Hora de aventura

Em alta na cultura pop e na internet, os RPGs de mesa ganham popularidade e um novo público mais jovem e diverso.

Com fama de mau e bom coração, o metaleiro Eddie Munson (Joseph Quinn) acabou virando um dos personagens mais queridos da quarta temporada de Stranger Things. Na série hit da Netflix, Eddie se vê envolvido em acusações de comandar uma seita satanista, quando, na verdade, era apenas o líder de um grupo de aficionados por RPG. Vecna e Demogorgons à parte, a perseguição à Eddie pela comunidade local tem base na realidade: na década de 1980, o RPG se tornou alvo de campanhas midiáticas promovidas por grupos conservadores, que o associavam ao satanismo e à criminalidade. Essa situação causou pânico entre os pais e autoridades, mas, claro, também ajudou a atrair novos jogadores.

Quase 50 anos depois, o pânico moral cessou – ou mudou seus alvos – e os RPGs vivem o auge de sua popularidade. Cada vez mais jogadores estão se reunindo com os amigos para ativar a imaginação e viver algumas horas de aventuras em outro mundo. Mas o que atrai tanta gente para esse universo?

Os RPGs de mesa como conhecemos começaram em 1974, com o lançamento de Dungeons and Dragons. O jogo de fantasia que reúne magos, bardos e bárbaros para combater o mal estabeleceu as bases para seus sucessores e ainda hoje é um dos principais no gênero. Em tempo: RPG é a sigla para role-playing game, algo como jogo de interpretação de papéis. Ou seja, cada jogador interpreta um personagem e tem de enfrentar os desafios que vão surgindo na narrativa do DM, o Dungeon Master (confira o glossário no fim desta reportagem). As partidas, ou sessões, como chamam os jogadores, podem se arrastar por horas e são repletas de reviravoltas e emoção.

A prática conquistou um lugar no cânone da cultura pop. Além de ser um elemento central de Stranger Things, rendeu referências em séries como Buffy e Freaks and Geeks, mantém um time de apoiadores proeminentes (como os atores Deborah Ann Woll, Joe Manganiello e o apresentador Stephen Colbert) e atingiu uma nova geração de jogadores, mais jovem, conectada e diversa, que enxerga nos jogos uma forma de socializar e compartilhar histórias. O futuro também é promissor: em 2023 a série Dungeons and Dragons ganha uma adaptação cinematográfica com Regé-Jean Page, Justice Smith e Chris Pine.

A ressurgência dos RPGs de mesa faz parte de uma mainstreamficação da cultura geek promovida pela internet, seguindo o exemplo do que ocorre com os quadrinhos e os videogames. “Os RPGs com certeza se tornaram mais populares após aparições em obras aclamadas da cultura pop”, explica Ade Ferrari, diretor de marketing da Galapagos Jogos, distribuidora das séries DnD e Vampiro a Máscara no Brasil. “O mercado de RPG no Brasil ainda tem muito o que ser explorado e desenvolvido, mas já cresceu bastante nos últimos anos, principalmente por conta do público que gosta de contar histórias e reunir amigos para conversar ao redor da mesa”, diz o diretor.

“A cultura geek sempre foi sobre encontrar pessoas com gostos semelhantes que gostam e se engajam muito em consumir e discutir certos produtos culturais, o que se encaixa totalmente na forma que se consome conteúdo na internet. E, com isso, entrou na moda uma certa nostalgia que tem favorecido bastante certos produtos, como o RPG”, analisa Beatriz Blanco, pesquisadora do Cultpop Lab e doutoranda em Comunicação pela Unisinos.

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Eddie (Joseph Quinn) ao fundo e os membros do Hellfire em momento decisivo do jogo: mundo imaginário, emoções reais. Fotos: Divulgação Netflix

Aventuras terapêuticas

Os RPGs conquistaram espaço também nos consultórios. Desde 2013, o Grupo D20 trabalha o desenvolvimento de habilidades sociais por meio dos RPGs de mesa. Nas sessões de psicoterapia em grupo conduzidas por psicólogos, a XP (confira o glossário) é obtida não só pelos objetivos da história, mas pelas interações sociais.

“Os pacientes muitas vezes entram no consultório com pouquíssimos amigos. Quando a gente monta esses grupos terapêuticos é muito bacana. O primeiro círculo de amigos deles acaba sendo o pessoal do RPG”, conta Germano Henning, sócio do D20.

