É proibido proibir: a moda, assim como boa parte do Brasil, quer o bloco do prazer

A vacina veio aí, e o fim de um governo de extrema direita, também. Agora, a moda quer gritar liberdade, viver com tesão e celebrar a beleza de ser quem se é.

Existe um pensamento batido, porém certeiro, de que a moda sempre reflete o momento histórico e social que acontece no agora. E, falando de Brasil, é até difícil catalogar o que enfrentamos ao longo dos últimos quatro anos. Teve pandemia, crise econômica, caos emocional e, de quebra, um governo de extrema direita conservadora que trabalhou ativamente pela opressão. Alguns perderam mais, outros menos, mas, para além do foro privilegiado, não houve quem passasse ileso. Em meio a tantas tragédias, o instinto de sobrevivência foi ativado – mas nem sempre com sucesso. O surto coletivo veio: quem não sucumbiu chutou, de alguma maneira, o pau da barraca. As relações mudaram. A importância que se dá a determinadas coisas também. O tempo, esse senhor tão bonito, virou artigo de luxo. Ninguém quer perder. E, voltando à moda nacional, a máxima inicial parece fazer sentido: rolou um movimento aí. E quem tem acompanhado as últimas semanas de moda, as ruas e os bailes já deve ter percebido que esse movimento é sexy. Viver com tesão e liberdade deixou de ser desejo e virou necessidade. Na força do ódio, mas virou. 

Livres por natureza

Desde que a covid-19 se instaurou e todas as suas duras consequências se tornaram palpáveis, sobraram teorias sobre o que seria esse tal futuro. Primeiro, houve quem jurasse que o moletom seria a nova camiseta branca, e que o conforto e a praticidade se estabeleceriam como critérios inegociáveis. A teoria despencou em poucos meses, quando, após o vislumbre da vacina, a atmosfera saiu da conformidade e adentrou o território da celebração. Daí, veio a certeza de que, uma vez que a pandemia fosse controlada, todo mundo sairia por aí de paetês e looks suntuosos. Entre tantas suposições, buscar respostas virou um exercício quase ingênuo, afinal, homogênea é uma coisa que a moda nunca foi. No entanto, falando em português, parece haver um consenso: ninguém mais quer se reprimir. 

“Acredito que todo movimento de contenção e restrição impulsiona uma resposta oposta a tudo isso. A gente acabou de sair de uma pandemia, de uma direita conservadora no poder, um momento de retrocesso de nossas liberdades. Isso gera um desejo contrário. As pessoas querem viver e se sentir como desejarem, explorar seus desejos. É um momento que vai ser potencializado com a chegada do Carnaval, o início de um novo governo, as vacinas em dia”, observa o estilista Pedro Andrade, à frente da Bold Strap. 

 

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Boldstrap. Foto: Divulgação.

 

Quem conhece o trabalho da Bold já sabe que o universo fetichista e o incentivo da autonomia sexual são intrínsecos à marca. Na última edição do São Paulo Fashion Week, em novembro do ano passado, a label trouxe alienígenas em um clima ultrapop e sem nenhum pudor às passarelas, uma coisa meio ondas psicodélicas gostosíssimas em uma praia neon. E, ainda que seja divertida, provocante e meio fora da casinha, a narrativa do desfile reflete sobre autoestima e valorização de corpos. 

“Apesar de sermos um povo de pouca roupa, quente e sensual, quem nunca se sentiu um completo alienígena na praia? Desconfortável com o próprio corpo, achando que precisava corrigir alguma coisa? Queremos que as pessoas enxerguem suas belezas e sintam orgulho de serem quem são. A gente não quer mais viver em um universo tolhido e cheio de regras. Queremos experimentar e sermos donos e donas dos nossos corpos, da nossa sexualidade e dos nossos desejos. O momento atual é uma virada cultural na liberação sexual de todos”, acredita Pedro.

 

Queremos experimentar e sermos donos e donas dos nossos corpos, da nossa sexualidade e dos nossos desejos.

Sem moral e bons costumes

O ímpeto expurgatório sentido pelo estilista parece ser compartilhado. Entre marcas, consumidores e gente como eu e você, bateu aquela vontade de sustentar os desejos, de se livrar do que não faz sentido, de bancar a nossa verdade, seja ela qual for. As etiquetas que já flertavam com uma aura sensualité abraçaram de vez a postura. E quem já não ligava muito em surgir com roupas instigantes por aí adotou códigos ainda mais desbocados. 

“Queremos experimentar novas formas, novas cores. A marca se faz a partir da troca, e entender o nosso momento, assim como o desejo das nossas clientes, é o que faz tudo ter sentido. É isso que cria a nossa identidade”, comenta Gabriela Cajado, fundadora da Cajá, que com pouco mais de cinco anos de vida equilibra técnicas manuais com o espírito das ruas.

 

Cajá

Cajá. Foto: Divulgação

 

Desvencilhar essa atmosfera dos últimos acontecimentos sociopolíticos do Brasil é inviável, mas vale pensar que, enquanto povo, a subversão sempre caminhou historicamente ao nosso lado. Afinal, colonização, escravidão, uma ditadura militar recente (são apenas 38 anos do seu fim) e todas as centenas de problemas sociais que vieram a partir disso deixaram cicatrizes eternas – especialmente para mulheres, pretos, pobres e LGBTQIA+. Tivemos que aprender a nadar no leite derramado e aperfeiçoar o jogo de cintura para sobreviver. Aí, quem vê o Brasil de fora acha que é tudo um grande oba-oba. Pode até ser, mas não tivemos muitas opções. Para continuar existindo, vale tudo. 

