A geração Z matou a selfie?

Ainda não! Tirar autorretratos continua a ser uma maneira de se expressar, mas convém ler esta reportagem antes de posar para a câmera frontal do seu celular.

O TikTok anuncia o tutorial da selfie perfeita: uma garota estica seu braço para o alto e usa a câmera traseira do celular para fotografar a cena. Depois, mostra o resultado. Dá para ver o cômodo inteiro, o braço comprido da garota e seu rosto, ao lado do rapaz que a acompanha no centro da foto.

O conceito é bem diferente daquele que era tendência há quase dez anos – basta lembrar quando Ellen Degeneres juntou o elenco mais estrelado do planeta na selfie mais famosa de todos os tempos, durante o Oscar de 2014. Ali, Bradley Cooper, Julia Roberts, Brad Pitt, Meryl Streep e outros nomes de peso apareciam ao lado dela, buscando seu melhor ângulo, amontoados, preenchendo todo o espaço da tela. Um documento histórico, além de divertido.

Hoje, porém, a foto perfeita, pelo menos para parte da GenZ, funciona menos como autoespelho, em que cada pose é milimetricamente controlada, e mais como aqueles registros pré-mídias sociais, em que o fotografado é apenas um dos componentes do quadro, e pode nem estar na sua melhor forma.

 

@markjamesramos_

Gen Z Selfie Tutorial

♬ gimme gimme gimme BOBW party – The Best of Both Worlds Party

 

Sim, em 2023, uma selfie também diz respeito ao cenário. E surpresa: quanto mais ordinário, melhor. Podem ser as prateleiras mal arrumadas de um mercadinho de bairro, o banco traseiro de um carro, o caos de um cômodo que acaba de receber caixas de mudança – sem essa de perfeição produzida à la Kardashians.

Máxima que se estende para um tema clássico do Instagram desde seu surgimento: momentos gastronômicos impecavelmente registrados em pratos de encher os olhos. Você pode até encontrar comida no Instagram de alguém de 20 e poucos anos, mas provavelmente serão um ou dois bocados em um prato mexido. Instagramável? O termo está mais datado do que a foto de pés descalços com praia ao fundo, que também foi hit em algum lugar da segunda década do milênio.

Em resumo, ficamos assim: em vez da pintura em giz pastel finalizada, perfeita, entra em cena, ops, no feed, uma foto da obra recém-começada, com alguns riscos desconexos. No lugar das sombras de cada uma das crateras da Lua, captada com lentes potentes e caras, um pontinho brilhando no fundo, que poderia ser tanto o astro quanto um poste de luz. A geração Z, assim, sorri satisfeita com a revolução que coloca em curso. Aí é só sentar e esperar o like – afinal, tem coisa que nunca muda.

 

@lilykltran

So casual #genz #genzhumor #instagram

♬ original sound – Lily Tran

 

“Não se trata de ser alguém que se sente sozinho e quer aprovação. É uma sociedade inteira que deu um nome para a frustração com dados: o flop, quando pouca gente curte o que você posta”, diz a pesquisadora em comunicação digital na USP Issaaf Karhawi. “Mesmo que tenha um comentário legal, não basta. O sucesso do dado é o volume, e essa busca vai ser incessante, porque todas as redes sociais são egocentradas, construídas e organizadas a partir de seu dono. Não há como se desviar de si mesmo em redes sociais, e isso não tem nada a ver com o exibicionismo.”

Segundo ela, que também é autora do livro De blogueira a influenciadora, vivemos em tempos de extimidade, quando a intimidade é exteriorizada. “Há um imperativo de visibilidade do sujeito, um chamamento para se mostrar, fazer da sua vida um espaço público. As selfies também se encaixam nessa lógica”, diz. Daí a necessidade de contextualizar o cenário e contar uma história. O espelho do elevador ficou pequeno para tanta narrativa.

Sinal desse tempo, Maria Luiza Galati Brasiliano, 18 anos, estudante de direito, garante que seus amigos nem comentam mais qual é a melhor câmera do celular para tirar as fotos do grupo. “A gente não tira muita selfie por tirar. Só quando queremos mostrar a roupa no espelho. Quando saímos juntos, a maior parte das vezes fotografamos com a câmera de trás, em um ângulo que mostre o que tem no cenário na parte superior da cabeça”, explica.

