Mesmo com o alerta de conteúdo violento e não recomendado para pessoas sensíveis antes de cada episódio, o podcast Modus Operandi atrai desde 2020 milhares de ouvintes nas plataformas de streaming. Só no ano passado, o programa, criado por Carol Moreira e Mabê Bonafé, teve mais de 14 milhões de plays, segundo dados do Globoplay.
Como um dos podcasts de true crime (que narra e investiga crimes reais) de maior sucesso no Brasil e o mais ouvido no Spotify dentro da categoria, o Modus Operandi chama a atenção por sua audiência, que é, em sua maioria, composta de mulheres – 76% feminina, 21% masculina, 2% não especificada e 1% não binária.
O crescente interesse no assunto, no entanto, não é recente e muito menos regional. Um estudo sobre o consumo de podcasts realizado em 2019 pela pesquisadora Kelli Boling, da Universidade da Carolina do Sul (EUA), revelou que quase 75% dos ouvintes de histórias de crimes reais são mulheres. Especula-se que, além da curiosidade, elas procuram histórias de assassinatos e serial killers para se sentirem mais seguras. “Como as mulheres são a maioria das vítimas desses crimes, conhecer essas histórias pode significar também aprender formas de se proteger ou evitar que se repitam. Algumas ouvintes já relataram que se sentem mais seguras conhecendo o caso e sabendo o que precisam fazer para não correr os mesmos riscos”, explica Mabê.
Mabê Bonafé e Carol Moreira, criadoras do Modus Operandi.
Com mais de 180 episódios no ar, o podcast já narrou casos notórios, como a seita de Charles Manson, na década de 1960, a morte do casal Von Richthofen, planejada por sua filha, Suzane, em 2002, e os assassinatos em série cometidos por Ted Bundy e John Wayne Gacy, que aterrorizaram os Estados Unidos nos anos 1970. Ainda que o crime seja o foco, há sempre espaço para contar de forma respeitosa a história das vítimas, além de trazer comentários sobre o feminicídio e o machismo que cercam boa parte desses crimes. Entre os programas mais chocantes e difíceis de produzir, Mabê destaca o episódio sobre o massacre do Carandiru, em 1992, com participação do doutor Drauzio Varella, e o sequestro, em 1988, de Natascha Kampusch, uma garota que foi mantida em cárcere privado durante oito anos na Áustria.
A popularidade do podcast levou o Globoplay a transmiti-lo com exclusividade e rendeu ainda o programa Além do crime, criado em parceria com Netflix e exibido no YouTube para abordar as produções de true crime disponíveis no catálogo da plataforma. A última novidade da dupla é o livro Modus Operandi: guia de true crime, lançado em agosto pela editora Intrínseca. “A ideia do livro é apresentar diversos temas que nós abordamos no podcast, como investigação, perfis criminais, tipos de crime e serial killers, entre outros. Ele funciona como um guia simples e didático para quem é fã do gênero e gostaria de tornar a experiência mais completa.”
Além do som
Nos últimos anos, a popularidade do gênero se espalhou por documentários, filmes e séries.
Dahmer: um canibal americano (2022), protagonizada por Evan Peters e criada por Ryan Murphy (American horror story), é o fenômeno mais recente. Chegou em 21 de setembro à Netflix, ficou no topo do ranking das séries mais vistas em 80 países e se tornou a mais assistida da plataforma em sua semana de estreia, superando hits como Round 6 e Stranger things. Só no catálogo da Netflix existem mais de 40 produções dedicadas ao tema. O documentário Pacto brutal: o assassinato de Daniella Perez (2022), da HBO Max, é outro exemplo. Até no campo da ficção e da comédia o gênero faz sucesso: a série Only murders in the building (Star+), sobre três vizinhos obcecados por um podcast de true crime que acabam por investigar um assassinato, foi premiada com três Emmy.
Em meio ao sucesso, outras questões entram em jogo, como a glamourização e o sensacionalismo por parte da mídia ao retratar esses crimes e também do público ao assistir essas produções. “A insensibilidade com as partes envolvidas pode ser um grande problema de quem consome esse tipo de conteúdo”, diz Mabê. Para a roteirista, o fã de true crime precisa ter responsabilidades: não compartilhar fake news, não exaltar criminosos ou favorecer algum tipo de sensacionalismo. Ainda que esses conteúdos sejam feitos com cuidado, nem sempre são bem recebidos pelos familiares das vítimas. Após a estreia de Dahmer, por exemplo, o primo de uma delas criticou a série no Twitter, acusando-a de traumatizar novamente sua família.
Mulheres (também) nos bastidores
Além de serem as maiores consumidoras, as mulheres estão no comando da maior parte dos conteúdos sobre true crime, como é o caso de Making a murder, série documental da Netflix, vencedora de quatro Emmy, escrita e dirigida pelas estadunidenses Laura Ricciardi e Moira Demos. Também é o caso do livro Eu terei sumido na escuridão, de 2018 (posteriormente transformado em série pela HBO), de Michelle McNamara, jornalista que se tornou umas das principais responsáveis pela captura de um homem conhecido como assassino de Golden State, que sequestrou e estuprou dezenas de mulheres e matou 13 pessoas nas décadas de 1970 e 80 na Califórnia. Ela se dedicou 30 anos ao caso.
No Brasil, outros podcasts apresentados por mulheres estão em evidência e figuram no topo das paradas. Conheça quatro deles:
Jaqueline Guerreiro é criadora do maior canal sobre true crime do Brasil no YouTube, que leva seu nome e conta com mais de 3 milhões de inscritos. Já no podcast Quinta Misteriosa, ela expande as histórias já contadas em vídeo. Entre os episódios mais populares, está o caso de Mariana Ferrer, em que a própria modelo e influenciadora, que denunciou ter sido vítima de estupro em 2018, procurou a jornalista e pediu para que ela contasse sua história. Na época, o caso ganhou repercussão após o vazamento de um trecho da audiência, em que mostrava o comportamento agressivo dos advogados de defesa do réu, que acabou absolvido.
Praia dos Ossos (2020)
No podcast original da Rádio Novelo (que produz programas como A República das Milícias e Foro de Teresina), Branca Vianna reconta a história de Ângela Diniz, socialite brasileira assassinada pelo então namorado, Doca Street, em 1976. Ao longo de oito episódios e com base em uma extensa pesquisa, feita por Flora Thomson-Deveaux, a série discute os motivos que transformaram a vítima do feminicídio em vilã para a sociedade da época.
Leila (2022)
Narrado por Leandra Leal, o novo podcast do Globoplay investiga minuciosamente os acontecimentos que marcaram a vida de Leila Cravo, atriz e símbolo sexual nos anos 1970, encontrada nua e inconsciente após a queda de uma varanda em um motel no Rio de Janeiro, em 1975 – na época, o episódio foi tratado como uma tentativa de suicídio. Quase 50 anos depois, o podcast – com autorização de Leila, que morreu em 2020 – procura esclarecer o que houve naquela noite.
Criado em 2018, o podcast é o primeiro focado em casos nacionais e já conta com mais de 100 episódios, lançados quinzenalmente. A jornalista Stefanie Zorub relembra crimes que chocaram a população, como a morte de 11 mulheres pelas mãos de Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, no fim dos anos 1990.