Gótica com emoção

Onda de roupas escuras, referências históricas e looks pesados nas passarelas são reflexos de uma geração em busca de conexão emocional – e um tanto angustiada com o futuro que a espera.

Tava tudo bem até que não tava, sabe como? Aquele momento em que parece que a vida parou de fazer sentido? Brincadeiras à parte, é um pouco essa a sensação que se tem ao acompanhar a evolução das tendências de moda nas últimas temporadas. Lembra de quando a vacina tinha acabado de chegar e todo mundo começou apostar em looks supercoloridos, com tecidos de festas ou então com muita pele à mostra. Pois bem, já não é mais assim.

Boa parte das coleções de inverno 2022, desfiladas em fevereiro e recém-chegadas às lojas, tem um tom mais sombrio, com uma cartela de cores escura e tecidos mais pesados, quase sempre deixando o corpo mais coberto do que pelado. Junya Watanabe, por exemplo, criou volumes e silhuetas amplas combinando segundas peles com jaquetas de motociclista ou bomber e maquiagem preta bem gráfica. Na Givenchy, Matthew M. Williams trouxe camisetas de bandas de rock, sobreposições e comprimentos longos em visuais languidos. Já Erdem foi para um lado mais romântico, com transparências e veludo, enquanto Simone Rocha mergulhou nos elementos vitorianos, como rendas e babados. Ainda nessa estação, Rochas, Rick Owens, Gucci e Christopher Kane seguiram o mesmo caminho, em maior ou menor intensidade.

 

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Richard Quinn, verão 2023, e Gucci, inverno 2022.Fotos: Getty Images

 

Nas apresentações de verão 2023, terminadas no dia 04 de outubro, não foi muito diferente. Nem a ideia de dias quentes e ensolarados pareceu influenciar o humor de alguns dos principais estilistas do mercado. O preto segue como cor-chave, ainda que trabalhado em rendas, transparências, tecidos elásticos ou ajustados ao corpo, com direito a muitos corsets. Pode somar aí mais uma boa dose de inspirações e referências em filmes de terror e todo o universo místico de bruxaria.

“Nós olhamos para tudo que a sociedade vê como ruim, triste, mórbido, soturno e solitário, e enxergamos algo artístico e bonito.” Bella Mochi

Tome como exemplo a Versace. Em um cenário cheio de velas pretas, luz roxa, vitrais e um piano de cauda, Donatella parecia querer atualizar o guarda-roupa do icônico filme
Jovens bruxas, de 1996 (além de algumas coleções criadas por seu irmão Gianni, naquela mesma década). O desfile, não por acaso, começa com quatro modelos numa pose bastante similar à da foto de divulgação do longa. A partir daí, entra na passarela uma série de looks pretos e roxos, com muito couro, renda, recortes, decotes e um quê fetichista.

 

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Versace e Prada, ambas verão 2023.Fotos: Getty Images

 

Na mesma estação, a Prada, codirigida criativamente por Miuccia e Raf Simons, escureceu o cenário solar do último desfile masculino. Todo feito de papel preto, o espaço era cercado por algumas janelas, por onde eram transmitidos curtas feitos pelo cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn, sobre intimidade e desespero. Não é novidade a obsessão de Raf por filmes de terror. Nessa coleção, o clássico O bebê de Rosemary, de 1968, foi um dos pontos de partida para as camisolas transparentes com detalhes rendados e lingeries tão finas que quase se desfaziam. Isso sem falar nos cílios longuíssimos e colocados ao contrário, lembrando outros ícones do cinema japonês.

Em Londres, o clima fúnebre extrapolou as passarelas. O luto pela morte da rainha Elizabeth II deu um tom extra de dramaticidade e pesar à semana de moda, que por pouco não foi cancelada. Richard Quinn, por exemplo, passou os dez dias seguintes ao falecimento da monarca criando 22 looks extras para abrir seu desfile. Todos pretos, com véus sobre rosto e camadas de renda, eles foram o tributo final do estilista à soberana, que assistiu a sua estreia na fashion week, em 2018, e o presenteou com o Queen Elizabeth II Award for Design no mesmo ano.

 

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Richard Quinn e Dior, ambos verão 2023.Fotos: Getty Images

 

Apesar de fácil e comumente associados ao universo macabro ou profano, as cores escuras e mais todo o repertório estético do estilo gótico têm origens um tanto mais sentimentais. Um bom exemplo pode ser encontrado no verão 2023 da Dior. E nem estamos falando do cenário criado pela artista Eva Jospin para o desfile.

É que uma das principais inspirações da estilista italiana foi a rainha Catarina de Médici, nascida numa das famílias mais poderosas de Florença e casada com o rei Henrique da França, que nunca lhe deu muita abertura para assuntos do estado (isso só foi acontecer quando seus três filhos assumiram o trono). Ainda assim, sua influência foi marcante na corte francesa, principalmente esteticamente.

Ela é creditada por introduzir o uso do corset e dos saltos altos. Mais do que isso, escolheu o preto como sua cor oficial após a morte do marido. Em parte como luto, em parte para se destacar num delicado jogo de poder. É que a cor, naquela época, era bastante rara – e cara. Imagina uma coleção de roupas toda nesse tom.

