Maiores eles vêm, mais forte elas caem

O infrator que está levando as mulheres ao chão é a nova obsessão das passarelas. Sim, saltos em alturas vertiginosas estão de volta. Por quê?

Era o inverno de 1993 quando Naomi Campbell caía na passarela de Vivienne Westwood. Calçando uma plataforma de quase 30 cm, não teve pressa para se levantar ou voltar ao carão. É que, entre as próprias risadas, aquelas de quem é poderosa demais para se deixar abalar por um tombo, ela sabia como fazer história. Anos depois, em entrevista à imprensa, a modelo revelou que, após o episódio, alguns estilistas, na tentativa de criar cenas midiáticas, lhe pediram que forjasse quedas em seus desfiles. Naomi, claro, nunca aceitou. 

Aquela, porém, não foi a primeira nem a última vez que uma modelo foi ao chão por causa da altura de um sapato. Os vídeos desses momentos foram transformados em um gênero à parte. Mas, diferentemente da irreverência protagonizada por Naomi, as narrativas constrangedoras se tornaram dignas de compilações inteiras no YouTube e conteúdos virais no TikTok, sem nunca faltar materiais novos. É que, ao que parece, há o estranho fascínio de assistir a humilhação pública, especialmente de pessoas bonitas em contextos glamourosos.

Você deve ter se deparado, por exemplo, com o vídeo de Kristen McMenamy no verão 2023 de alta-costura da Valentino. Usando um vestido brilhante e luvas rosa-choque, a modelo, que desfila desde os anos 1980, foi vista cambaleando até sucumbir à gravidade e bater com os joelhos na passarela. Embora convidados sentados na fila A, incluindo a rapper Doja Cat, tenham corrido para ajudá-la, Kristen foi mais rápida: tirou o escarpim do pé, se levantou e andou o restante do caminho descalça com a cabeça erguida. Em um dado momento, jogou os sapatos, que até então segurava, no chão.

salto

Na temporada anterior, ainda em Valentino, calçando plataformas altas, diferentes modelos tropeçaram. Em comunicado, a marca italiana explicou: “Após o ensaio, os talentos foram questionados se estavam confortáveis e foram oferecidas opções alternativas de calçados. Além disso, tiras de segurança transparentes foram adicionadas aos sapatos para garantir maior estabilidade”. Apesar de a passarela da casa ser um palco constante de quedas, situações semelhantes também aconteceram recentemente em Fendi, Dior, Balmain, Jean Paul Gaultier e Diesel. 

É aí que vem o dilema: quando já se sabe que um salto alto pode ser a fonte de estresse, desconforto e até perigo, por qual motivo os estilistas insistem na aposta? É importante ressaltar que essa é uma pergunta de caráter retórico, pois não há respostas certas ou erradas para ela. Voltar à história, porém, pode ser um tanto elucidativo. 

De certa maneira, os sapatos não passaram por grandes mudanças. O mais antigo deles, encontrado na Armênia, foi feito de couro bovino e se assemelha ao que hoje é conhecido como mocassim. Arqueólogos dizem ter sido projetado para caminhadas de longas distâncias. Em entrevista ao grupo National Geographic, em 2010, Manolo Blahnik afirmou: “É impressionante como ele se parece com um calçado moderno”. 

No entanto, quando se trata do salto alto, há uma disparidade em sua história. Todos os sinais indicam que, desde o princípio, a sua ascensão se relaciona à vontade de telegrafar poder. A prova disso poderia ser uma menina virtuosa cujo sapato de cristal a elevou a outro patamar social: Cinderela. Nesse conto, e em outros semelhantes, da Europa à África, os icônicos saltos da protagonista representavam magia, sonho e às vezes até utopia. Voltando à realidade, há um caso que exemplifica bem a inversão de prioridades. Lá pelo século 18, foi no salto que o rei da França, Luís XIV, com seu 1,60 m de altura, encontrou a capacidade de se sentir imponente enquanto autoridade. 

Ele introduziu a ideia à corte, restringiu o uso aos homens e mulheres da nobreza e, em pouco tempo, o uso do salto havia sido adotado pela realeza de toda a Europa. Mas a aposta em nada tinha a ver com funcionalidade e conforto. Era sobre a transmissão de um senso de exclusividade, distinção e riqueza. 

Corta, então, para a temporada de inverno 2023. Na Ferragamo, Maximilian Davis voltou ao passado, quando os sapatos da etiqueta eram os favoritos de Marilyn Monroe e Audrey Hepburn. Referenciando um modelo feito de ouro 18k, lançado em 1956, os escarpins ressurgiram com um salto agulha inclinado, quase torto. Na Dior e na Saint Laurent, havia opções semelhantes. Enquanto isso, JW Anderson fez de suas iniciais a forma dos saltos, Simone Rocha abandonou as sapatilhas em favor das plataformas e, com meias-patas enormes, Victoria Beckham canalizou a sua Lady Gaga interior.  

Era de esperar que, desde o reinado de Luís XIV, muito houvesse mudado no mundo e na moda. Entretanto, de alguma maneira, a sua ideia de um sapato feito para se exibir, em vez de andar, permanece viva. 

Com ironia e humor, em seu último desfile, AVAVAV pareceu refletir sobre o tema. “Eu pensei em qual seria a coisa mais embaraçosa que poderia nos acontecer”, afirmou a diretora criativa, Beate Karlsson, em um comunicado. É aí que, enquanto as modelos caminhavam, intencionalmente as minissaias se abriam, os tops se desabotoavam e os sapatos de salto, bem, se quebravam. Existia um argumento sobre o fracasso, o constrangimento e a superficialidade de uma moda que, ao criar meras ilusões, beira o colapso.

 

Ver essa foto no Instagram

 

Uma publicação compartilhada por AVAVAV (@avavav)

A etiqueta derrubava em sentido literal as peças de roupa e os acessórios, mas também a mitologia da cultura ocidental em torno do salto alto. Um dia, existiu a lenda de que o par certo poderia transformar a vida feminina, ajudaria a encontrar um emprego e até o amor de sua vida. Só que há uma diferença entre a opção usável e aquela em que nem mesmo uma modelo treinada, com décadas de experiência, é capaz de se manter por poucos minutos. Quando um sapato faz da mulher uma boneca inanimada condenada ao fracasso, ele facilmente se torna o tipo errado de obstáculo.