Em 1979, um grupo de moradores da Rua do Maciel, no Pelourinho, cansou de ser rejeitado por ser de onde era e decidiu fundar seu próprio bloco para curtir o Carnaval. O centro da cidade enfrentava um estigma por causa do abandono do poder público e da marginalização, e o Pelourinho era um local onde muita gente pobre e negra vivia. “O Maciel era visto como um lugar de tudo que não prestava”, recorda Marcelo Gentil, vice-presidente do Olodum.
Quatro anos antes, uma turma da Liberdade, bairro na periferia de Salvador, era influenciada pelas ideias do movimento black power e dos Panteras Negras que vinham dos Estados Unidos. Antônio Carlos dos Santos, um jovem morador do Curuzu (também na região da Liberdade), filho de dona Hilda Dias (a mãe Hilda, do terreiro Ilê Axé Jitolu), decidiu fundar um bloco para fazer o movimento black power com sabor, cheiro, ideias e história da Bahia. O primeiro nome foi Poder Negro, rapidamente demovido da cabeça de Antônio Carlos. Eram os anos de chumbo da Ditadura Militar. E, sabe como é, para preto, o chumbo é dobrado. O nome, então, ficou Ilê Aiyê. Criado em 1974, o mais belo dos belos é também o bloco afro mais antigo do Brasil. Anos mais tarde, Antônio Carlos teria o nome do bloco vinculado à sua própria identidade, se tornando o Vovô do Ilê.
O bloco inspirou, ainda que de forma indireta, a história daquele grupo nascido na Rua do Maciel, o Olodum. Depois de uma grande crise financeira, o Olodum não desfilou no Carnaval de 1983. Muitos nomes deixaram o grupo, que se abriu para a chegada de João Jorge – ele escrevia os temas dos carnavais do Ilê. Entre as baixas do Olodum, estava Geraldo Miranda, o Geraldão, que aproveitou que um tal de Bob Marley andava fazendo a cabeça da galera em Salvador para criar o Muzenza do Reggae.
Deu para perceber como as histórias se entrelaçam? Sim, existe uma rede entre esses blocos afros, que são parte fundamental do Carnaval de Salvador e dão uma dimensão das contribuições negras para a folia. Não à toa, a ideia extrapolou as fronteiras de Salvador e inspirou a criação de blocos pelo Brasil afora, como o Ilú Obá De Min, que abre a folia paulistana, com mãos femininas tocando para Xangô nas ruas e anunciando para o mundo que é Carnaval.
Conheça a seguir a história de cinco blocos afros, que vão do samba-afro ao reggae, e escrevem capítulos importantes da luta antirracista no país, usando cultura, arte e educação como pilares de transformação de vidas pretas.
Ilê Aiyê, o pioneiro e o mais belo dos belos
Antônio Carlos dos Santos é vovô desde muito cedo. Antes mesmo de sonhar em ser pai, foi apelidado assim, na infância. E, desde 1988, ele se reconhece como Vovô do Ilê. “Ele é o bloco Ilê Aiyê. E o bloco Ilê Aiyê é Vovô”, diz uma publicação fixada no perfil do bloco no Instagram.
Àquela altura, o mais belo dos belos já conseguia colocar em prática o objetivo de ser uma ferramenta de valorização da cultura negra, além de um descobridor de histórias pretas que ficaram fora das páginas oficiais. Em suas letras, o bloco traz a negritude para o cotidiano, aborda a história de países africanos e empodera.
O Ilê também é uma escola, que leva o nome de Mãe Hilda Jitolu, entre várias outras iniciativas. A folia é puxada pela Band’ Aiyê, formada exclusivamente por afrodescendentes, com o intuito de mostrar que a música baiana não se resume à axé music.
Na última festa, em 2020, por exemplo, o tema era “Ilê foi Botswana: uma história de êxito no mundo”. Neste ano, será o “Centenário de Agostinho Neto: o herói da independência de Angola”, uma homenagem ao médico, que também era poeta e ativista do movimento negro.
Ano de formação: 1974
Quando sai? Sábado: Saída do Curuzu para o Campo Grande.
Domingo à terça no Campo Grande.
Olodum, um bloco do mundo e do samba-reggae
Marcelo Gentil, vice-presidente do Olodum, precisa fazer uma pausa para lembrar a quantidade de países por onde o bloco já passou. Entre intercâmbios culturais e shows, são mais de 60 os lugares que puderam ouvir o famoso samba-reggae, criado pelo mestre Neguinho do Samba, que, como resume Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, é quase como uma brincadeira de perguntas e respostas entre os tambores.
O bloco do Maciel-Pelourinho foi fundado por Carlos Alberto Conceição (Carlinhos), Geraldo Miranda (Geraldão), José Luiz Souza Máximo, José Carlos Conceição (Nêgo), Antônio Jorge Souza Almeida (Vô), Edson Santos da Cruz (Bobo) e Francisco Carlos Souza Almeida (Gordo).
A chegada de João Jorge em 1983 mudou os rumos do Olodum – vieram a banda e os projetos sociais. Um dos carnavais apontado como divisor de águas foi o de 1987, ano de lançamento da música “Faraó”, composta por Luciano Gomes e imortalizada na voz de Margareth Menezes, hoje ministra da cultura. Foi o primeiro samba-reggae gravado na história.
