Ponto de interrogação

A moda não é mais a mesma?

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Durante o ano de 1998, em uma entrevista hoje bastante conhecida, a escritora Toni Morrison (autora de romances premiados, como O olho mais azul e Amada) fez uma crítica precisa sobre uma pergunta que havia recebido. Toni ganhou o Nobel de Literatura por suas obras, que deram voz sobretudo às mulheres negras nos Estados Unidos. Essa foi sua luta como autora, professora e militante. Daí o estranhamento quando foi cobrada por um jornalista a “escrever sobre algo não centrado em raça”. Como se aquilo fosse um requisito para ser uma grande escritora, sim, mas principalmente como se escrever sobre gente branca fosse algo simplesmente “neutro”.

Toni, que morreu em 2019, deixando saudades e um legado monumental, disse assim em certo ponto da análise dessa estranha pergunta: “Tolstói escreve sobre raça, assim como [Émile] Zola ou James Joyce. (…) A pessoa que me faz essa pergunta não entende que ela também é racializada”. Ou seja, qualquer autor branco que escreveu sobre pessoas brancas fazendo qualquer coisa também escreveu com perspectiva de raça.

Mas esse não é um texto sobre raça. É sobre moda. O que tem a ver? Bom, existe hoje uma ala da moda mundial que parece irritada com as mudanças ocorridas nas últimas décadas. Um certo discurso, que passa por imagens, capas, grifes e pessoas, e que chama por uma moda “pura”, uma que só pense na roupa e nada mais, uma moda pela moda, sem causas, sem exigências. Esse discurso tem aparecido também em uma recusa do “feio” e na nostalgia da “beleza clássica”.

Em um paralelo com Morrison, podemos dizer que a moda sempre trabalhou com causas, e que a roupa pela roupa, a moda “sem ideologia”, jamais existiu. O que exisitia era uma supremacia do olhar branco sobre a criação nesse circuito, com tudo o que isso pode implicar. Ou seja, Christian Dior não falava menos sobre raça do que Virgil Abloh. Essa ilusão só persiste porque, ainda hoje, muitos ainda pensam a pessoa branca como neutro universal, ou seja, baseiam seu pensamento no racismo colonial.

Os clamores pelo retorno disso que seria “A” beleza também devem ser analisados com muito cuidado. Cada pessoa pode, em tese, gostar do que quiser, curtir por exemplo o estilo Hollywood glam anos 1950, o look princesinha, sonhar em ser Grace Kelly. Digo em tese porque nossos gostos são formados de formas muito complexas e menos “espontâneas” do que gostaríamos de acreditar. Mas gostar de um look ou adotar certo estilo é uma coisa. Reivindicar que ele seja reconhecido e coincida com “O” ideal de beleza, com a beleza em si, é uma ideia que flerta com o pior do supremacismo.

Historicamente, os elementos identificados com culturas de base não europeia foram vistos como feios ou cafonas, a não ser quando eram formatados ao gosto europeu estabelecido ou simplesmente pinçados de um contexto que precisava ser apagado. Durante décadas, o mundo além da Europa e dos EUA foi reduzido ao termo “étnico”, como se étnico fosse tudo fora do grande universal branco, que, por sua vez, seria “dentro”, a referência definitiva.

As influências africanas no high fashion europeu, por exemplo, não são só influências. Elas estão presentes em tudo, são formadoras. Que isso não seja reconhecido é parte de um grande problema que a moda de certa forma é capaz de espelhar.

Foram décadas para que a virada estética da geração hip-hop dos EUA ganhasse crédito. Antes disso, ela foi ridicularizada, apagada, encaretada pelos yuppies. Eu desafio qualquer um a imaginar o mercado de moda hoje sem o styling que foi criado lá no limite dos anos 1970/80 pelos meninos e meninas negros da periferia de Nova York. Afro-americanos ou amefricanos, como dizia Lélia Gonzalez, cuja abordagem da cultura nos ajuda a entender tanta coisa, inclusive a chamada moda brasileira.

Mesmo se pensarmos em estilistas hoje consagrados da onda japonista dos anos 1980, como Rei Kawakubo e Issey Miyake, é bom não simplificar as coisas de modo leviano. O próprio termo japonismo foi cunhado na França. Rei, Issey, Kenzo, eles nunca foram “japonistas”, mas criadores de vanguarda vindos do Japão. Saint Laurent é Saint Laurent, no máximo “um estilista francês”, um dos “maiores nomes da moda francesa”, mas Rei é japonista. Há uma marcação do que vem “de fora”, mas esse fora só existe a partir do eurocentrismo. Isso não tem a ver com discutir a qualidade de Saint Laurent, um gênio da moda (aliás, um que se interessou como poucos pelo mundo, tentou criar diálogos), mas com a formação da nossa compreensão das palavras e suas implicações sociais. É importante pensar nisso.

No quesito das questões de classe, que tem sido lidas como ETs no contexto da moda, vale um exemplo ilustrativo.

É difícil para algumas pessoas enxergar em Coco Chanel um discurso sobre classe, mas é praticamente só o que ela fez o tempo inteiro. O peso dos olhos dos ricos “de família” sobre ela e seu sempre apontado pertencimento à “criadagem” nunca saíram de seu horizonte criativo, mesmo quando ela mirou no mais alto luxo, no mais alto glamour, mesmo quando ela mesma se tornou rica e poderosa. Foi assim que ela recriou o chic, que o tornou prático. Foi assim que ela botou o traje das empregadas no lugar de honra da sala de jantar, em relações supercomplexas de desejo, repulsa, reconhecimento e alienação. Há coisas que marcam, e é uma pena que haja tão pouco esforço em ler não as criações segundo seus criadores, mas os criadores segundo suas criações.

É difícil para algumas pessoas enxergar em Coco Chanel um discurso sobre classe, mas é praticamente só o que ela fez o tempo inteiro.

Aos saudosistas, não há muito o que dizer, a não ser perguntar quais são de fato os termos dessa saudade. Aos que se aproveitam de causas para tentar manter estruturas caquéticas, é bom lembrar que só aumenta o número de pessoas não dispostas a engolir qualquer bobagem. Às grifes que apostaram tudo em marketing sujo e sem ética, é bom mudar o projeto porque a maison vai cair.

A moda nas últimas décadas não foi nenhum mar de rosas, mas fez florescer muita coisa boa, ampliou horizontes, ajudou a enxergar beleza e pertencimento onde antes só se viam exclusão e preconceito. Aos incomodados, vale checar as tendências de cintos para a temporada e escolher um bem apertadinho. Essa turbulenta jornada ainda vai longe, e vai muito bem-vestida segundo os termos da transformação.