Who wants to live forever

A busca pela imortalidade pode finalmente ter chegado ao fim graças à tecnologia. Mas será que é possível viver sem por um ponto final na nossa história?

“A morte é um exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco.” A frase do escritor português Valter Hugo Mãe, em A desumanização (Biblioteca Azul, 2017), retrata bem o sentimento da maioria de nós diante da morte de alguém querido, a dor de um luto, que abocanha tudo em sua volta, inclusive pedaços de quem ficou para trás. Mas, talvez, num futuro não tão distante assim, a morte possa ser menos exagerada, menos gulosa.

E não se trata de misticismo, tampouco de avanços na medicina, ainda que eles estejam ocorrendo nesse exato momento (CRISPR, a edição genes, se comprovou eficaz contra o envelhecimento, por exemplo.). Ao que tudo indica, programadores e algoritmos garantirão, senão a sobrevivência da carne, a eternidade de ausências-presenças ao alcance de um clique (talvez nem isso seja preciso logo mais).

”É uma maneira de nos mantermos vivos para as próximas gerações.
Deibson Silva

Aos fatos: em 50 anos, o Facebook, primeira mídia social mainstream no mundo, terá mais mortos do que vivos, segundo pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Com cálculos que levaram em conta o ingresso de novos usuários a cada ano e as taxas de mortalidade da população, se chega a um número que fica entre o curioso e o freak: em 2070, serão quase 30 bilhões de perfis falecidos.

O que isso significa na prática? No mínimo, que você e eu, qualquer pessoa com acesso à internet poderá stalkear feeds intermináveis com as opiniões, as fotos e os momentos marcantes, dignos de compartilhar, da vida dos nossos entes queridos – ou daqueles famosos que geram curiosidade.

Presenças fantasmagóricas, nas palavras da psiquiatra e escritora Natalia Timerman, autora de Copo vazio (Todavia, 2021), livro que traz à tona um pouco desse sentimento vivenciado por muita gente hoje em dia. “Parte da dificuldade em lidar com términos na era da internet se deve justamente a essa possibilidade de ir atrás virtualmente daquela pessoa, dessa presença fantasmagórica de alguém que já se retirou. Precisamos aprender a lidar com a ausência, com a morte, porque tudo vai acabar.”

“Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.”
Wislawa Szymborska

Mas, a despeito das preocupações e consequências, o cenário tecnológico aponta para o contrário. Para uma vida além da matéria, onde morreríamos apenas o estritamente necessário, parafraseando a poeta polonesa Wislawa Szymborska.

Se as mídias sociais já garantem essa espécie de lugar perpétuo, a Web 3.0, que vem sendo batizada de metaverso, termo emprestado de Neal Stephenson, em Snow Crash (Bantam Books, 1992), tem os componentes certos para amplificar o fenômeno: interatividade, machine learning, gamificação, realidade aumentada…

“O Legathum tem o propósito de perpetuar nosso legado, nossas memórias, nosso conhecimento, para que de uma maneira interativa, no futuro, nossos descendentes possam saber de onde vieram, como pensavam seus antepassados, como eles lidavam com desafios”, conta o neuropsicólogo Deibson Silva, cabeça à frente da startup brasileira com sede no Vale do Silício, que promete eternizar quem assinar o serviço, nos moldes dos streamings.

Idealizado em 2020, no início da pandemia, quando todo mundo, não só Platão, Montaigne e cia., passou a pensar diariamente na ideia da morte, da finitude batendo à porta, o Legathum usa inteligência artificial para reproduzir o que pensamos, aprendemos, filosofamos em vida. ”É uma maneira de nos mantermos vivos para as próximas gerações. Ao longo da vida, os seres humanos geram muitos dados e nós aproveitamos ao máximo todas essas informações para treinar a IA e fazer com que ela aprenda a se comportar, a ter a personalidade, os valores, os motivadores, a tomada de decisão e o tipo de inteligência daquela pessoa”, explica.

Até a voz.

Um simulacro da realidade, com potencial ainda difícil de mensurar – no Legathum, já é possível, por exemplo, “falar” e aprender com Albert Einstein ou Aristóteles. Em breve, Cafu ou, melhor, seu avatar gêmeo, dará aulas de futebol e entrará para o rol de imortais mesmo quando se ausentar dos gramados.

“Tudo o quanto vive provém daquilo que morreu.”
Platão

E, segundo Silva, ainda que soe meio Black mirror, nos próximos anos será possível fazer um upload da nossa consciência e garantir, de certa forma, a sobrevivência de toda espécie, a despeito de feitos históricos. “Essa sempre foi uma grande uma preocupação nossa. Ao longo da história, só pessoas com grandes realizações permaneceram vivas. Olha quantos habitantes já tivemos no mundo e quantos são lembrados. São pouquíssimos. Queremos tornar acessível o legado e uma biografia interativa para todas as pessoas.”

Faculty da Singularity University Brasil e especialista em cultura maker, Ricardo Cavallini, no entanto, tem ressalvas sobre a possibilidade dessa tal vida eterna aqui e agora. “Reproduzir voz e gestos já é realidade. Também seria possível simular possíveis interações e respostas baseadas no rastro gigantesco de conversas que mantemos nas redes sociais, privadas ou não. Porém isso é muito distante de a IA ter realmente a nossa personalidade ou, indo mais longe, a nossa ‘alma’.”

Mais: de acordo com ele, o próprio conceito de metaverso, dessa realidade mista, onde teoricamente podemos tudo, até derrotar a morte, é controversa. “O metaverso ainda não existe e vai demorar para existir. O que existe e é bem real é investimento por parte das marcas nessa moda. Jogos não são metaverso, são jogos. NFT não é metaverso, existe sem ele e vice-versa, assim como o PIX existe sem o celular. Um complementa o outro.”

“É preciso estar sempre com as botas calçadas e pronto para partir.”
Montaigne

Mais pé atrás ainda, Natalia Timerman acha humanamente improvável que consigamos chegar ao ponto de não distinguir mais vida e morte, físico e digital. “A presença é insubstituível. Estar diante de alguém é muito diferente de estar virtualmente diante de alguém. Quando essa pessoa não existe, não é um ser humano que está lá.”

Sim, ser humano até onde aprendemos significa ser mortal, de carne, osso e sangue. Resta saber até quando seremos de fato apenas humanos ou, como prevê Deibson Silva, Meta Homo Sapiens, uma espécie finalmente apta para a eternidade.