Há seis anos, quando lançou seu álbum de estreia, Vai passar mal, Pabllo Vittar trouxe para o sol uma figura historicamente marginalizada, habitante mais das sombras que dos holofotes da música e da cultura pop em geral.
No caso de Phabullo Rodrigues da Silva, maranhense nascido há 29 anos na capital São Luís e criado entre o interior do Maranhão e do Pará, a identidade sexual gay encontrou proteção na capa da super-heroína drag queen Pabllo Vittar, que a princípio confundiu o público entre possibilidades cada vez mais complexas, entre travesti, transexual, fluida, não-binária, agênere e assim por diante.
Pabllo se tornou, para o menino gay Phabullo e para uma legião de fãs, uma agente transformadora que libertou a persona drag do confinamento nas noites de humor caricato em boates ou da saída à luz do dia apenas uma ou duas vezes ao ano, no Carnaval e nas paradas LGBTQIAP+.
Desde o início, com o EP Open bar, em 2015, a implosão de armários, guetos e diques de contenção foi ininterrupta, com ponto culminante no ensolarado Batidão tropical (2021). Agora, após oito anos de visibilidade crescente e além-fronteiras, a artista se permite voltar à sombra e lança seu quinto álbum, significativamente batizado Noitada e ilustrado por Pabllo caracterizada como um anjo de asas de arame farpado, peito nu e corpo lambuzado de graxa ou pintura indígena de guerra.
Os tons soturnos e noturnos substituem o pique folião e diurno de hits como “Todo dia” (2017), parceria com o rapper Rico Dalasam, que afirmava que “eu não espero o Carnaval chegar pra ser vadia/ sou todo dia” (e foi logo deletada das plataformas por desavenças autorais),“K.O.”, “Corpo sensual” (2017), “Problema seu” (2018), “Parabéns”, “Amor de que” (2019), “Clima quente” (2020), “Ama sofre chora”, “Zap zum”, “Bang bang” (2021) e outros. Em cerca de 20 minutos (mesma duração média da maioria de seus rápidos álbuns), Noitada atravessa uma madrugada na balada, investindo em revestimento sonoro eletrônico mais pesado que o habitual e se entregando sem muitos limites aos prazeres sexuais e químicos da noite.
A jornada se inicia ao lado da companheira drag Gloria Groove, com “Ameianoite” (lançada em single em outubro passado), na hora em que a carruagem de Cinderela volta a ser abóbora. Cai no bate-cabelo de pista de “Descontrolada”, sob os vocais punk funk de MC Carol. E envereda pelo perigo em “Balinha de coração”, ao lado de Anitta. “Ai, caralho, eu tô chapada”, anuncia Pabllo no interlúdio “Calma Amiga”, antes de entrar o refrão “quer provar, quer provar minha balinha de coração?/ hoje eu vou te dar, só não acostuma, não”, com voz em rotação acelerada que imprime um tom infantil inoportuno à noitada pesadona. “Ela bate forte e o teu corpo arrepia/ Babaloo banana, o dedinho caramelizando/ boto gostosinho, você vai ficar babando”, prossegue Anitta, até que Pabllo consolide, em melodia quase idêntica à de “Sua cara” (hit de 2017 com Major Lazer e Anitta), a brincadeira que não é (ou não deveria ser) de criança. “Prove minha balinha que é de coração/ derrete na boca e te dá tesão.” Para que não restem dúvidas, a faixa seguinte se chama “Derretida” e “ri na cara do perigo”.
Tema onipresente nas músicas de Pabllo e do coletivo de compositores Brabo Music Team, liderado por Rodrigo Gorky (nome por trás de Bonde do Rolê e Banda Uó), que acompanha a artista desde Vai passar mal, o sexo fala mais alto em “O penetra”, com o cantor de pagodão baiano O Kannalha, “Apetitosa”, com o funkeiro carioca MC Tchelinho, do grupo Heavy Baile, e o bregapop “Culpa do cupido”. “Meu corpo é bem avantajado e vai te pegar, mozão”, “se tu provou, gostou, chorou/ o que tenho a ver com isso?”, diz a letra dessa última, “foi culpa do cu, foi culpa do cu, foi culpa do cupido”. A jornada, como não poderia deixar de ser, termina com a semidesaceleração de “After”. A seguir, nossa entrevista com a cantora:
O que Noitada traz de novo em relação aos seus álbuns anteriores?
Em Noitada, exploro novos caminhos da música que até então eu não tinha (feito), como, por exemplo, uma pegada mais eletrônica. Esse novo projeto é um álbum pensado em todas as fases de uma noitada comigo, começando “Ameianoite” e terminando no “After”.
