Calcinha na mão, cofrinho no chão: o retorno da cintura ultrabaixa e o que as periferias brasileiras têm a ver com isso

Tendência marcante da SPFW, o estilo tem bagagem histórica fincada em território nacional. Em terra de Valesca Popozuda, Paris Hilton não tem vez.

Era 2008, era Rio de Janeiro. O funk do então já consolidado Furacão 2000 reunia mais devotos do que qualquer outra religião, e toda adolescente carioca que transitava em espaços periféricos sabia que Valesca Popozuda era a referência de estilo do momento. Na época, o maior objeto de desejo era justamente a peça que destacava o atributo que a artista estampava no nome. “Calça da Gang/ Toda mulher quer/ 200 reais pra deixar a bunda em pé”, cantava DJ Saddam, o herói musical de uma era. 

A promessa do bumbum arrebitado, somada à ascensão de mulheres no comando dos bailes do Rio de Janeiro, transformou a calça da Gang, fundada pelo estilista Alcyr Amorim, em um ícone de moda. A fórmula era ousada e, talvez por isso, foi muito bem-sucedida. Cintura baixíssima, pencas de elastano, uma boa dose de strass e, se bobear, um cofrinho certeiro à mostra. Bingo! E há quem diga que quem disseminou a calça de cintura baixa no Brasil foi Paris Hilton. 

Com todo o respeito aos nomes globais, com menção honrosa a Britney Spears, mas a história do cós na altura dos ossos do quadril merece uma análise regional. Até pela maneira como o visual foi comunicado e vestido por muita gente.

Basta uma rápida pesquisa no Google para perceber que quase todos os looks de Paris Hilton com a calcinha à mostra ou até sem ela foram capturados por paparazzi, em situações em que a estrela parecia meio desprevenida, pega de surpresa. Não dá para saber se era encenação ou ingenuidade. Ainda assim, foram poucas as vezes em que a herdeira quis, intencionalmente, mostrar algum tipo de intimidade com suas roupas.

Por aqui, o que rolava era o extremo oposto. As calcinhas em evidência, assim como o contorno do fio-dental desenhado por horas debaixo do sol, não eram apenas propositais, como protagonistas das produções. E, para tal finalidade, não tinha nada melhor do que as calças da Gang.

Porém foi bem antes dos anos 2000 que o cós abaixo da linha do quadril, as lingeries aparentes e o infame espaço entre as partes de cima das nádegas começaram a dar as caras publicamente. A história é longa, passa por Alexander McQueen, esbarra no nosso clima tropical e chega à última edição da São Paulo Fashion Week. Mas, calma, tudo vai fazer sentido. É que, com o perdão do trocadilho, o buraco é um pouco mais embaixo.

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Valesca Popuzuda. Fotos: Getty Images e Divulgação

Entre as bumster trousers de Alexander McQueen e o Carnaval de Luiza Brunet 

Quantas vezes você viu alguém pagando cofrinho de propósito? Provavelmente pouquíssimas, talvez nenhuma. Em geral, sua aparição é fruto de um deslize, um descuido. Uma das primeiras vezes que apareceu na passarela, aliás, era para remeter a um ato involuntário de quem vestia aquelas calças ou saias meio caídas e abertas na parte de trás.

Foi em 1995, no primeiro desfile de Alexander McQueen. Antes disso, verdade seja dita, teve o vestido da atriz Mireille Darc no filme Loiro alto de sapato preto, em 1972. A peça foi desenhada pelo estilista francês Guy Laroche. A peça ganhou manchetes, mas foi artista de um hit só. 

De volta a McQueen, sua coleção de estreia, chamada de Highland Rape, referenciava os estupros cometidos pelas forças armadas inglesas em uma invasão da Escócia no século 18. Daí as modelos caminhando transtornadas, olhando para os lados assustadas e com medo, com roupas se desfazendo. Tinha seios pulando para fora da blusa, tecido rasgado preso na calcinha e muito cofrinho aparente.

Pois bem, mesmo quando a polpa superior da bunda entrou na passarela, não foi como um elemento puramente estético. Veio como uma provocação incômoda, simbolizando rastros de violência. Aquelas calças com cós baixíssimo foram apelidadas de bumster trousers. Bumster, em inglês, quer dizer “vagabunda”.