Uma das razões apontadas para o fim do reinado da câmera frontal, a câmera-espelho, é o lançamento do Be Real, rede social que manda um push pedindo uma foto espontânea daquele momento. A imagem é capturada pela câmera frontal e traseira simultaneamente. “A câmera de trás mostra mais gente em um ângulo interessante, como o da Go Pro”, completa Maria Luiza. E aqui vale uma observação: a Go Pro, para GenZs como ela, é uma memória de infância que naturalmente causa nostalgia. Obsoleta, nesse caso, é a foto feita com toda a tecnologia disponível por alguém bem mais velho.

E a Cybershot, que voltou?

Entre um grupo de amigos em um bar ou em uma festa, é comum hoje em dia ver uma câmera digital no centro das atenções. “Tem alguns rolês em que meus amigos levam câmeras, e isso passa uma vibe mais natural, principalmente porque quem traz a câmera costuma tirar fotos mais espontâneas dos outros”, diz Julia Wontroba, estudante de biologia de São Paulo. Maria Luiza concorda: “Fica retrô, com a data ao lado da foto. Bem mais interessante”.

O processo de postagem, para os parâmetros tecnológicos atuais, é quase artesanal: o dono da câmera sobe as imagens em um drive, os amigos baixam as que querem e postam em seus Instagrams. Aí vale olho fechado, boca meio aberta… Nada muito posado. Quanto mais naturais e espontâneos forem os registros, melhor.

“A gente tem visto uma reação dos jovens à estética instagramável, à rede baseada em filtro, edição. Be Real e TikTok se pautam no autêntico e tentam fugir da estética anterior. Mas é possível falar de autêntico em uma rede social? O quanto dá para ser natural em algo que é feito para ser mostrado?”, questiona Issaaf.

Fato: se a Geração Z deu um novo sentido à selfie e alçou as chamadas “fotos feias” ao estrelato, dá para dizer que alguns millennials também compraram a ideia. Bruna Marquezine, por exemplo, postou publicidade no Instagram com a data amarela ao lado das fotos.

Estranho ou posado?

A rigidez com a estética começou a mudar na pandemia, quando jovens isolados passaram a fazer vídeos no ainda embrionário TikTok. A ideia não era ganhar like ou seguidor. Era se divertir. Esses usuários, que devem ter crescido irritados com a mãe fazendo 40 fotos diferentes do prato no restaurante, têm pavor do conceito do que é ou não instagramável. O resultado? A estética que funcionava no TikTok foi levada para a rede vizinha.

A câmera 0.5, disponível na face traseira dos iPhones a partir do modelo 11, dá muito mais amplitude ao cenário da foto. Aí é só esticar o braço o máximo que for possível. Se vai ficar bonito? Hum, quem se importa?

 

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Mesmo que todo mundo queira sair bem na foto, não tem como fazer poses como se a câmera fosse um espelho, já que ela está virada para o outro lado. A ideia é eliminar o impulso humano de se arrumar ou refazer a imagem. Parecer bem, sem tentar tanto parecer bem.

Obviamente não é todo mundo que está nessa: uma pesquisa britânica de 2023, encomendada por uma marca de saúde e bem-estar, afirma que metade das pessoas da Geração Z do país jamais subiria uma selfie sem o filtro ou edição. E, claro, como para todas as idades, terem sido expostos às fotos impecáveis e perfeitas nos últimos anos pode ter mexido com a percepção do próprio corpo. O mesmo levantamento indica que 40% dos ingleses de 16 a 25 anos – que usam telas oito horas por dia – afirmam querer mudar a aparência por causa dos filtros de Instagram.

A questão dos filtros e seus efeitos na autoimagem e na autoestima dos usuários merece muita discussão e, por sinal, é um assunto recorrente na ELLE. Issaaf, pontua, no entanto, que não é necessário patologizar a selfie. “Ela faz parte da sociabilização digital. É como se constrói como sujeito. A Geração Z vê a selfie como millennials a viam em 2014: forma de expressão e tentativa de construir a identidade nas redes. Talvez essa construção passe pelo conceito de aesthetic, que foi trend no TikTok, talvez pela câmera analógica. A autenticidade e a percepção de ser fiel a si mesmo estão em negociação o tempo todo, especialmente quando se é jovem”, afirma. E conclui: “Selfie é performance. Não é teatro, mentira ou encenação. Há contextos sociais em que performamos e decidimos os elementos sobre os quais vamos jogar a luz ou manter à sombra – fazemos isso socialmente o tempo todo. E não quer dizer que estamos mentindo”.