“Esse espírito livre, apaixonado e sexy que a gente tem veio através de uma necessidade de sobreviver. Foi preciso paixão para acreditar na vida, e não podemos esquecer dela na hora de fazer o que fazemos”, comenta Lívia Barros, que comanda a Ken-Gá Bitchwear ao lado de Janaina Azevedo. 

 

Esse espírito livre, apaixonado e sexy que a gente tem veio através de uma necessidade de sobreviver.

 

Na Casa de Criadores, que rolou no último dezembro, a marca fez o seu próprio Brasil core. Na paleta da bandeira nacional, foi adicionado o vermelho – o que dispensa maiores explicações. Já nas silhuetas, a ousadia característica da marca seguiu inabalável. Teve até uma versão atualizada dos caubóis, que chegaram bem viados e com franjas esvoaçantes. Aqui, sim, o agro teve um pouco de pop. 

 

Kengá

Kengá Bitchwear. Foto: Divulgação

 

“A energia de gostosa é o que fez a marca nascer, desde o nome. Como gostosa quero dizer livre, porque não existe nada mais delicioso do que uma pessoa sendo quem deseja ser. Gostamos de shapes simples, sem mistério, mas muito bem executados. Diversidade de corpos e gêneros é o mínimo. Me parece um pouco surreal que estejamos batalhando por isso ainda em 2023”, aponta Lívia, que também garante que a marca é apaixonada por tudo aquilo que é mundano e popular. 

Faz sentido: a Ken-Gá nasceu no Carnaval, e as primeiras peças foram desfiladas em plena avenida. E por falar Nele, com N maiúsculo mesmo, vale se preparar: a festa deste ano tem tudo para ser a maior celebração de rua de todos os tempos. Desde 1986, quando a primeira folia pós-ditadura aconteceu, nunca se viu nada parecido. Quem viver verá. 

O Carnaval que habito

Aos 11 anos, o artista e apresentador potiguar Raphael Dumaresq era só uma criança, mas já amava o Carnaval. Sua mãe, Maria das Graças, também uma grande foliã, sempre incentivava o filho, que hoje tem 27 anos, a se fantasiar. Foi em uma dessas que ela o vestiu de Pierrô. “Ela pintou metade do meu rosto de branco e a outra metade de preto, e desenhou uma lágrima em cada lado. Colocou uma touca de tecido com um pompom em cima e uma roupa de cetim cheia de bolinhas”, relembra. Ao chegar na escola, o menino foi motivo de chacota entre as outras crianças. “Me olharam e começaram a rir, apontar e gritar comigo. Travei, não consegui andar, e saí correndo para casa, cheguei chorando muito. Minha mãe me olhou bem afirmativa e falou ‘eu passei horas te pintando, volte para lá agora’. Na época, achei insensível, mas engoli o choro e obedeci. No fim do baile, fizeram uma eleição de melhor look, e eu venci. Isso mudou tudo na minha vida e trago até hoje essa memória”, conta ele, que já reproduziu o momento da infância na fase adulta e incorporou novamente o Pierrô. 

Para este ano, Duma estabeleceu até um tema para o próprio Carnaval. Todos os seus looks vão homenagear alguma matéria-prima. “Contarei histórias homenageando a palha, o plástico, as sementes. Sempre falo que a frase ‘tá tudo bem, é Carnaval’ é uma premissa brasileira, e faço dela uma verdade. Para mim, a essência do Carnaval é a liberdade, é a experimentação. Corpos livres comunicam revolução. Carnaval é uma revolução”,  afirma. 

 

Dumaresq

Raphael Dumaresq. Foto: Rudá de Melo

 

Quem compartilha da paixão entende o frisson. E, trazendo boas notícias, não faltam marcas, inclusive para além do eixo Rio-São Paulo, oferecendo peças que são a cara da folia. Sobram silhuetas curtas, estampas chamativas e volumes mil. Aqui, inclusive, há uma observação importante: nem sempre roupas coloridas são carnavalescas, especialmente se estamos falando de etiquetas que trazem pautas identitárias e raciais em suas narrativas. Cuidado para não confundir ancestralidade com bagunça. 

Um nome que pode falar com propriedade sobre isso é a Meninos Rei, dos estilistas baianos Céu e Júnior Rocha. Sempre trazendo uma trilha tipicamente soteropolitana nos desfiles, a última apresentação da marca no SPFW contou com a presença do artista baiano Márcio Victor, vocalista do grupo Psirico — os Beatles do pagode baiano. Nem as influencers sentadas na fila A seguraram o suingue, só não vale achar que tudo está no mesmo balaio. 

“A base do nosso trabalho é o tecido africano, a maioria deles vem diretamente da Guiné Bissau. As estampas tradicionais africanas, como a estampa Kente, trazem a identidade da marca. Alimentar e propagar nosso legado para as gerações futuras é a meta traçada. Mantemos vivas as nossas cores ancestrais com tinta forte, sabedoria, respeito e muita identidade”, comenta Céu. “Ainda existem pessoas e camadas que não enxergam valor nas suas origens, e sabemos que isso é um processo a ser percorrido”, completa Júnior. 

 

A gente não quer oito, nem oitenta. Só o bloco do prazer.

 

No fim das contas, o presente ainda está em construção, e é impossível dizer se esse sentimento coletivo vai perdurar. Talvez a gente se desanime e volte algumas casas. Ou, quem sabe, a libertação do ultraconservadorismo seja mesmo um caminho sem volta. Difícil dizer. Porém, mais importante do que ter respostas, é ter a liberdade de fazer perguntas. Como canta a eterna Gal Costa, a gente não quer oito, nem oitenta. Só o bloco do prazer.