Para Marcelino Melo, 28 anos, a memória é um assunto sobre o futuro. Há quatro anos, o artista alagoano começou a série Quebradinha, com esculturas de casas típicas das periferias, em uma tentativa de remontar lembranças da sua infância na cidade de Carneiros, no interior de Alagoas.
Não se trata apenas de dar forma à saudade. As obras de Marcelino são o registro histórico de uma parcela da população rotineiramente invisibilizada. Ele não quer buscar memórias. Quer criá-las, como deixou explícito no nome escolhido para sua exposição individual, que ocupou o Centro Cultural São Paulo na virada do ano: Quebradinha: escrevendo o hoje para que o amanhã não fique sem ontem.
Com sensibilidade e precisão fascinantes, as obras de Marcelino reproduzem cada um dos elementos que compõem a paisagem urbana periférica. Estão lá a estufa de salgados da vendinha, a caixa-d’água que vira piscina na laje, a churrasqueira de tijolos, as telhas onduladas e as inconfundíveis portas e janelas de alumínio, recriadas com materiais diversos, que vão de vidro a barro, de linha de costura a fio de arame.
Em seu perfil no Instagram, o artista mostra sua produção em vídeos hipnotizantes, em que ergue paredes de microtijolos e faz vasinhos de sete-ervas com minúsculas folhinhas coladas com pinça.
“A gente pode usar a busca pela identidade preta brasileira como um exemplo para pensar a memória. Hoje, essa procura é completamente nebulosa, sem informações precisas e com pouca credibilidade”, pontua o artista. “Vivemos em um eterno loop de perguntas, com um sentimento que não é saciado porque não existem respostas.” Com suas esculturas, Marcelino espera contribuir para que as gerações futuras não se deparem com essas lacunas de informação sobre a própria ancestralidade. “Esse é o meu período de atuação efetiva no mundo. Então, vou colocar esse período na história para que, daqui a 50, 100, 500 anos, as pessoas possam dizer que existem documentos relevantes, feitos por pessoas que vivenciaram e falaram da forma mais fiel possível sobre o que foi o nosso povo.”
O vínculo do artista com seu território é fundamental para o surgimento da série Quebradinhas. A família de Marcelino chegou a São Paulo em 2008, e ele, então adolescente, deixou de lado a cultura, e até o jeito de falar da terra natal, a fim de se enturmar na nova escola paulistana.
A virada de chave viria em 2011, quando o alagoano e seu irmão Maxuel Melo conheceram o movimento hip-hop por meio de oficinas do bairro. “Eu chamo esse momento de eu-político, que é quando começo a me entender como um ser político, periférico, nordestino e que precisa se afirmar perante a sociedade”, relembra. Em meio a esse resgate da memória e nos questionamentos à normatividade paulista, Marcelino engatou uma carreira no audiovisual e fundou uma produtora em parceria com Maxuel, a Fluxo Imagens.
Com um drone comprado em 2015, começou a registrar imagens aéreas da Zona Sul da cidade. Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luís, Santo Amaro e Taboão da Serra se tornaram o foco de um trabalho documental. O artista compartilhava suas excursões na conta @menino_do_drone, no Instagram, que ganhou grande repercussão.
Nada se compara, no entanto, ao sucesso das esculturas em miniatura, que tiveram início em 2019. Do Instituto Moreira Salles à SP-Arte, do Centro Cultural São Paulo ao SESI Lab, em Brasília, as criações de Marcelino Melo estão por toda parte.
“Eu fiz a primeira casinha porque tinha tempo livre naquela semana e porque sempre gostei de fazer coisas com as mãos. Tenho certa facilidade com habilidades manuais”, conta. Já na segunda casinha, o projeto começou a ter seu propósito definido. A série ganhou nome e o autor passou a refletir mais sobre o que estava fazendo. “A cada dia que passa, a cada obra que é feita, eu vou aprendendo mais e querendo mais. A verdade é que eu quero muito. Eu quero muita coisa. Eu quero o mundo, tá ligado?”
O processo de criação do artista é peculiar. Toda peça surge de uma ideia, e nunca de uma fotografia. Marcelino visualiza a escultura pronta e escreve o que imaginou: os temas que movem a obra, as cores predominantes, os elementos principais e até o clima que a casinha tem, se é alegre ou melancólica. Raramente desenha. Todas essas informações são preservadas em post-its em seu ateliê, no extremo sul de São Paulo. Ao longo das semanas seguintes – que podem se estender por quatro meses –, ele desenvolve item por item da casa, utilizando basicamente materiais encontrados nas ruas, como papelão, MDF, retalhos de tecido e fita crepe, além de argila, cola e tinta.
Todas as nove peças exibidas na SP-Arte foram vendidas durante os cinco dias do evento, encerrado em 2 de abril. Apesar do sold out, o artista descreve a feira como um lugar solitário, em que ainda se veem poucas pessoas negras como artistas ou compradores, e questiona a naturalização dessa ausência no mercado da arte. “Esse contexto de exceção, de uma minoria de artistas negros em feiras, é até um pouco contraditório, porque os espaços de validação imagética e de pesquisa estão abertos para nós, mas os eventos de validação monetária, não”, reflete. “Posso estar em tudo que é feira, mas se o meu povo perder o acesso ao meu trampo, isso não vale mais nada.”
Marcelino não desenvolve obras sob encomenda – a exceção foi o convite do Instituto Moreira Salles para que ele criasse, junto com a artista Stefany Lima, a casa da escritora Carolina Maria de Jesus na Favela do Canindé. A escultura fez parte da exposição sobre a autora no IMS em 2021 e foi um marco para Marcelino. “Percebi que estar nesses espaços leva outros de nós para lá. A favela foi até a Avenida Paulista: gente do extremo sul, extremo norte, fundão da leste, do oeste, onde nem se considera mais como região metropolitana, todo mundo foi ver a exposição”, relembra. “A gente tem várias vitórias quando essa galera, a nossa galera, cola nesse espaço para ver nosso trabalho. Primeiro, a pessoa não está ali nem para ver a obra. Ela está ali para ver a si mesma. Segundo, a gente conseguiu que essas pessoas exercessem o seu direito de consumir todos os espaços que a cidade oferece. O direito de andar onde quiser e se sentir pertencente.” Assim, Marcelino entende as próprias conquistas como uma vitória coletiva, um passo a mais – seja simbólico, seja literal – para o povo negro e periférico.
Em suas esculturas, ele evoca o orgulho e a vida das quebradas, mas também lança uma luz sobre as desigualdades sociais do país e a luta por moradias dignas. Ao ler Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, Marcelino começou a deslocar a memória da definição do que é íntimo e pessoal para um potencial político e coletivo. E hoje recorre a uma analogia da escritora para celebrar a arte produzida na periferia: “Quando a gente leva a quebrada para o Instituto Moreira Salles, a gente está pegando as pessoas que estão no quarto de despejo e colocando na sala de estar”.
Fotos: Maxuel Melo (retratos) e Léu Britto (obras).