Segundo Dunker, esses aplicativos tendem a corrigir uma lógica equivocada que permeia os apps convencionais, de aumentar as chances de encontrar sua alma gêmea ao abrir um infinito leque de possibidades. “Quando não existia a mediação da tecnologia, nossa tendência era de nos relacionar com pessoas da nossa bolha, que viviam em média a seis quarteirões de distância. Os aplicativos possibilitam uma mistura nunca antes vista, aumentando muito a complexidade da escolha amorosa. E nós não estamos acostumados a fazer escolhas dentro de uma amostra tão grande”, argumenta. “Superestimamos nossa capacidade de amar. Conversar com muitas pessoas ao mesmo tempo exige uma capacidade de tempo e espaço psíquico que não temos”, afirma Dunker.

Incentivador do uso dos aplicativos de relacionamento, o psicanalista defende que eles causaram uma verdadeira revolução na sexualidade e na capacidade relacional de determinados grupos. “Pessoas da terceira idade, que possuem alguma dificuldade de locomoção, ou mesmo de contato, se beneficiaram muito desses instrumentos”, avalia.

Como qualquer novidade tecnológica, existe um campo de aprendizagem de costumes e práticas, principalmente na tentativa de transpor discursos e expectativas do universo real para o digital. Como exemplo disso, Dunker cita a pouca elaboração e falta de criatividade das apresentações e imagens que os usuários disponibilizam em seus perfis. “Aí fica mesmo a sensação de que aquilo é um açougue e de que temos de nos comportar como pedaços de carne. A saída é inventar em cima da plataforma.”

Amor no metaverso

Já no metaverso o que não falta é invenção e criatividade nos perfis. E não se trata de exagerar no filtro e pintar um retrato melhorado do seu shape. Em aplicativos de relacionamento de realidade virtual, como o Flirtual e o Nevermet, o seu avatar não precisa ter a menor semelhança com seu eu físico. Orelhas de coelho, focinho de gatinho, chifres e outras variações são muito bem-vindas. “A realidade virtual deixa você ser mais real. Quando você pode escolher sua aparência, é a personalidade que conta”, propaga o Flirtual, em seu site.

 

Assim como as possibilidades são ilimitadas para a caracterização do avatar, os locais de encontro nesse mundo não conhecem fronteiras. “A maioria de nós só pode sonhar com um encontro na Torre Eiffel ou um passeio intergaláctico de unicórnio pelo espaço. Mas isso está prestes a mudar. Estamos dando origem a uma nova cultura de relacionamento, em que os relacionamentos no metaverso são tudo o que sempre esperamos em nossa busca por conexão”, diz o manifesto do Nevermet. Exagero? Talvez não.

Christian Dunker imagina que o espaço virtual poderá cativar quem está a fim de experimentar de forma segura e diferente:”Não apenas em termos de sexo virtual, mas de experiências com outros gêneros, outras orientações e práticas que existem no discurso, mas não na vida real”.

De qualquer maneira, na vida física, por meio dos aplicativos, ou no metaverso, Dunker aponta que nosso maior desafio é entender que o processo de escolha nos relacionamentos não é – ou ao menos não deveria ser – tão centrado em gostos pessoais. “O elo capaz de criar uma ligação entre as pessoas é o desejo, e ele tem muito mais a ver com certa contrariedade do que com afinidades comuns. Ou seja, não basta apenas corresponder às expectativas do outro emulando hábitos e crenças similares”, pontua.

Como em tudo, não há garantias, mas sim uma aventura arriscada, que também por isso é rica e interessante. “Para causar o desejo, precisamos mostrar falta, fragilidade, algo que faça com que o outro se apaixone por você, e não pelo seu personagem”, conclui Dunker.