Antes de qualquer coisa, vamos aos dados. Hoje o salário mínimo do Brasil é de 1.212 reais ‒ e, de acordo com um levantamento da LCA Consultores, pelo menos 33 milhões de pessoas nem sequer recebem esse valor mensalmente. Ao mesmo tempo, segundo uma pesquisa de 2018 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os brasileiros gastam mais com beleza do que com comida. Naquele ano, colocamos 43,4 bilhões de reais em cosméticos, sendo que, dessa quantia, 19,8 bilhões vieram da classe C.
Ainda nessa pesquisa, descobrimos que brasileiros que ganham entre dois e dez salários mínimos comprometem até 1,3% da sua renda com itens para o nécessaire. A título de comparação, o arroz e o feijão ficam com apenas 0,68%. E mais: a mulher brasileira, em média, despende 1.530 reais por ano em produtos de beauté. Não à toa, somos o quarto maior mercado de beleza e cuidados pessoais do mundo. Quando falamos especificamente de fragrâncias, subimos no pódio e ficamos em segundo lugar.
E, pelo jeito, essa nossa fixação com o espelho tende a se intensificar. No caso dos procedimentos estéticos efetuados, de acordo com a SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia), só no primeiro trimestre de 2022 houve o aumento de 390%. O problema (entre tantos outros que a obsessão pela beleza pode trazer) é que estamos ficando cada vez mais endividados por causa disso. Em junho desde ano, os pedidos de empréstimos para questões estéticas atingiram a maior alta, contando os 12 meses anteriores. Segundo o IFE (Índice FinanZero de Emprétismo), registramos o aumento de 97% nesse tipo de transação.
“Isso tem a muito a ver com a era da perfeição dos filtros. Existe um abismo entre o que observamos no espelho e o que publicamos nos Stories do Instagram ou nos vídeos do TikTok”, justifica a pesquisadora de tendências Nina Grando. Levando em consideração que o Brasil é o segundo país que mais passa tempo nas redes sociais, dá para imaginar o quão gravemente esse tipo de comparação nos afeta. “Essa sensação de frustração gera desejo e encontra, tanto nas próprias mídias digitais quanto no mercado e marketing de beleza, respostas supostamente milagrosas para todos esses problemas”, continua Nina.
“Um bom exemplo disso são os tais ‘produtos virais’. As influencers de beauté menos responsáveis chegam com um discurso muito inflamado a respeito dos produtos que amam e esse tipo de conteúdo é capaz de convencer uma pessoa que já tem três hidratantes abertos em casa a comprar aquele que ‘transformou’ a pele da garota que ela segue e ama.” Some isso ao fato de que, na dermatologia, o que funciona em uma pele não necessariamente vai funcionar na outra. Isso também acaba prendendo as pessoas em um eterno sistema de tentativa e erro, que anda lado a lado com o endividamento. “Sem mencionar o fato de que, em geral, são raros os produtos baratinhos que ganham fôlego nas redes. Uma rotina de pele básica não custa tão caro. Agora a rotina de pele 100% focada em itens indicados pela internet pode chegar a valores bem mais expressivos”, completa a pesquisadora.
Linha tênue
Durante a pandemia, o mercado de skincare, bem-estar e beleza teve um boom. Um levantamento realizado pelo Twitter em parceria com a Black Swan Data revelou o crescimento de 47% em conversas sobre esses assuntos. Curiosamente, isso vem associado ao aumento de 39% nos debates sobre saúde mental. Ainda nessa pesquisa, descobrimos que as menções à palavra “autocuidado” também subiram em 20%. “A pandemia nos colocou em uma circunstância de isolamento social que se somou a um estado generalizado de medo, desespero e incerteza. Nesse contexto, os cuidados com a pele e os rituais caseiros de bem-estar serviram como uma válvula de escape para a maioria da população”, lembra Nina.
A questão é que essa associação direta entre skincare e bem-estar, muitas vezes, deixa de levar em consideração uma série de fatores problemáticos. Um dos perigos que moram ao lado desse hábito, por exemplo, é o consumismo desenfreado, que pode desencadear um quadro compulsivo de compras. “É preciso ficar atento para entender o quanto a movimentação compensatória pode ou não representar uma compulsão. Por exemplo, a pessoa que tem compulsão por compras compra porque está feliz, compra porque está triste, compra sempre no lugar de elaborar alguma emoção. E isso gera desconforto e sofrimento não só pessoal, mas também para quem está ao seu redor. O prejuízo do compulsivo, para além do financeiro, é de ordem emocional. É um ciclo de frustração, de dependência”, diz a psicóloga Tatiana Filomensky, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
“Se existe uma necessidade ou um desejo por beleza no Brasil, a gente não pode simplesmente ignorar ou considerar tudo isso como algo supérfluo”
Reinaldo Domingos, PhD em educação financeira
“A compulsão pode estar associada a diversos fatores. É preciso entender quais são os gatilhos que fazem alguém se comportar dessa forma. Há medidas de ordem prática que podem ajudar, como apertar o limite do cartão de crédito e diminuir o tempo nas redes sociais. Mas, por vezes, esse hábito é uma expressão de uma depressão ou de um desequilíbrio da ansiedade. Por isso, é essencial buscar ajuda”, indica a psicóloga Daniela Faertes, especialista em terapia cognitiva e mudança de comportamentos prejudiciais e membro da American Cognitive Therapy Association. “A urgência do tratamento se dá, principalmente, pela tendência à intensificação desses hábitos com o passar do tempo. Quanto mais demoramos para enfrentar o problema, mais ele se enrijece, fortalece e ganha vida própria”, alerta.
Acerto de contas
Pensando especificamente no endividamento que o consumo frenético de produtos de beleza pode acarretar, Reinaldo Domingos, que é PhD em educação financeira e presidente da Abefin (Associação Brasileira de Educadores Financeiros), pede muita calma nessa hora, inclusive sobre o julgamento antecipado. “Se existe uma necessidade ou um desejo por beleza no Brasil, a gente não pode simplesmente ignorar ou considerar tudo isso como algo supérfluo. Quem determina a importância e o espaço que certos setores têm ou não na nossa vida somos nós mesmos”, defende. De acordo com ele, o problema tem raízes mais profundas. “Historicamente, nós não somos educados para uma vida financeira saudável. Não fazemos orçamentos, não pensamos nas nossas prioridades, não entendemos o dinheiro como um assunto que precisa ser encarado, que faz parte de nossa vida e de nossas realizações pessoais. O resultado disso são finanças desorganizadas e uma sensação generalizada de culpa, que só atrapalha o processo.”
Ou seja, não precisa ser milionário ou ter muito dinheiro sobrando para poder gastar com beleza de uma maneira balanceada e inteligente. “A chave está em tomar decisões mais racionais e menos emocionais. Só que, para isso, é preciso se educar. É preciso abordar as finanças por uma ótica muito mais abrangente. Você precisa conhecer o seu dinheiro, saber para onde ele está indo, entender como é possível poupar sem cometer sacrifícios insustentáveis a longo prazo, principalmente porque, nesse meio-tempo, a vida ainda precisa ter brilho, ter alegria. É isso, inclusive, que nos catapulta a ter a capacidade e a energia de angariar mais fundos.” A tarefa não é fácil, tendo em vista o contexto brasileiro, mas o autor do best-seller Terapia financeira (2007) garante que o equilíbrio é possível. O primeiro passo é abrir bem os olhos e não ignorar o problema.