As novas batidas de Brown

Carlinhos Brown completa 60 anos, turbina a Timbalada, revive uma antiga banda de rock e será tema de biografias e documentários. Mas a maior comemoração será à frente do seu bloco, durante o Carnaval baiano.

É de Carlinhos Brown uma das melhores frases sobre os seus conterrâneos. “Baiano é que nem avião. Você pode achar que ele está parado, mas está se movimentando mais rápido do que todo mundo.” O cantor, compositor e instrumentista baiano levou à risca esse mandamento como poucos.

Em 2022, ano em que completou seis décadas de vida, ele deu início a uma série de projetos que se estenderão ao longo de 2023. Um deles é o álbum Carlinhos Brown é Mar revolto, grupo baiano de rock, do qual participou no início de sua carreira. Mais recentemente, turbinou a formação da Timbalada, combo de percussão que surgiu no início dos anos 1990, com três integrantes de sua formação clássica: os vocalistas Xexéu (do sucesso “Beija-flor”), Ninha (de “Água mineral”) e Patrícia Gomes (de “Toque de timbaleiro”). O voo de Brown segue por outras rotas, como a produção de documentários sobre a sua família e carreira artística, a serem lançados nos próximos anos.

 

 

Antonio Carlos Santos de Freitas tem uma trajetória singular na história da música baiana e brasileira. Ele não apenas integrou um grupo de rock como também foi um dos arquitetos do que se chamou de axé music. Brown (o sobrenome artístico, claro, faz referência ao pai do funk) participou do Acordes Verdes, conjunto que acompanhou Luiz Caldas e deu régua e compasso ao que foi o início da nova jovem música baiana.

Na década de 1990, Brown passou a ser reconhecido pelo alto escalão da MPB, tendo gravado discos ao lado de Sérgio Mendes e feito parcerias, entre outros, com Nando Reis, Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Com os dois últimos, formou o Tribalistas, um dos fenômenos recentes da MPB. O percussionista ciscou até pelo heavy metal: a faixa “Ratamahatta” marcou sua união com o Sepultura e tem uma linguagem tribal que deu uma nova cara ao rock pesado daquele período. O músico também chegou à TV aberta e fez parte do júri de The voice (Rede Globo) por quase uma década.

Brown tem oito filhos, sendo que quatro deles seguiram a carreira artística. Nina de Freitas é cantora, mora nos Estados Unidos e participou da trilha sonora de Rio 2 (2014), que foi composta pelo pai. Clara Buarque é atriz, participou de musical sobre os Novos Baianos e estrela a série Tudo igual só que não (Disney +). Chico Brown é coautor de cinco canções de Portas, o mais recente álbum de Marisa Monte, e participa da banda da cantora, e Miguel Freitas, o Migga, é baterista e atualmente integra o grupo Filhos da Bahia.

 



A seguir, Brown fala sobre Timbalada, a história por trás da música “Meia lua inteira” e a banda de percussão que criou formada apenas por mulheres.  

Como será o retorno da Timbalada? E por que ela voltou?
Ela nunca acabou, mas estamos retomando a formação clássica. Só não é a original porque Deus levou Fio Luna e Pintado do Bongô, que hoje são representados pelos filhos. Os pioneiros Xexéo, Patrícia Gomes e Ninha irão se reunir aos integrantes que têm mantido o nome da Timbalada para algumas apresentações especiais e para o bloco de Carnaval. Nunca quis que eles partissem, acho que a Timbalada enfraqueceu, mas não posso frustrar os desejos e os sonhos das pessoas. Mesmo que na carreira solo eles tenham replicado o repertório do grupo. Convidei todo mundo para o álbum novo. Está cheio de música linda, mas só vamos gravar se todo mundo topar. O grupo ajudou ainda a criar novos líderes. Houve um tempo em que deixei de mostrar os princípios da percussão para os novos timbaleiros porque eles já sabiam tocar e foram criando novas batidas. Bandas como Psirico e Parangolé são frutos diretos da Timbalada. 

