A ideia de avatar tem sido bastante discutida, muito por causa dos jogos online e seus desdobramentos, das inovações tecnológicas e suas implicações culturais e éticas. Mas também no contexto das redes sociais.
No jogo, você tem um personagem, tem as skins, ou seja, muitas vezes pode inventar sua própria pele. Nas redes acontece algo menos explícito, talvez, mas o processo é muito parecido. Nossas imagens, o que escolhemos mostrar e dizer, os filtros, as histórias que contamos, os efeitos, tudo isso é algo que nos representa em uma dinâmica de interação que ocupa boa parte do tempo de centenas de milhões de pessoas.
Somos, de fábrica, menos unificados do que pensamos ou do que gostaríamos. Tem algo em nós além disso que chamamos de eu. Há, por exemplo, o inconsciente e seu jeito de falar. Falar de uma certa maneira que nossa organização lógica e nossas práticas usuais não controlam, falar por deslizes, lapsos, sonhos. Além disso, existe o outro, esse que não sou eu, mas cuja presença permite que eu me reconheça. Podemos bater no peito e dizer “eu sou”, mas a pose de rei ou rainha não se sustenta como uma coisa inteira e maciça. Está cheia de furos, rachaduras e divisões.
E isso não é ruim. Nosso jeito de ser um é ser muitos e nunca completos. Somos um pouco dos que nos rodeiam, dos que vieram antes e dos que ainda chegarão. Pensar nisso faz a gente se sentir menos sozinho, mas também abre um universo de questões.
A questão com os avatares não parece ser a de que existe alguém verdadeiro por trás deles, comandando tudo. Quem joga o jogo está tanto nas mãos que mexem o controle quanto no personagem. De formas diferentes, mas ainda assim. E tanto um quanto outro responde aos ambientes, às regras e estruturas.
Às vezes a vida dentro e fora das redes é muito parecida. Mudam alguns elementos, mas os modos de agir, o que fazer, os limites da liberdade, o teor das conversas, tudo é espantosamente cada vez mais igual. Até mesmo aquela história de ser agressivo na internet e gentil na rotina mudou, com muita gente se sentindo à vontade de ser troll, hater e violentíssimo nas ruas, nas relações ao vivo.
Não à toa muitas pessoas resolvem também trazer suas skins para o corpo de carne e osso. Podemos pensar em modificações corporais da linha híbrida, do tipo para parecer um bicho ficcional, plantas ou máquinas. Mas também nos padrões de beleza e procedimentos estéticos modulados pelos filtros de Instagram, com seus ângulos, volumes, dentes e texturas predeterminados.
A Inteligência Artificial e as novas plataformas de “vida online” constituem um campo verde de promessas e grandes possibilidades. Mas isso também pressupõe uma sombra, o outro lado da mesma moeda – esse obviamente menos explorado e por motivos evidentes.
Não se trata de assumir argumentos conservadores no sentido de bloquear inovações tecnológicas, mas pensar a partir de que bases elas estão sendo pensadas, quais seus meios e fins. A responsabilidade é grande, como criar pequenos mundos conectados.
Esses mundos e o que fazemos nos seus limites estarão sempre ligados. E o que nos garante que não reproduziremos neles e por meio deles os mesmos problemas e horrores do mundo de terra, água e ar? E o que garante que esses limites não serão cada vez menos nítidos? Nada. O que nos leva de volta à responsabilidade, mas também à criatividade, à capacidade de sonhar e de desobedecer lógicas dominantes, de modificar bases.
Se você pudesse nesse instante se reinventar como avatar, será que procuraria se encaixar na realidade como ele está agora dentro e fora das telas ou se recriaria como um ser que só poderia viver bem em um mundo melhor e em muitos sentidos mais bonito, mais igualitário, mais amoroso, mais divertido? Pense nisso.