Qualquer pessoa que se proponha a analisar as práticas sexuais cotidianas na atualidade e diga que tem um manual de técnicas e soluções práticas para lidar com as questões que se apresentam a partir delas está aplicando um golpe.
Mesmo que as principais discussões possam ser agrupadas e sistematizadas para fins de estudo ou política, há especificidades muito numerosas.
O que, no entanto, não nos impede de abordar um ou mais pontos fundamentais a partir de diferentes teorias. Para uma frente importante da psicanálise, por exemplo, sexo não é um conjunto de características ou um ponto de origem, nem somente uma construção social. É algo que está envolvido com um verdadeiro terremoto na produção de sentido, com uma impossibilidade, com um lugar estrutural onde o sentido falha.
Não vou entrar por aqui porque o baque conceitual é forte, e a discussão sobre condições e consequências do que escrevi acima são muitas e estão em disputa, além do que exigiriam outra abordagem.
Mas citei isso, entre outras coisas, para argumentar que a psicanálise ajuda a sustentar algo que tem sido dito no debate sociocultural, político e midiático: a sexualidade não se origina a partir do objetivo de ter filhos. Ela não começa aí e depois é “deturpada”, conforme querem os fundamentalistas ou os defensores da supremacia do biológico. Desde o princípio está em jogo um excesso, uma coisa que não se encaixa nem pode ser reduzida a esse ponto zero da reprodução.
Também para a psicanálise, ou ao menos segundo seus teóricos mais importantes, a sexualidade não responde simplesmente aos órgãos sexuais. Isso a gente sabe sem precisar teorizar muito, prestando um pouco de atenção na vida, no que rola nas nossas experiências. Estou só demarcando aqui pontos de contato com discussões que rolam todo dia, o que nem de longe dá conta mesmo de uma porção da teorização envolvida, só para deixar dito.
Nas conversas de todo dia, que refletem, discutem, reproduzem e, com sorte ou não, criam muita coisa, papos sobre sexualidade quase sempre estão às voltas com pênis, vaginas e afins (não que a psicanálise sempre escape disso), em suas muitas atividades, aparições e combinações.
Durante alguns anos, quando era mais jovem, trabalhei em um jornal lendo cartas que leitores enviavam a vários especialistas, inclusive dois que falavam de sexo. Quase 100% dos homens tinham dúvidas e dramas sobre o tamanho do pênis. Entre as mulheres, dificuldades de ter orgasmos e a aparência de sua genitália eram maioria.
A atual profusão de anúncios de fórmulas milagrosas e notícias sobre influenciadores e suas operações de aumento peniano, cirurgias plásticas e multiplicação de tratamentos estéticos “íntimos” mostra que a coisa não mudou muito nesse sentido.
Muitos autores das cartas relatavam suas fontes de comparação genital: a pornografia. Hoje em dia, há muito mais diversidade de corpos e genitálias no universo pornográfico, mas ainda assim os números de buscas mostram um grande interesse e procura pelos ideais do garanhão e da jovenzinha, com corpo de adolescente ou da gostosa-padrão.
Vale reforçar nesse ponto que mundialmente os homens são os que mais consomem pornografia. Os resultados dos sites estão portanto mais ligados às escolhas deles e como elas são construídas e alimentadas social e culturalmente, no contexto da superexposição nas redes (com os novos acréscimos de TikTok e Only Fans), do mundo dos filtros, das “harmonizações” faciais e corporais, do nude compulsório, da capitalização de afetos, do racismo e de novos jeitos de naturalizar opressões. Mas também de tudo o que isso reprime.
Segundo pesquisas do setor, os três maiores sites pornôs do mundo têm combinados alguns bilhões de visitas por mês, batendo números de grandes canais de notícias e serviços de streaming. Não é pouca coisa e tem sua influência, mas também não é tudo.
De um lado, os jovens estão expostos a toda pornografia que puderem consumir e impactados por um discurso de que é preciso transar, ter todos os parceiros possíveis e sair bem no sex content etc. De outro, o discurso religioso predominante fala de sexo só no casamento, sexo reprodutivo, familiar, em oposição a todo tipo de condenação etc. E ainda um terceiro bloco promete uma sexualidade bem resolvida, um meio-termo onde tudo pode ser explicado, incluído em muitos contratos. Obviamente as estabilizações pretendidas não são assim superestáveis.
Mas, se olharmos esses três blocos, encontraremos talvez algo em comum: uma promessa de segurança, de um certo padrão. No primeiro a variedade aparece tanto como constante ocupação quanto como chance de escapar das armadilhas do tão temido apego, do tão temido compromisso, se entregando a um certo fluxo. Na segunda, o compromisso via casamento afasta o inferno cristão e lida com a tentação de experimentar estar com outras pessoas, de “cair no mundo”. Na terceira, a ideia asseguradora é de que há um meio-termo garantido por contratos, monogâmicos ou não, uma estabilidade politicamente correta e por isso saudável.
Vive-se assim? Sim. Mas não quer dizer que o que há para dizer sobre sexualidade se embale aí. A escuta é sempre muito importante. E ela nos traz notícias. Jovens que transam muito, mas dizem não sentir prazer. Nem orgasmos nem outro prazer num sentido mais amplo. Gente que está feliz em relações com muito companheirismo e zero transa. Gente mais velha que redescobriu o sexo. Gente que transa com a mesma pessoa há decadas e gosta. Gente que se relaciona com um e transa casualmente com vários. Gente contente com vários relacionamentos simultâneos que envolvem sexo. Gente que não quer transar. Gente que só quer transar. Gente que só consegue gozar sozinho com a tela. Eu poderia continuar indefinidamente.
Vamos adicionar aqui o fato de que um relacionamento, seja qual e como for, em geral não será constante em termos de tesão. E que uma pessoa que não está em um relacionamento também terá experiências e fases diversas no que se refere à sua vontade de transar e suas estratégias.
Vamos dizer também, de novo e em outras palavras, puxando o peixe de volta para a psicanálise, que o sexual não é sinônimo de transar. E também não é igual ao conjunto de tudo o que temos tesão de fazer ou deixar de fazer.
Mas, no dia a dia, como nós pensamos no que nos atrai, no que nos dá prazer, no que isso envolve nossos corpos?
A modelo Cara Delevigne falou há algum tempo sobre o que classificou como seu vício em conteúdos pornográficos. Ela disse que a pornografia entrega uma versão distorcida de como a intimidade deve ser. Mas disse também que sua família, muito rígida e moralista, fez com que ela se sentisse mal e rejeitada por desejar se relacionar com homens e mulheres, e que isso impactou muito sua relação com a própria sexualidade. Rica, bonita, jovem, bem-sucedida e enfrentando uma severa depressão.
Não digo isso para tirar conclusões, mas para dizer da fragilidade de coisas que temos como garantias, para dizer da nossa complexidade e das nossas complicações.
Mas o que seria então um caminho para uma relação saudável com a sexualidade? Acredito, e nisso não estou sozinha, que desautorizar discursos patologizantes, apostar nos encontros, na solidariedade, na luta contra as desigualdades brutais, ir contra a mercantilização do amor, dos corpos, da presença e do tempo, isso nos faz bem e renova nossas possibilidades de contato para além da opressão e da dominação.
Não existimos sem os outros, mas há em nós um laço, uma fita, um limite. Talvez seja isso, em paralelo à nossa criatividade amorosa, que nos ajude a inventar, na vida, expansões da liberdade e do prazer.