No mesmo ano, veio Egito Madagascar, álbum de estreia. E vale lembrar que, ao longo dos anos, o Olodum transformou a vida de muitas pessoas, caso da própria Margareth, mas também de nomes como Pierre Onássis, Irmão Lázaro e Tonho Matéria. Hoje, a banda é comandada por Lazinho e Lucas di Fiori.
Spike Lee e Michael Jackson filmaram em 1995 o clipe de “They don’t care about us” com o bloco no Pelô. Paul Simon gravou com eles “Obvious child” (1990) e levou a banda para se apresentar em um Central Park (Nova York) lotado. A Rua do Maciel, antes rejeitada, virou sinônimo de transformação.
A banda Olodum irá desfilar no Carnaval de Salvador com o tema “Tambores: a batida do coração – Caminhos da eternidade”, que traça um paralelo entre a utilização dos instrumentos na contemporaneidade e sua função ainda potente de reunir pessoas e comunicar por meio do toque. O foco da banda será nos tambores de Gana e na cultura dos povos Ashanti.
Ano de formação: 1979
Quando sai? Sexta: saída do Pelourinho para o Campo Grande.
Sábado: Itabirito-MG.
Domingo: Barra-Ondina.
Segunda: Porto Seguro.
Terça: Campo Grande.
Muzenza, Bob Marley e o suingue da cor
Se o Ilê é um bloco de samba-afro e o Olodum de samba-reggae, o Muzenza bebe no reggae. Inspirado em Bob Marley, foi fundado por Geraldão em 1981 para misturar ritmos de candomblé e a música jamaicana. Assim como o Ilê, nasceu no bairro da Liberdade e seu nome é uma palavra de origem bantu-kikongo e significa “Yaô de Nagô” (yaô são pessoas iniciadas no candomblé).
O primeiro desfile do Muzenza aconteceu no Bonfim, no mesmo ano de sua fundação, na Cidade Baixa, saindo em cortejo em direção à Ribeira.
Quase 5 mil homens comemoraram o que Geraldão classifica como o Novo Mundo, nascido no dia 5 de maio.
Um dos maiores sucessos da carreira de Daniela Mercury é do Muzenza. “Swing da cor”, assim como “Faraó”, foi escrita por Luciano Gomes.
Ano de formação: 1981
Quando sai? Sábado e terça: Campo Grande.
Segunda: Barra-Ondina.
Cortejo Afro, o caçula
O bairro da Liberdade é o umbigo da maioria dos blocos afros de Salvador. Esteve no caminho das Batalhas pela Independência da Bahia, com o Pirajá como epicentro. Foi lá onde nasceu o Cortejo Afro, em pleno 2 de julho de 1998, dia da independência do estado. Alberto Pitta foi diretor artístico do Olodum por uma década e meia. Apaixonado por arte, ele queria ver um bloco que trabalhasse com a ideia de fazer da avenida uma grande tela. Ou mesmo uma passarela gigantesca, a céu aberto.
Para ver esse sonho sair do papel, Pitta pediu a bênção de sua mãe, a Yalorixá Santinha, do Ilê Axé Oyá. Ele conta que sua intenção ao fundar o Cortejo era resgatar as cores, sons e ritmos do Carnaval, que entendia estarem apagadas.
Daí veio a introdução predominantemente do branco sobre branco, o azul e prata, que são cores de Oxalá. Já os grandes sombreiros, segundo Pitta, “visam passar o visual dos reinados das tribos africanas, especialmente de Benin e Costa do Marfim, dentre outros países africanos”.
Ao longo de sua história, o Cortejo Afro contou com parcerias que foram desde Caetano Veloso e Gerônimo até de Björk. “Mouths cradle”, uma das faixas de Medúlla (2004), disco da islandesa, ganhou remix com participação tanto do Cortejo quanto do Ilê. Björk esteve no Carnaval de Salvador no mesmo de 2004 e participou do desfile dos dois blocos.
Ano de formação: 1998
Quando sai? Sexta: Campo Grande.
Domingo e segunda: Barra-Ondina.
Didá Banda Feminina, exclusivamente para elas
Neguinho do Samba era um homem inquieto. Mestre regente do Olodum e criador da batida do samba-reggae, foi questionado por sua filha onde estava a mulherada nessa história. A pequena Débora acompanhava o pai e tinha a vocação para os tambores.
Depois da parceria do Olodum com Paul Simon, Neguinho do Samba comprou e reformou, com ajuda do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (iPad), o casarão que virou sede da primeira banda de percussão só de mulheres do Brasil, nascida em 1993: a Didá Banda Feminina.
Didá é uma palavra em iorubá que significa “poder da criação”. Com essa força em mãos, a banda conquistou artistas como Anitta e Shakira. A cantora colombiana tocou com a Didá na abertura da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. Já Anitta contou com a banda feminina do Pelourinho na gravação do clipe de “Me gusta”, que chegou ao topo de reproduções no Spotify global.
No Carnaval de 2023, o tema do bloco será “Afrofuturismo: o algoritmo dos búzios”.
Ano de formação: 1993
Quando sai? Sexta: Campo Grande.
Segunda: Barra-Ondina.