O laboratório pode ser também um ateliê

Analisamos os designers que, de forma positiva, interagiram com a tecnologia de seu tempo e imaginaram um mundo novo, corajoso e codificado.

Imagine a seguinte cena: você acorda, pega o seu smartphone e decide qual roupa usará ao longo do dia. Será a calça envolvida por relâmpagos neon? O vestido cyber, digno de Cinderela? Ou o body luminoso de espirais? Independentemente da escolha, a peça não irá deslizar por sua pele ou proteger seu corpo. Você não poderá exibi-la em uma festa, nem sequer experimentá-la. Nenhuma delas será vista na vida offline, fora das telas, como uma roupa real, palpável e tangível.

Não, esse não é o trecho de algum roteiro distópico de ficção científica. É uma realidade cada vez mais possível graças ao metaverso. Seja por meio de NFTs ou renderizações 3D, nos últimos anos, a indústria deu passos largos em direção ao preparo de um mundo virtual com direito a guarda-roupas próprios e bastante elaborados.

Mas o que antes parecia improvável de migrar para além das telas e invadir o mundo IRL (in real life) agora já não é tanto assim. Há designers empenhados, e as criações mais insanas idealizadas no mundo sem limites dos softwares estão migrando para fora deles. Para tornar o sonho possível, tecnologias engenhosas estão sendo ativadas para que as pessoas sejam capazes de, ao menos, tentar acompanhar a inteligência artificial.

“Costumo trabalhar com fornecedores de fora da moda, os instigando a pensar diferente para desenvolver os materiais que tenho na cabeça.”
Iris Van Herpen

Veja, por exemplo, o verão 2023 masculino da Loewe. Jonathan Anderson fez do laboratório o seu ateliê. Parte da coleção foi semeada, regada e cultivada ao longo de 20 dias. Em uma colaboração com a biodesigner espanhola Paula Ulargui Escalona, o diretor criativo fez com que plantas e ervas conseguissem crescer sobre os tecidos.

Houve também um jogo com a manipulação da imagem. O cenário austero, inteiro branco, e a rigidez nos movimentos dos modelos fez parecer que o desfile real tinha sido gerado eletronicamente.

Eram noções distintas, quase antagônicas: a planta orgânica e a roupa manufaturada, a reprodução real e a simulação digital, a natureza e o engenho. No ponto médio entre elas, havia telas enormes costuradas em casacos de ombros inclinados, reproduzindo cenas de um mundo natural, como pássaros voando em bando durante o pôr do sol e casais se beijando. “Em breve, o único lugar onde poderemos ver abelhas e flores raras será em uma tela”, afirmou Jonathan, em entrevista à imprensa no camarim.

O britânico entendeu que a consciência humana já está fundida aos dispositivos digitais. O que resta à moda é estimular a discussão cultural, menos como um julgamento e mais como uma pergunta.

E ele está longe de ter sido o primeiro. Muito antes de a tecnologia se tornar o que é hoje, durante a temporada de verão 1999, Alexander McQueen posicionou dois robôs mecânicos em torno da modelo Shalom Harlow. Em uma plataforma giratória, a também ex-bailarina se envolveu em uma dança perturbadora quando as máquinas atiraram tinta sobre ela, manchando seu vestido branco de preto e amarelo. “Quando terminaram, eu caminhei, quase cambaleando, até a plateia e posei em total abandono e rendição”, descreveu Shalom em entrevista ao site Business of Fashion.

Embora ali a tecnologia não fosse vestível, havia um argumento sobre a relação entre o homem e a máquina, algo que certamente inspirou Iris Van Herpen. Em 2007, depois de trabalhar com McQueen, a estilista holandesa lançou a sua marca homônima, construindo uma espécie de alquimia da moda. Um pouco costureira, um pouco cientista, ela preenche a lacuna entre a passarela e o laboratório a partir de técnicas avançadas de impressão 3D, corte a laser e fabricação digital.

“Costumo trabalhar com fornecedores de fora da moda, os instigando a pensar diferente para desenvolver os materiais que tenho na cabeça”, contou em uma aula exclusiva do #MovimentoELLE. A abordagem tem lhe rendido fãs, prêmios e o mérito de estar redefinindo o conceito de alta-costura. Enquanto excita os sentidos e desafia as noções tradicionais, Iris parece ter um instinto especial para harmonizar a tecnologia, transcendendo tanto o homem quanto a máquina.

Agora, ela abre as portas para uma geração de designers empenhada em integrar o mundo real ao virtual. Esse é o caso, por exemplo, de Lisa Jiang. Em seu trabalho de conclusão de curso na Central Saint Martins, ela examinou a tensão entre as formas orgânicas e as matemáticas. O objetivo era criar roupas que estivessem em constante movimento. Ou seja, que se mexessem sozinhas.

Para isso, consultou professores de engenharia elétrica até alcançar a equação ideal entre o peso do tecido, a velocidade do motor e o atrito da tensão. Após alguns testes falhos, o resultado, que se tornou viral nas mídias sociais, é surpreendente. Organzas delicadas se movem livremente graças aos componentes acionados na parte interna da roupa para operar a energia cinética.

Outro hit é o da britânica Scarlett Yang. O seu vestido, que mais parece de vidro, muda de textura em resposta à temperatura. Embora tenha começado como uma simulação em um software, o material ganhou vida a partir do extrato de algas moldadas em forma 3D. Di Petsa também já fez algo parecido ao apresentar uma peça reativa ao calor. Feita de couro sintético, ela guarda marcas do toque a cada vez que tem contato com a pele, seja uma mão, abraço ou beijo.

Os exemplos citados são roupas, mas não como normalmente as conhecemos. Inaugurando uma era de novas regras criativas, elas contém soluções codificadas, mas com o corpo humano ainda como fronteira final. Vestir um avatar ou comprar uma jaqueta que não existe, por exemplo, não são ideias que entusiasmam a todos. Ainda precisamos de peças adequadas para o trabalho, para sair à noite e viver vidas corpóreas habituais.

Algumas marcas, cientes disso, têm usado a tecnologia como uma mera ferramenta de marketing, na intenção de atrair pelo fator surpresa, mas depois direcionar a atenção para os produtos normais. Essa é uma ideia mal projetada. Assim como em outras ramificações da indústria da moda, na digitalização, há ofertas que alegam ser mais transformadoras do que de fato são. Isso inclui propagandas superestimadas, produtos sem funções e até espaços virtuais que, na verdade, mais parecem o Habbo Hotel.

Após décadas de teorias, o futuro chegou 一 ou o inferno, depende para quem você perguntar. Não há carros voadores nem aterrizamos em Marte. O metaverso, embora promissor, ainda é um plano experimental, formado por muitas ideias incipientes e poucas completamente desenvolvidas. Nas fábricas, já há robôs cortando tecidos e algoritmos de inteligência artificial prevendo tendências, porém a sua base continua seguindo os pilares do fordismo e sua produção em série.

Ao menos, por enquanto, o sonho é pixelado. Apontar a tecnologia como a solução definitiva soa um tanto insensato, ainda mais quando se sabe que as habilidades humanas jamais se tornarão obsoletas. A boa notícia é que há maneiras imediatamente relevantes pelas quais a ciência é capaz de automatizar, personalizar e impulsionar a moda 一 e não, nada tem nada a ver com o retrofuturismo prateado da era especial.

À medida que a tecnologia se torna uma conversa subjacente, não como um elemento, mas como uma condição da moda, é seguro dizer que ela ainda não se tornou tudo o que se esperava. Quem imagina que a evolução tenha sido intensa até agora deve se preparar. Com toda a probabilidade, nós ainda não vimos nada.