Na época, seja por ausência das redes sociais ou pela restrição do universo da moda, o assunto não repercutiu lá essas coisas no Brasil. E, se tivesse, provavelmente ninguém acharia um escândalo. 

Em 1995, Luiza Brunet já era famosa havia nove anos. Atriz, modelo, paixão nacional e musa do Carnaval, a mato-grossense brilhava com cinturas baixíssimas à frente da bateria da Imperatriz Leopoldinense, escola de samba carioca, que, inclusive, venceu o Carnaval naquele ano. Ou seja, bumbum quase de fora e desfile de umbigos já eram parte do imaginário popular brasileiro – ainda que oprimidos por olhares machistas e regulamentados por costumes bastante conservadores.

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À esq., look da coleção Highland Rape, de Alexander McQueen. No centro, acima, a atriz Mireilli Darc com vestido Guy Laroche no filme Homem alto de sapato preto. Abaixo, look do desfile do primeiro desfile de McQueen, em 1995. À dir., look do verão 2023 de Alexander McQueen. Fotos: Getty Images e Divulgação

Machismo, pluralidade corporal e cintura ultrabaixa

Já faz algum tempo que se discute a volta da cintura baixa. É compreensível, afinal é indiscutível como as mulheres magras têm permissão para usá-las, enquanto mulheres com corpos maiores são barradas e malvistas quando adotam o visual. Gordas, então, são uma minoria extrema. Encontrar imagens de cofrinhos e calcinhas à mostra que contemplem a pluralidade feminina é um exercício que exige fôlego.

É um desses casos em que a representação e a produção imagética não condizem com a realidade. Como alguém que nasceu e cresceu em um contexto de pobreza na Bahia, ver mulheres fora do padrão usando croppeds e deixando seus culotes saltarem para fora das roupas, com direito a belíssimos piercings no umbigo, era a coisa mais comum nos anos 2000. E continua sendo. E aí percebemos que o debate em torno da cintura baixa nem sequer chegou em boa parte das periferias. Nelas, o cós lá embaixo e a calcinha ou parte da bunda de fora sempre estiveram presentes. São parte da construção estética desses espaços. E a calça da Gang é só um exemplo.

“Acho que esse assunto gera tanta discussão porque o corpo da mulher é sempre um debate. Todo mundo gosta de opinar”, diz a artista plástica, modelo e cantora carioca Luiza de Alexandre, 25 anos. “Mas as coisas estão mudando. As pessoas começam a fazer, a vestir o que querem. Eu sempre fui essa pessoa. Com 12 anos, customizava, vestia uma roupa por cima da outra. Cada vez mais, entendemos que é tudo bem vestir o que queremos. A calcinha aparecendo, nossa, faz tempo que vi isso virar tendência. E logo adotei”, continua ela.

Contudo, a liberdade mencionada por Luíza ainda esbarra em algumas barreiras. Posturas machistas e a violência decorrente de uma sociedade patriarcal são ameaças constantes às mulheres. E isso se reflete diretamente na maneira como se vestem. “Apesar de ter um corpo fora do padrão de magreza, amo usar cintura baixa. Acho que me valoriza. Mas o cofrinho, a calcinha à mostra, na cabeça dos homens, é um convite. Vira ferramenta para o machismo. Sempre que a gente tenta ousar ou sair da nossa zona de conforto, somos julgadas por sermos mulheres”, comenta Luíza.

Sabe o sucesso da calça de cintura alta? Então, não é só porque a modelagem se adapta melhor a diferentes tipos físicos mais confortavelmente. Na verdade, o conforto vem também da segurança que dela emana. No caso, a segurança de estar com o corpo coberto, que, por outro lado, alimenta o conservadorismo machista. Aquele que julga mulheres que mostram pele demais, que acredita que uma calça justa, uma barriga de fora, é sinônimo de convite, de permissão.

“O grande problema do que acontecia na moda dos anos 2000 era o conservadorismo e a falta de compreensão da pluralidade de corpos”, diz  Luanna Exner, cantora paulistana e artista independente, de 28 anos. “Hoje, assumimos muito mais quem somos. Pensando nisso, a retomada da cintura baixa também pode ser sobre a falta de vergonha. Se isso faz você se sentir uma grande gostosa, use e abuse. Já vi amigas grávidas usando a cintura ultrabaixa e se sentindo poderosas. Ficaram a coisa mais linda. O debate é difícil, porque se incomodam com a nossa liberdade”, continua.

