Manual de sobrevivência para um Natal sem partido

A tradicional festa do peru com a família nunca foi um evento de infinita harmonia. Tretas entre parentes são um clássico. Para este ano, a previsão é de piora. Reunimos aqui algumas reflexões e estratégias para uma noite feliz ou, pelo menos, de paz.  

O Natal chegou, mas o espírito natalino ficou na Lapônia. Na real, a festa símbolo de paz, amor e serenidade nunca foi unanimidade. Existe até uma sigla para definir o que vem antes – TPN, ou tensão pré-Natal. Algumas causas: sensação de bagaço, exaustão típica de fim de ano, melancolia pela ausência dos parentes queridos que se foram e ainda os fatais perrengues familiares da noite feliz. Sempre tem um parente sem noção – cunhado folgado, sogro autoritário, adolescente arrogante ou tia futriqueira – que protagoniza situações desagradáveis. 

Desde 2018, porém, o estresse nos encontros familiares cresce junto com a polarização política no país. As famílias se dividem em dois times. Muita gente passou os últimos tempos batendo boca com os parentes, acabou sendo defenestrada de grupo de WhatsApp ou até cortou relações com a família por divergência partidária. Esse Natal, portanto, promete ser explosivo! 

Arrisco um fator que soma tensão às clássicas tretas natalinas. O que parecia ser apenas pitoresco, folclórico na sua família, assunto de sempre dos primos quando se fala de Natal, ganha proporções ameaçadoras não só para você, mas para a sociedade. Assim, o tio que sempre tratou a mulher feito trouxa, servil e incapaz, era tido basicamente como um boçal. Agora, ele assume que é machista mesmo e misógino. Sem verbalizar, apenas declarando o voto e defendendo o seu candidato. O mesmo acontece com a parte da família que via seu irmão universitário como um moleque desajustado, de esquerda e “talvez até gay”. Causava desdém e pronto. Agora, o terror foi instaurado, pois o garoto representa tudo o que vem pela frente com o novo governo, considerado “comunista”. 

O forrobodó das reuniões em família foi parar nas redes, desencadeando memes aos borbotões. “Precisamos normalizar o Natal entre amigos porque ninguém aguenta mais parente” é um recorrente. O TikTok colabora com ideias do que fazer com os bests na noite do 24 – cineminha no quintal, noite de carteado e rodízio de massas, por exemplo.

 

@cartazembranco

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♬ Jingle Bell Rock – Bobby Helms

 

Entre as celebs, volta e meia um barraco vem a público. Dois meses atrás, o filho do cantor sertanejo Leonardo disparou no Twitter sua repugnância ao apoio do pai a Bolsonaro: “Me enoja”. João Guilherme disse que o pai “joga no time errado e está cego”. 

Já a ex-BBB Gizelly Bicalho foi menos grave e mais divertida. “Ei, Lula e Janja, o negócio é o seguinte: eu briguei com minha família toda e não tenho onde passar o Natal. Tem como eu passar com vocês? Aí eu preciso levar minha mãe e avó também. Pode ser?”, tuitou a capixaba. E dá-lhe seguidor desgarrado pedindo carona: “Oi, me convida também!”. Posso ir junto? Tô sem lugar pra passar o Natal”. 

No melhor estilo fina, elegante e sincera, a futura primeira-dama mandou bem na resposta: “Ah, íamos adorar, mas espero que após o dia 30 o amor e a união prevaleçam e as famílias possam voltar a se reunir em paz. Bjuss nossos”.

Enquanto isso, o mercado segue prosperando em qualquer cenário. A empresa Uber, por exemplo, está lançando tanto um serviço que reforça o espírito natalino como um que ajuda o sujeito a cair fora da festa. Nesse segundo, o comercial mostra um casal fugindo mais cedo da casa da família com o apoio de um esquema de reserva de carro. Já o outro serviço é uma nova mobilidade de corridas válidas para a Finlândia: o Uber trenó, que faz um passeio gratuito de duas horas pelas florestas cheias de neve da Lapônia, a região do Papai Noel. 

Por aqui, nem ele foi poupado pelo Fla-Flu político. O bom velhinho foi espinafrado nas redes, junto com o shopping que o contratou, o Garten, em Joinville (SC). O que teria desagradado eleitores desequilibrados: o personagem vestia vermelho e ainda havia rumores de que o cidadão votou no PT. Clientes esbravejaram no perfil do centro de compras, sugerindo até boicote ao estabelecimento: “Papai Noel comunista! Nem de longe deixo minha filha ver. Que vergonha Garten!”, “Noel Petista. Tô fora!”. Do outro lado, reações hilárias: “Gente, não queria decepcionar vocês, mas Papai Noel não existe, tá? É só uma pessoa com uma fantasia”, “Excelente jogo de marketing. O Shopping vai bombar. Parabéns”. E ainda: “Sorte do dia: você não é social media do Joinville Garten Shopping”.