Um pouco de história…

O gótico nasceu na Idade Média como um movimento artístico e cultural que reverberou tanto na literatura quanto na arquitetura. Nas construções, ele é definido por arcos, abóbadas, tetos curvilíneos e vitrais, como algumas das catedrais católicas mais conhecidas do mundo (a Igreja da Sé, em São Paulo, é uma releitura desse estilo). A literatura surgiu algum tempo depois, estreitando a relação com elementos sobrenaturais, obscuros e mórbidos. Ou pelo menos como aquela estética foi lida um tempo depois.

Os primeiros registros sobre o termo gótico aplicado dessa maneira, afinal, são dos anos iniciais do Renascimento – quase sempre com teor negativo. Tipo um xoxo mesmo. O historiador Giorgio Vasari, por exemplo, usou a palavra em um texto de 1550, no qual ele dizia que as formas arredondadas, as rosas e as gárgulas da arquitetura daquela escola eram bárbaras e inferiores à geometria e perfeição calculista do estilo renascentista. Não à toa, a origem etimológica da palavra é dos povos ostrogodos e visigodos, que, segundo Vasari, “poluíram” o mundo com suas “estruturas deformadas” ao contribuírem para o fim e destruição do Império Romano.

A famosa disputa entre razão e emoção, sabe?

Acelerando algumas centenas de anos, o termo “gothic rock” foi cunhado em 1967 pelo crítico musical John Stickney. Contudo, demorou alguns anos para a expressão se materializar numa subcultura relevante. Mais precisamente até o início dos anos 1980, quando bandas de post-punk, como Siouxsie and the Banshees, Bauhaus, The Cure e Joy Division, ganharam notoriedade.

A moda entra em cena nesse momento, quando integrantes dos grupos musicais e seus fãs começaram a emprestar elementos do gótico vintage (da Idade Média ou dos outros momentos históricos em que o estilo esteve em alta, como nos períodos vitoriano e eduardiano) e misturá-los com toques de punk. Daí vêm os góticos românticos, uma das vertentes dessa subcultura que se apropria dos laços, rendas, corsets, golas e babados.

“Depois da onda de expressividade e de muito Dopamine Dressing, os designers estão investindo em uma proposta mais sombria.” Mariana Santiloni

De volta ao presente

A estilista e dona do brechó B.Luxo Paula Rondon aposta nessa tendência já há algum tempo. Na sua marca homônima, ela mistura tecidos vintage com detalhes vitorianos e traz uma nova abordagem mais leve ao imaginário fashion gótico. “Como só utilizo tecidos que já têm no mercado, esbarro na dificuldade de encontrar matéria-prima escura”, diz ela, em referência ao método de produção de upcycling. “Uso rendas mais claras, muita transparência, tapeçaria e tento ir para um caminho mais contemporâneo.”

Bella Mochi tem 19 anos, mora em Dourados, no interior do Mato Grosso do Sul, e começou a se interessar pelo estilo gótico na adolescência, com 13 anos. Em 2020, ela começou a praticar maquiagens em casa e a customizar seu guarda-roupa. “Nós olhamos para tudo que a sociedade vê como ruim, triste, mórbido, soturno e solitário, e enxergamos algo artístico e bonito”, comenta.

Para ela, o TikTok também ajudou a viralizar esse estilo durante a pandemia, quando todos estavam mais reclusos. E isso não tem muito como negar. Segundo Mariana Santiloni, especialista em tendências na WGSN, o medo e as incertezas globais nos meses mais duros com a Covid-19 impulsionaram essa estética mais sombria. A reclusão e a introspecção também são denominadores comuns entre o período iniciado em 2020 e a subcultura.

@mearisxft eu me chamo mary ! #vaiprofycaramba #fyp #foryoupage #fitcheck #goth #gothgirl #maryonacross #ghost #romanticgoth #corset #gothcore #gothcorset ♬ Mary On A Cross – Ghost

“Os looks customizados foram combinados com o clima de instabilidade mundial, principalmente no mercado jovem, já que esse público recorre à moda para expressar sua angústia e rebeldia”, fala Mariana. “Roupas que refletem uma visão sombria para o futuro foram apelidadas de
avant apocalypse pelos usuários do TikTok, falando com uma geração que está crescendo em tempos turbulentos, sob crescentes ameaças políticas, econômicas e ambientais.”

De acordo com a especialista, peças com recortes e costura desgastadas são combinadas a calçados pesados e acessórios de corrente para um visual guerreiro futurista em uma atualização do estilo gótico. “Depois da onda de expressividade e de muito Dopamine Dressing, os designers estão investindo em uma proposta mais sombria, com apelo principalmente junto à Geração Z”, explica ela.

Trata-se de algo visível nas redes sociais. As hashtags #goth e #gothgirl têm milhares de publicações, de vídeos de “arrume-se comigo” a tutoriais de maquiagem, memes e até alguns conteúdos mais didáticos, que contam sobre a história da tribo e suas referências. Assim como quase toda subcultura, seus adeptos não pulam de tendência em tendência a cada semana. E fazem questão de deixar isso bem claro. Apesar de não ser apenas uma moda passageira para quem está inserido nesse universo, não tem como negar que os elementos clássicos dessa estética voltaram a fazer barulho.

@heartof.lilith GENTE NAO TEM NADA A VER!!! ib: @hatsumeniku #fyp #fy #paravoce #foryou #goth #gotico #alternative #alt #gothic #trend #egirl ♬ Mount Everest – Labrinth