A Timbalada pode ser vista como um elo de ligação entre os blocos afro e a axé music.
Ela é a caçula dos blocos afro. Mas o mais importante é que ela cumpriu o papel de segurar a axé music depois de um década de atividade. Toda a estrutura rítmica e sonoridade que mostramos ali foi incorporada ao movimento. Timbalada é um conjunto poderoso. Eu vejo muito como o grupo sueco ABBA: trouxe uma sonoridade pessoal, que não existia naquele período. Ninha, Xexéu, Patrícia Gomes, Alexandre Guedes, Augusto Conceição (filho do maestro Conceição) e Amanda Santiago (filha de Lui Muritiba, lenda do Carnaval baiano) foram importantes no desenvolvimento dessa sonoridade. Depois, coube a Rafa Chagas, Paula Santos e Guja impedirem que o grupo acabasse. Porque a Timbalada correu o sério risco de não existir mais.

 

 

O retorno dos ex-integrantes da Timbalada faz parte das suas comemorações de 60 anos. Quais as outras celebrações para essa data?
A maior delas, claro, será no Carnaval. Ali será a minha verdadeira celebração. Irei desfilar com o meu bloco, que estará aberto para quem quiser participar. Ivete quer cantar? Pois cante. Luiz Caldas pensa em subir e dar uma colaboração? Pois suba. Porque repertório é o que não falta. Serei também personagem de biografias e documentários.

O que já pode nos contar sobre isso?
A minha biografia em livro está sendo feita em colaboração com (o editor) Julius Wiedmann. Mais do que minha história, vai falar da minha família. Meu trisavô, por exemplo, era jurista e ajudou a escrever o Código Civil brasileiro. Já o meu avô foi o criador da Festa de Reis da Lapinha e da Concha de Itapuã, duas festividades bastante populares na Bahia. Mas havia certa restrição da família em contar a nossa história porque fizemos parte da Sabinada (revolta ocorrida no século 19 devido ao descontentamento contra o governo brasileiro). Foi uma das minhas tias, Flor, quem ressaltou a importância desse registro. O meu interesse nessa abordagem histórica nasceu também do fato de que esse trisavô se parece muito comigo, inclusive na loucura criativa: era um superviolonista e jurista. Foi para ele, aliás, que escrevi “Meia lua inteira”. São dois os homenageados: meu trisavô e (o amigo) Carlinhos, o sobrinho do Denis da Rocinha (ex-líder do morro carioca, onde Brown morou). Versos como “Grande homem de movimento/ Martelo do tribunal/ Sumiu na mata adentro/ Foi pego sem documento no terreiro regional” fazem alusões a essas duas pessoas.
Existem ainda dois projetos biográficos em andamento. Um documentário com Maurício Magalhães (sócio-fundador do Bloco Eva), que será exibido na HBO. E outro a cargo de Estevão Ciavatta (diretor de programas de TV como Esquenta e Central da periferia). Este, aliás, deverá cobrir toda a minha trajetória musical e está sendo feito com mais tempo.

 



“Meia lua inteira” foi uma canção marcante em muitos sentidos, não?
Sim, porque foi gravada pelo Chiclete com Banana com o nome de “Capoeira larará”. Mas, acima de tudo, emocionou Caetano Veloso, que foi às lágrimas quando a escutou pela primeira vez. Para Caetano, eu tinha acabado de contar a história dele porque o Convento de São Bento (que é citado na letra) apoiou as pessoas que eram perseguidas pela Ditadura Militar – entre elas o Caetano. Foi ele quem a batizou de “Meia lua inteira”.