O fato é que a árvore já está acesa e a dúvida que não cala é: o que a política separou o Natal vai unir? Há grande esperança, considerando que até a Primeira Guerra Mundial deu um tempo nas bombas e nos canhões no Natal de 1914. Rolou inclusive partida de futebol e troca de presentes entre soldados ingleses e alemães. Será que o grau de belicosidade da sua família é superior a um dos mais devastadores embates da história? ELLE pode ajudar.

Em prol de um Natal sem treta, na paz, preparamos um manual de sobrevivência, sem com isso sugerir que você abra mão de qualquer ferramenta de controle emocional. Mindfulness, pensamento positivo, escuta ativa, técnica 4-7-8 de respiração… Quanto mais potente o seu kit resistência, mais tranquilidade e prazer você terá ao digerir a sua ceia, provavelmente com alguns sapos.

@mariaynarasantos

chegou Natal! #natal #família #humor #paravoce #comedia #foryoupage #foryou

♬ som original – Maria Ynara Santos

Boa noite a todos, linda noite, boa noite!

Chegue sorrindo, distribuindo simpatia, felicitando toda a turma, inclusive a tia que votou no candidato homofóbico mesmo com a filha sendo lésbica. Poucos resistem a elogios: para a decoração, a comida, o astral dos convivas, o perfume da anfitriã ou o panetone sem glúten, sem lactose e sem açúcar trazido pela prima sem graça. Vai na elegância! 

Presentes com curadoria
Dar presentes é um sucesso desde que você capriche na curadoria. Por exemplo: deseja presentear a sua inteligente sobrinha com uma obra que colabore para ela entender o mundo em que vivemos. Daí escolhe um best-seller: Como morrem as democracias. Plano para matar de ódio a sua tremendamente reacionária irmã. Já o bolsonarista raiz, que acusa o irmão de defender bandido porque é contra armar a população, vai acionar vários gatilhos se der uma arminha para o sobrinho. Muita atenção nessa hora: os mimos sempre carregam uma mensagem e, este ano, ela deve ser da categoria neutralidade. O mesmo, inclusive, vale para a paleta de cores do ano: neutra. Veja abaixo.

Partido das cores
O caso do shopping de Joinville não é uma bizarra expressão isolada. A decoração natalina este ano virou verde e amarela em inúmeras casas. Porém, muito além de cor do PT, o vermelho é carregado de significados. Cor do coração, do sangue, do amor e também da raiva. Ele está associado à emergência, ao salvamento da vida, daí entrar nos carros do bombeiro e nas ambulâncias. No candomblé, é Exu; para o feng shui, é a cor do verão. Veste super-heróis – o Homem-Aranha, o Superman… E, uma curiosidade, o vermelho e o verde, igualmente contemplados na paleta tradicional natalina, são cores opostas e que se complementam! Mas não vá levar a tese da ciência das cores para dialogar com o tio radical, extremista, que sempre taxou você de maconheiro e comunista. A ideia aqui é planejar inclusive o look da noite, o que significa deixar no guarda-roupa o espírito da Copa e da Pomba Gira. Bota logo um bege sem partido e vá em paz.

É proibido falar
Este é um desafio para valer: não falar dos assuntos campeões de polêmica, futebol e política, em um ano de Copa e às vésperas da posse do presidente. Vai ser duro, mas segure a onda! É só uma noitezinha. Fuja também das expressões da categoria “acusação” quando entram num debate e, portanto, sinônimo de encrenca. A saber: ideologia de gênero, feminismo e patriotismo. Elas carregam sentidos ambíguos, como explica a publicação em e-book “Termos ambíguos do debate político atual: o pequeno dicionário que você não sabia que existia. “Patriota”, por exemplo, é adjetivo para quem ama e protege o seu país, mas é também como se define hoje o grupo que ameaça instituições democráticas, pedindo fechamento do Superior Tribunal Federal e intervenção militar. Mais alguns temas cilada para você evitar: “pintou um clima”, “a terra é plana”, “a terra não é plana”, “homofobia”, “kit gay”, “ex-presidiário”, “fake news”… Lembre: logo mais vem o feriado do Ano-novo para você discutir bastante e democraticamente os assuntos que te interessam. 

Desbaratina
Percebeu um climão na outra ponta da mesa? Aumenta o som da festa, chama para tirar foto, puxa outro assunto! Tanta coisa para falar nessa vida. Bênção mesmo é dispor na família daquela figura do “deixa disso”. Bem-humorado, bem “mineiro”, ele dá conta de acalmar os exaltados. 

Os gorós
Não desmoralize este nosso manual, cujo foco central é manter o controle das emoções. O álcool promove justamente o oposto. Quem bebe além da conta tem a capacidade de discernimento prejudicada, e também desembesta a falar mais e “pior”, no caso, sem os devidos filtros sociais, o que no delicado contexto natalino pode ser catastrófico. 

Por fim, não seja pessimista. Otimismo também pode não ser o caso. Lembrando o genial Ariano Suassuna, seja da esperança sem perder o senso da realidade: Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso”.  

Feliz Natal!

Esta texto foi publicado na ELLE View de dezembro de 2022. Clique aqui para fazer sua assinatura e ler a edição completa!