Com o aumento da procura causado pelo isolamento da pandemia, hoje são 17 grupos, que reúnem entre 3 e 6 jogadores cada um. Germano afirma que a adesão dos pacientes no período de um ano é de quase 80%, comparada a média de 49% em meios tradicionais.

Transmissões online

Um marco importante no boom 2.0 do RPG aconteceu em 2016. Naquele ano, um grupo de atores americanos começou a transmitir suas sessões de Dungeons & Dragons, comandadas pelo mestre Matthew Mercer. Alguns anos depois, o Critical Role já reúne mais de 500 milhões de visualizações no YouTube, 1,2 milhão de seguidores na Twitch, uma série de livros e conta até com uma adaptação em animação, The Legend of Vox Machina, que teve a primeira temporada financiada pelos fãs antes de ser adquirida pelo streaming Amazon Prime. Esse sucesso atingiu o público dos games e das redes sociais, impulsionando um ecossistema online de dezenas de podcasts, canais e memes baseados nos RPGs.

O Brasil também teve um fenômeno online semelhante com Ordem Paranormal, campanha de RPG transmitida pelo youtuber e streamer Rafael ‘Cellbit’ Lange, em que os jogadores combatem forças ocultas. Com um pico de 130 mil pessoas ao vivo, a série ganhou um livro de regras para os fãs recriarem as aventuras, com versões em graphic novel e videogame planejadas para os próximos meses.

Sócio da Editora Jambo, entre as mais tradicionais no país, e um dos autores de Ordem Paranormal, Guilherme Dei Svaldi enxerga alguns fatores para o sucesso recente dos RPGs. Além do interesse gerado por Stranger Things e Game of Thrones, há também uma nova geração de jogadores, mais abertos aos jogos nacionais, e o aumento na demanda por interação social, efeito da pandemia. Nesse período de isolamento, novas formas de jogar se popularizaram por aplicativos como o Zoom, o Discord ou por plataformas específicas, como o Roll20. “Numa situação em que não era aconselhado sair de casa, o RPG – que permite que o jogador viva qualquer tipo de história e viaje a qualquer lugar – se mostrou um hobby supersaudável”, diz Guilherme.

“O RPG é uma ferramenta muito poderosa de conexão”, acredita Lucas Durão, fundador da Maré Filmes, produtora de Desaventureiros, websérie LGBTQIAP+ inspirada nos RPGs de fantasia. “Para mim, sentar com meus amigues e passar algumas horas contando histórias, todo mundo com a atenção em um mundo de fantasia, cooperando junto, é incrível. É minha coisa favorita.”

Inspirados por Critical Role, o grupo transmite suas sessões na Twitch desde 2020, mostrando o potencial do jogo de criar novas narrativas. “Como pessoas da comunidade LGBTQIAP+, contar histórias com representatividade sempre foi uma coisa muito importante para nós”, afirma Durão. “A cada espaço seguro que se cria, a cada porta que se abre, a cada pessoa que se acolhe e se empodera, cria-se a possibilidade de mais espaços assim. Eventualmente, outras pessoas decidem sair em aventuras e criar seus próprios espaços e, de pouco em pouco, a gente vai criando mais e mais espaços”.

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Glossário:

Campanha: O arco narrativo maior que envolve os personagens, como se fosse uma temporada de série. É composta por aventuras menores.

D4, D6, D20, etc: Refere-se ao número de lado dos dados que determinam as ações dos personagens. Um D6 é um dado tradicional, enquanto um D20 é um dado com 20 lados

DM: Sigla para Dungeon Master, o jogador que guia a história – papel de Eddie, do Stranger Things, no Hellfire Club. Pode ser utilizado também GM, abreviação para Game Master, ou storyteller.

HP: Sigla de Hit Points, os pontos de vida do personagem.

NPC: Non-Playable Character. São os habitantes do mundo do jogo não interpretados pelos jogadores. O DM é responsável por interpretar esses personagens.
XP: Sigla para experience points, os pontos conquistados como recompensas por objetivos dentro do jogo utilizados para evoluir os personagens.

Jogos para começar com os RPGs

Ordem Paranormal: Jogo sucesso na Twitch e Youtube, ideal para fãs de mistério e horror.

Dungeons and Dragons: Clássico do gênero, atualmente em sua 5ª edição, com foco maior no storytelling.

Tormenta: RPG brasileiro de fantasia que já vendeu mais de 200 mil cópias e está entre os mais jogados na plataforma D20