Por que você selecionou Anitta, MC Carol e Gloria Groove para participações especiais?
As três são minhas amigas e são artistas por quem eu tenho uma admiração enorme, cada uma com suas particularidades e peculiaridades, e todas vêm construindo uma carreira incrível no cenário artístico. Além delas, também convidei O Kannalha e MC Tchelinho. Sempre convido artistas que admiro muito para participarem comigo, sabe?
As referências ao k-pop em visuais, clipes e no álbum I am Pabllo (2021) e o single com Rina Sawayama no ano passado deixam mais evidente sua identificação com estéticas do outro lado do mundo. Qual é a origem da sua afinidade com o pop do Oriente?
Eu amo pesquisar sobre música, ouvir novos estilos que estão em alta no mundo, inclusive estou sempre ligada nos lançamentos da semana das plataformas de streaming. E, nesse movimento, acabei me apaixonando pelo k-pop. Eu sou uma artista e sempre reforço que nós podemos ser quem nós quisermos, quando quisermos. Sendo assim, busco trazer para a minha carreira elementos com os quais me identifico, e a estética k-pop é uma delas, assim como outras visuais e musicais que eu trouxe para essa nova era, por exemplo.
Artistas da música atual como você, Gloria Groove e uma série de outras apontam para uma transformação radical nos modos como a sociedade compreende gênero, sexualidade e orientação sexual. Em relação a isso, o que simboliza o beijo na boca entre você e Gloria no vídeo de “Ameianoite”?
Acho que nosso beijo significa nada mais que um beijo, mesmo. Vemos muitos beijos por aí em diferentes materiais audiovisuais e será que nos perguntamos “o que será que esse beijo simboliza”? Sabe? Ele faz parte do roteiro e é uma peça fundamental para o enredo do clipe. Todo beijo é válido, gente.
O coletivo Brabo Music Team abastece seu repertório de hits, em alguns casos com sua participação também como compositora. Como é sua relação com a tarefa de compor música pop? A obrigação de criar hits está sempre presente?
Eu amo compor e participar do processo de produção. Mas nem eu nem os meninos da Brabo trabalhamos buscando hits. Compor tem que ser um processo intuitivo, natural e divertido. Nós nos encontramos para compor quando conseguimos, fazemos algumas coisas online no meio do processo, mas sempre buscando fazer o nosso melhor quanto à arte.
A Forbes estadunidense já definiu você como a drag queen mais popular do mundo. Qual é a dimensão desse título? O que você pretende daqui para o futuro em relação a seu alcance global?
A gente não entende muito a nossa dimensão, mas desde sempre eu procuro ser uma pessoa extremamente ética e verdadeira com os meus sentimentos e com as minhas convicções e pensamentos. Sobre meu alcance global, pretendo cada vez mais chegar a lugares onde as pessoas ainda não me conhecem.
Embora você costume afirmar que é um menino drag e gay, a figura de Phabullo Rodrigues da Silva tem estado meio fora do alcance do olhar público, em contraponto com a onipresença de Pabllo Vittar. Por onde anda Phabullo?
Não sinto que esteja fora do olhar público. Quem me acompanha nas redes sociais me vê por lá todo dia dividindo um pouco do que faço, malhando, trabalhando, me divertindo etc. O que não está lá, tanto do Phabullo quanto da Pabllo, é porque são momentos que são melhores privados.
Como foi sua infância e adolescência nos estados do Maranhão e do Pará? Como essas origens repercutem na sua música?
Eu tive uma infância humilde, mas sempre com muito amor. Minha mãe é a pessoa mais importante do mundo para mim e posso dizer que, se não fosse pelo esforço, pelo amor e pela educação que ela me deu, eu não estaria aqui. Sobre as minhas origens do Maranhão e do Pará, eu as trago sempre comigo. Batidão tropical, meu quarto álbum, trazia muito essas referências do brega e do forró que são ritmos que marcaram minha infância e adolescência.
Em sua apresentação no Festival do Futuro, em 1º de janeiro, você mencionou que foi das primeiras artistas a empunhar a bandeira de Lula sem medo de perder trabalho e publicidade por isso. Como se dá essa pressão, e como você conseguiu escapar dela?
Não existiu uma pressão para que eu me posicionasse, até porque isso nunca foi uma dúvida para mim e para as pessoas que me conhecem e me acompanham. Vivemos quatro anos muito difíceis. Como eu sou muito enfática no que acredito e nas bandeiras que levanto, não tive medo de perder trabalhos por divulgar meu posicionamento.