Um dos termos mais consolidados pela indústria da beleza na última década foi o famoso “autocuidado”. Critica-se muito sua redução banal a rotinas de skincare e fotos de influenciadoras relaxando em cenários de luxo, mas se perde de vista a amplitude do alcance dessa ideia.
Na obra de Audre Lorde, há uma distinção preciosa de tradução que separa o cuidado de si do autocuidado. O cuidado de si é algo que conecta, que está ligado ao amor e seu compromisso que se estende pelo tempo, que faz laço social. O autocuidado deriva de uma ilusão opressora e empobrecedora de vidas, uma ilusão que ao mesmo tempo que exige e proclama uma atitude autocentrada maníaca, entrega abandono e desamparo.
Você se “autocuida” na medida em que se posiciona como superior aos demais. A ideia de uma autonomia muito grande não só se constrói contra uma massa de dependentes e vulneráveis como a um só tempo parte de e cria um horizonte supremacista. O vulnerável e dependente é sempre o outro, aquele que falha diante das exigências de um mundo que se alimenta da desigualdade que produz.
O imperativo de se achar lindo, proclamar a própria beleza ou mesmo de não ligar muito para isso é uma das armadilhas desse jogo. É algo da estrutura do neoliberalismo: jogar nas costas e sob a responsabilidade do indivíduo algo que só pode ser construído socialmente, no laço.
“Enquanto muitos adultos autônomos pensam que estão cuidando deles mesmos, de fato, cada um de nós está no centro de uma rede complexa de relações. Há um fluxo contínuo que representa quanto cuidado uma pessoa necessita, e não uma dicotomia entre os que são cuidados e os que cuidam.” A reflexão da cientista política Joan Tronto, considerada uma das grandes renovadoras da teoria do cuidado, confrontando-a com o elitismo e o racismo das abordagens anteriores, nos faz pensar bastante.
A beleza em nossa sociedade é colocada não como um movimento, mas como um deslizamento de modelo em modelo. Cada modelo comporta um número de variações, e algumas delas oferecem mais vantagens sociais que outras.
Na ética do autocuidado o que impera é o cada um por si. Se vire com exercícios, tratamentos, dietas, e conquiste seu modelo. Quanto mais encaixado no alto da escada do status, melhor. Se não rolar, desça para a área do “se aceite”, mesmo sabendo que nessa organização você não passa de alguém com um autoprêmio de consolação, que terá de procurar reconhecimento em outros setores se quiser entrar no mercado dos que de fato importam, os que de fato contam.
O cuidado de si implica, nas palavras de Tronto, confrontar a “indiferença dos privilegiados”. Exige ligação, alteridade. Exige fazer com, fazer rede, criar espaço para existir junto, e não esperar uma pulseirinha VIP para entrar em um cercadinho onde nossa presença é um favor concedido.
A beleza fora da lógica capitalista se constrói em outras bases de relação. O olhar amoroso do outro tem tudo a ver com o amor que posso sentir por mim. Só que aqui ele não se organiza como posse e dominação, mas como curiosidade genuína, abertura e conexão. O amor não é cego, ele enxerga com outras lentes.
Nossa linguagem nos entrega. Sobre a pessoa bonita, dizemos que ela “se cuida”. Apagamos, inclusive, todo um universo de pessoas que tornam esse cuidado possível porque essas pessoas estão colocadas em lugares subalternizados.
Basicamente o que o tal autocuidado e muitas influenciadoras nos ensinam é a apagar pessoas, nos mostrarmos superiores inclusive em declarações artificiais e babacas de vulnerabilidade e, ainda por cima, atestarmos que estamos superbem resolvidos.
Esse esquema de coisas, não custa lembrar sempre, como nos ensinam Audre, bell hooks, Lélia Gonzalez, Fanon e outros intelectuais negros, segue a gramática racista, inclusive em termos de beleza. O que seria isso? Deve-se seguir o ideal branco, cujo percurso parte e chega à cor, mas não sem aceitar todos ou praticamente todos os elementos das lógicas de desigualdade e dominação. Aos brancos que vencem nesse game e chegam ao topo chamamos elite. Passa por aí o chamado pacto da branquitude, que é descrito como narcísico.
Pessoas negras também são levadas a embarcar nessa, mas, mesmo que tudo aceitem, mesmo que se posicionem direta ou indiretamente contra suas próprias existências e as dos seus, mesmo que alcancem algumas benesses, mesmo que façam o caminho mais bonito, mesmo que sejam os melhores ou os mais talentosos, mesmo que sejam os mais famosos, ao final da jornada ou na primeira brecha, num piscar de olhos, se verão empurradas de volta ao começo, sutil ou brutalmente lembrados das regras. Porque, no fim das contas, jamais serão brancos. Esse grau de perversidade e crueldade é adoecedor e tem potencial mortífero e destruidor.
Se o movimento negro tem trabalhado incessantemente para analisar e combater o efeito do racismo nas subjetividades, o mesmo não ocorre com os brancos. No fundo porque em vários graus estamos presos à supremacia, porque nos achamos ainda no lugar do invulnerável, incapazes de observar nosso adoecimento e o mal que causamos, inclusive a nós mesmos. A quem interessa manter esse estado de coisas?
Em dezembro passado, correram nas redes prints de posts de uma mulher branca chamando sua filha adotiva, um bebê, uma menininha negra, de feia. Sou, inclusive, contra a exposição e compartilhamento da foto da criança, mesmo como denúncia. Não podemos fazer disso entretenimento.
O fato de essa ser uma pessoa adoecida em sua capacidade de se comportar como um ser humano minimamente digno, o reconhecimento de sua decadência, não quer dizer de modo algum que ela não possa e não deva arcar com a crueldade de seus atos. Fazer com que as pessoas vivam as consequências de seu racismo é, ademais, um ponto básico em qualquer plano antirracista.
A ideia de beleza que temos está, nesses trilhos, fundada em bases de exclusão. Cuidar para que isso mude é uma questão que se coloca em termos de luta social. A nova beleza será solidária ou não será.