De volta ao Carnaval, hoje os principais blocos de axé music estão baixando as cordas que separavam os foliões que pagaram pelo abadá do resto do público. O que acha disso?
Essa iniciativa começou comigo, né? E tomei muita porrada por ter feito isso. Dodô e Osmar começaram sem corda. Mas os grupos organizados do Carnaval acharam que essa atitude iria destruir a venda de abadás. Eu não liguei e continuei abrindo meus desfiles para o povo, e fiz até um camarote andante. Eu estava fazendo sucesso nos Estados Unidos e na Europa por causa da participação na trilha sonora de Velocidade máxima 2 (1997) e do meu projeto Carlito Marrón. Decidi então bancar financeiramente minha decisão. Em casa, por outro lado, todo mundo achava que eu era doido por gastar dinheiro sem ter um patrocinador de peso. Hoje, todo mundo acha lindo quando esse ou aquele bloco baixam as cordas. É um mérito coletivo.
O Carnaval não é mais para ser pago. Ele tem de ser patrocinado. Mas esse patrocínio tem de ser para o povo, para as pessoas e para o aparelho desse serviço. Porque muitas vezes a gente vê a cidade (Salvador) cheia de marca e pensa: “Puxa, o Carnaval da Bahia tá patrocinado!” Ora, está patrocinando a prefeitura, não a gente. Somos pano de fundo para grandes marcas, sem ver um resultado financeiro para a gente. Poxa, Carnaval é um trabalho de 365 dias.

 



Você disse que era um compositor de Carnaval, tal e qual Ary Barroso e Lamartine Babo também foram. Foi uma iniciativa para amenizar o preconceito contra a axé music?
Sim, a ideia era levantar a moral da axé music. Compor para o Carnaval é nobre e difícil porque você trabalha com a simplicidade. É o caso da minha melhor música de Carnaval, que é “Água mineral”. Ela se aproxima da linguagem de Lamartine Babo. Tem até um “Glória, glória, aleluia” no finalzinho da canção. É algo que deve ter ficado no meu cérebro, porque venho de uma família de protestantes e essa canção sempre fez parte do nosso repertório. Para mim, o Carnaval é a festa mais religiosa. Ela une mais, acaba o preconceito de qualquer um e toca no aspecto de se envolver com o outro. É responsável dentro da sua irresponsabilidade!

No início de novembro, você lançou o álbum Carlinhos Brown é Mar Revolto. Como nasceu o disco?
Mar Revolto foi a primeira banda na qual eu participei como músico. Eram uns roqueiros incríveis, do final dos anos 1970, que não apenas faziam música própria como acompanhavam a maioria dos artistas que iam se apresentar em Salvador. Aliás, foram pioneiros em levar a guitarra para os trios elétricos – antes, mesmo Pepeu Gomes só se apresentava com aquela guitarra baiana, que é bem menor. Mas, como diria Gilberto Gil, “o Mar Revolto teve tudo aos seus pés e não ligou”. Então, 12 anos atrás eu me pus a trabalhar num álbum do grupo, que trouxesse composições deles ao lado de minhas músicas, música de Gil e parceria com Michael Sullivan, além de participações de integrantes do grupo de heavy metal Angra e da cantora de rock pesado Tarja Turunen.

 



Você também criou uma banda de percussão formada apenas por mulheres. Era o Bolacha Maria, não?
Minha formação musical passa pelas lavadeiras de Salvador: elas faziam samba, tocando na bacia de água. E foi ali, escutando aquele repertório, que meu desejo pela percussão se acentuou. Queria então retomar o canto das lavadeiras e mostrar o talento da mulher na percussão. Porque naquela época a gente tinha apenas a Mônica Millet, que tocava com Maria Bethânia, a baterista de jazz Lilian Carmona e Rita Lee, que se arriscava no instrumento de percussão. Criei o grupo e fui muito bem recebido por aquelas meninas. Aliás, sabe quem participou da primeira formação? Lan Lan, que hoje brilha na banda de Maria Bethânia. Eu a chamo até hoje de “minha aluna mestra” de tão incrível que era.
O Bolacha Maria tinha uma proposta estética diferente. Até criei uns sutiãs com funil… Mas, em algum momento, o lado comercial separou a banda e virou As Meninas, do “Xibom bombom”. Aliás, sabe “Maria de verdade” (de autoria de Brown)? Era para ser cantada pelo Bolacha Maria antes de a banda se dissolver. Se não fosse Marisa Monte, a canção jamais seria gravada.

Por falar em Marisa Monte, por que não há composições suas em Portas, o mais recente disco dela?
Porque já tem outro Brown, meu filho Chico! Marisa fez a melhor coisa que poderia fazer por mim: me colocou para tocar percussão. Eu sentia muita vontade de participar de um trabalho como músico, ficar mais livre.