Você não precisa ter lido Shakespeare para conhecer um pouco da história de Romeu e Julieta. Diferentemente de outras obras de seu tempo, o clássico da literatura não é uma tentativa de adocicar o amor ou apresentá-lo como um sentimento acalentador. Ali, ele é a causa de violência, intolerância e morte. Talvez até seja mais um retrato da insanidade do que do romantismo, dada a rapidez com que começou e acabou.
Pelo menos até perto do fim. Em uma alteração na ordem sociopolítica da época, os personagens se colocam contra a tradição, representada pelo casamento arranjado, e inauguram a chance da escolha, da opção. Parece banal, mas, como definidor da expressão cultural, foi um movimento e tanto. Daí em diante, mudou mais ainda. Hoje nem toda mulher sonha com o tal grande dia, algumas preferem a Julieta ao Romeu e, claro, nenhuma está disposta a morrer de amor.
Porém, ao longo de toda a evolução, algo permaneceu intocável: o fascínio pelo vestido de noiva. Desde o clássico, feito em branco, até os mais populares, a peça tem uma capacidade extraordinária de infiltração na história. O tecido escolhido pela rainha Elizabeth II, por exemplo, foi comprado com cartões de racionamento no pós-guerra. Yoko Ono contrariou as tradições com um conjunto de blusa e minissaia nos anos 1970. Na mesma década, Bianca Jagger preferiu um terno branco de Yves Saint Laurent. Mais recentemente, Hailey Bieber e Zoe Kravitz confundiram os limites entre a passarela e o altar.
Fendi, verão 2023 de alta costura; Simone Rocha, verão 2023. Fotos: Divulgação
O curioso é que, em vez do que se costuma observar na moda, o vestido de noiva não reflete necessariamente a época em que foi feito. Trata-se de um amálgama complexo entre influência religiosa e tendência midiática, ordem patriarcal e sonho pessoal. Séculos atrás, as soluções para esse cabo de guerra de opostos eram poucas. De acordo com o livro Byzantine women, de Lynda Garland, cada elemento nupcial, do véu à cor branca, foi criado para simbolizar a entrega de uma donzela virginal e intocada.
Apesar das tantas conquistas, transformações e liberdades, são visões que ainda assombram algumas mulheres. No entanto, esses conceitos antiquados também elucidam aquelas que, em um aceno inconsciente à rebeldia de Romeu e Julieta, desejam interromper a tradição. Para essas, há uma geração de estilistas determinada a repensar as convenções, renunciar às expectativas sociais e posicionar a noiva no centro sem nenhum remorso.
“O meu trabalho não é só desenhar a peça. É também ser amiga, psicóloga e me dedicar a entender os sonhos e inseguranças da cliente”, diz Ana Luisa Fernandes, diretora de criação da Aluf. Nascida em Belém, a designer atendeu oficialmente sua primeira noiva em 2019. Embora tenha se tornado um braço na empresa, Ana se limita a fazer apenas dois modelos nupciais no ano, para garantir que cada uma receberá a atenção necessária.
A longo prazo, a estilista pretende lançar uma coleção cápsula com modelos pré-disponíveis. Enquanto isso, aproveita para explorar tecidos especiais, fazer trabalhos manuais e experimentar formas inusitadas. “Tive uma noiva, a Ana Carolina, que confiou inteiramente no meu trabalho e fizemos dois vestidos com matérias-primas que sempre quis usar: a palha de seda e a tela de rami.”
À medida que as praxes são rompidas, mais mulheres rejeitam a ideia de um vestido tradicional, algo que Carlos Bacchi acompanha de perto. O gaúcho se estabeleceu no mercado nupcial ao propor uma imagem minimalista, quase arquitetônica. Quando perguntado, ele faz questão de afirmar o seu respeito por todos os materiais, mas explica as complicações da indústria têxtil: “As rendas, para mim, perderam um pouco o valor. As poucas legais são difíceis de acessar pela conversão da moeda internacional”.
Da escassez, o estilista manipula o apelo eterno de um bom corte. Para ele, o encantamento está justamente no fato de ser esse um dos poucos itens pessoais em uma cerimônia de casamento. “Tudo é feito em dupla, as decisões são tomadas em conjunto, mas o vestido é só da noiva, individual, um jeito de se manifestar sozinha em um cenário que não é de uma só pessoa.”
É essa pessoalidade que abre os caminhos até o altar para uma noiva que se parece com ela mesma, que se inclina para um design originalmente seu, e sem se desculpar por isso. O tema foi central na temporada de verão 2023 de alta-costura.
Ao contrário do que a literatura e o cinema disseram, o casamento não é o anseio mais importante na vida de uma mulher, nem sequer é uma obrigação. No entanto, caso assim deseje, a noiva merece se vestir exatamente como gostaria
Na Chanel, a noiva surgiu com um vestido curto coberto por andorinhas e, no pescoço, uma gravata-borboleta. Era uma interpretação fácil, descolada de regras e divertida. Isso só acontece quando impor algo às mulheres não é do feitio do estilista. Na Valentino, a noiva era ousada e tinha um decote profundo nas costas, que expunha a lateral de seu seio. Haider Ackermann, designer convidado por Jean Paul Gaultier, optou por um catsuit escamoso. Na Viktor & Rolf, o vestido estava literalmente de ponta-cabeça.
Jean Paul Gaultier, verão 2023 de alta costura; Viktor & Rolf, verão 2023 de alta-costura. Fotos: Divulgação
À parte o mercado nupcial, revisar as tradições já é um esforço antigo da moda. Lembre, por exemplo, do vestido que mais parecia um ovo Fabergé apresentado em 1965 por Yves Saint Laurent e, claro, do trabalho incansável feito por Vivienne Westwood em sua linha Bridal.
Ao contrário do que a literatura e o cinema disseram, o casamento não é o anseio mais importante na vida de uma mulher, nem sequer é uma obrigação. No entanto, caso assim deseje, a noiva merece se vestir exatamente como gostaria, sem pressões patriarcais, familiares ou religiosas. Talvez seja como uma divindade minimalista, como um ícone de moda ou como uma jovem pouco ortodoxa. Talvez não seja nada disso. O que importa é ser tão única quanto a sua história de amor.