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À esq., Luanna Exner. No centro, Luiza de Alexandre, acima, e, abaixo,Luanna Exner. À dir., Luiza de Alexandre. Fotos: Divulgação

Mas e a SPFW, hein?

Na mais recente edição da SPFW, não faltaram cofrinhos e calcinhas aparentes e cinturas bem baixas. Entre as marcas que melhor souberam explorar a tendência estão Ateliê Mão de Mãe, Another Place, Dendezeiro e Walério Araújo, todas comandadas por estilistas nordestinos – e isso é importante frisar.

Não faz muito tempo, a maior semana de moda da América Latina era quase 100% composta de estilistas do Sudeste. A abertura e a expansão não se deram por livre e espontânea vontade. Foi preciso todo um movimento de profissionais e criadores das demais regiões do país para que uma imagem mais abrangente do que é moda brasileira pudesse começar a ganhar exposição. Ainda não é suficiente, mas é preciso considerar o avanço da malemolência. 

Sob o comando dos baianos Vinicius Santanna e Patrick Fortuna, a Ateliê Mão de Mãe trouxe a cintura baixa em peças de crochê vestidas por modelos com tamanhos e corpos diferentes. Um bom exemplo é o vestido usado pela apresentadora Letticia Munniz, com decote profundo na parte traseira e feito sob medida para ela.

“Criar peças para corpos plurais não é uma tarefa fácil, e com o crochê a complexidade é maior ainda. A cintura baixa sempre foi um grande sucesso no Brasil e retratamos nas nossas coleções um pouco daquilo em que acreditamos, pautados também pelo comportamento das ruas”, diz Vinicius. Para a dupla, a tendência só faz sentido se não for excludente. 

Na Another Place, do recifense Rafael Nascimento, a cintura baixa extrapola categorias de gêneros. “O underwear à mostra só reafirma o que acreditamos como marca: liberdade para usar o que quiser, da forma que quiser. Cada corpo é único e todos devem ter a liberdade de mostrá-lo da forma em que se sentirem confortáveis. Isso não deveria acontecer, mas a liberdade do outro, principalmente sexual, ainda causa incômodos na sociedade”, fala Rafael.

Walério Araújo sabe bem disso. Já são 30 anos de carreira batendo de frente com o conservadorismo e abraçando liberdades das mais diversas. Em seu mais recente desfile, não é diferente. Inclusive é dele a peça que, talvez, melhor ilustre o tema desta matéria. A saia mais libidinosa da temporada é longa, toda de veludo, com cintura baixíssima, cós bordado e estruturado para parecer que quem a veste está colocando, quer dizer, tirando a peça.

“A maior inspiração da Dendezeiro são as ruas, o que a gente vive e observa nelas, o comportamento, a identidade visual. E, em Salvador, a gente vê muitos corpos no ápice da sua expressão de identidade. Isso vira inspiração total”, diz Pedro Batalha, que compõe o duo da Dendezeiro com Hisan Silva. “Tentamos trazer o grito sexy para o streetwear e chocar com a textura e a modelagem. Quando a gente vem com a cintura ultrabaixa, ela entra no nosso design como uma conexão temporal. Resgatamos algo que foi tendência nas décadas passadas e o colocamos alguns passos à frente”, continua ele

E Hisan completa: “Mercadologicamente falando, considerando o nosso clima e como ele funciona, entendemos que muitas peças precisam de um pouco mais de ar”. O estilista menciona o clubinho fechado da moda nacional entre o eixo Rio-São Paulo e as inspirações constantes – quase únicas – no que se via e acontecia fora do Brasil. “Quando falávamos de como a  moda  acontecia em lugares mais quentes, com cintura baixa, crochê e peças curtas, costumavam colocar em um lugar de vulgaridade, como se não fosse moda. É moda sim. Ainda é uma briga, mas a democratização do mercado e a inserção de novas cabeças criativas, que olham para o nosso país de forma mais plural, conseguem pautar um novo olhar. Um olhar mais livre.” Bem como os corpos – e cofrinhos – de que tanto falamos.

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À esq., look de Walério Araújo. No centro, Dendezeiro, acima, e Another Place, abaixo. À dir., Ateliê Mão de Mãe. Fotos: Agência Fotosite e Divulgação