Capital da moda

Como o toque de midas dos CEOs e o temor da recessão podem alterar nossa imagem no espelho.

A moda se acostumou a viver numa eterna dança das cadeiras entre estilistas de grandes marcas. Virou praxe, a partir desse baile sem hora para acabar, questionar os rumos das tendências baseados na ideia de que as grandes mudanças ainda são orquestradas por quem ocupa a cadeira da direção criativa. Os últimos meses, porém, deixaram às claras o fato de que o controle sobre aquilo que vestimos está mais nas mãos de quem nunca aparece para o tchauzinho no fim do desfile. Bem-vindo à era do CEO, o chief executive officer, ou, em português claro, o diretor executivo.

Não que esse personagem nunca tenha dado as cartas, mas a indústria sempre o considerou como uma extensão do estilista, operando os dois quase como aquelas duplas místicas do rock. Não seria exagero comparar a força de pares da costura como Pierre Bergé/Yves Saint Laurent, Miuccia Prada/Patrizio Bertelli e Karl Lagerfeld/Bruno Pavlovsky, esta da Chanel, com os da música Jimmy Page/Robert Plant, John Lennon/Paul McCartney e David Gilmour/Roger Waters. A diferença agora é que o microfone parece ter mudado de mão.

A saída do diretor criativo Alessandro Michele, da Gucci, e a permanência do presidente e CEO, Marco Bizzarri, só anunciou com megafone um padrão desenrolado nos bastidores desde a década passada. O adeus de Alber Elbaz na Lanvin, em 2015, após atritos com a CEO, Michèle Huiban, deu a letra no mercado de que os ventos mudariam. Christopher Bailey, então CEO e diretor criativo da inglesa Burberry, saiu da grife logo após a entrada do executivo italiano Marco Gobetti, em 2017, que, por sua vez, contratou Riccardo Tisci para a função de Bailey. Com a saída de Gobetti, em 2021, o terreno já era preparado para uma transição, que ocorreu quando Daniel Lee substituiu Tisci na criação. 

Lee, antes, ocupava a chefia criativa da Bottega Veneta e havia saído, ou “sido saído”, segundo apontaram rumores à época, por problemas com o CEO, Bartolomeo Rongone, e com o próprio dono do grupo Kering, proprietário da grife, o francês François-Henri Pinault. A mensagem implícita em todos os casos é que, não importa o quão na crista da onda um nome pareça estar, a moda hoje orbita em torno de marcas, e não mais de criadores e estilistas.

 

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E é pelas marcas, as etiquetas propriamente ditas, que os CEOs respondem. Então, para entender a força desse cargo e os novos contextos da indústria que fazem com que as direções dos medalhões da costura estejam nas mãos deles, é preciso entender alguns passos da dança. O que diabos ele faz? Tudo o que você não vê na passarela.

É o CEO de moda quem tem a responsabilidade de colocar em prática as direções da presidência discutidas no conselho de administração, um grupo encabeçado por ele, pelo diretor financeiro – que responde pelos custos e pelas receitas –, pelo chairman e presidente do grupo, pelo representante dos acionistas e pelos nomes indicados para gerenciar as divisões de varejo, responsabilidade social, insumos e uma série de outros cargos vinculados à máquina que é própria de cada grupo ou empresa monomarca. Hoje, a não ser no caso das grifes de estilista, aquelas independentes, é raro um designer participar dessas decisões. 

A partir disso, há encaixes particulares de cada etiqueta, em que o CEO adapta demandas baseadas nas ideias do estilista, que, às vezes, recebe o cargo de chief creative officer (CCO), comandando todas as equipes de estilo de uma grife, ou diretor criativo, responsável por uma divisão específica da marca. 

Tanto o chief marketing officer (CMO) como o diretor artístico trabalham diretamente na concepção da estratégia que fará todas as ideias chegarem ao público com uma linguagem unificada. O maestro disso tudo, portanto, é o CEO, porque ele tem as rédeas para fazer a orquestra tocar no tempo certo e, no caso dos grandes grupos, fazer os números crescerem num ritmo constante.

O maestro disso tudo, portanto, é o CEO, porque ele tem as rédeas para fazer a orquestra tocar no tempo certo e, no caso dos grandes grupos, fazer os números crescerem num ritmo constante.

A essa roda damos o nome de backoffice, aquilo que está por trás do escritório e é, na maioria das vezes, salvo em caso de crises, o motivo de marcas se associarem a grupos. A busca por eficiência de gestão e o poder de lançar novas frentes para o negócio podem alavancar grifes que não têm como crescer a não ser com essa expertise.

Qualquer ruído nessa estrutura complexa, e, já deu para sacar, multimilionária, tem consequências que podem ser desastrosas. Se um CEO impede seu estilista de criar, pode ser que o desejo pela grife sofra e, consequentemente, as vendas caiam. Ao mesmo tempo, se a voz do estilista não estiver afinada com as demandas da direção, o destino certamente é o mesmo. Essa parceria é decisiva no que muitos chamam de “gestão de risco”, que, no caso da moda, é o balanço entre a originalidade e a recorrência de vendas. Guarde essa expressão porque vamos precisar dela.

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A máxima de que a moda é criar a demanda e não surfar na demanda existente explica essa lógica. Toda coleção é um risco, mas controlado. Já percebeu como, entra coleção, sai coleção, o New Look aparece nas criações de Maria Grazia Chiuri, da Dior? Que entra estação, sai estação, a inspiração equestre surge remodelada na Hermès pelas mãos de Nadège Vanhee-Cybulski? Que entra tendência, sai tendência, a Dolce & Gabbana aposta na imagem da mulher siciliana? A constância é a chave do sucesso, mas como ela se apresenta e o quanto de novidade ela comporta definem o êxito de um estilista. Um bom exemplo é a Gucci.

A constância é a chave do sucesso, mas como ela se apresenta e o quanto de novidade ela comporta definem o êxito de um estilista. Um bom exemplo é a Gucci.

Quando Marco Bizzarri encontrou este repórter, seis anos atrás, a marca crescia seis vezes seu tamanho em um ano e os analistas se questionavam como tantas loucuras de Michele na passarela podiam vender tanto. A resposta do executivo define o modelo: “Ele cria um livro, com vários capítulos, que vão se desenrolando. Mas, nas lojas, temos tudo separado e com várias categorias desses produtos para os clientes”, disse.

Por isso, a escolha de um estilista hoje está nas mãos do CEO. É ele quem sabe o quanto aquele criativo poderá entregar. Michele veio da divisão de acessórios da Gucci, o principal motor de vendas do mercado de luxo, e o estilista que o substitui, Sabato de Sarno, vem das coxias da Valentino. Nenhum deles era uma estrela, assim como Tomas Maier, contratado por Bizzarri na época em que ele comandava os negócios da Bottega Veneta. 

Em entrevista de 2014 ao Corriere Economia, da Itália, Maier se fez entender: “O estilista detém os códigos da maison porque é ele quem define a casa de moda e os valores que representa. (…) Mas a palavra criatividade é perigosa porque, se descontrolada ou aplicada a novidades com fim em si mesmas, pode também ser a ruína de uma maison”.

Para alguns analistas, tanto controle está minando o fator surpresa que faz a moda seduzir. Para outros, é uma questão de olhar em perspectiva. Cada estilista consegue imprimir o próprio estilo na vitrine, mas as obrigações mercadológicas adicionam ao trabalho uma preocupação que, no século 20, um momento de todo tipo de experimentação, não existia. Ou existia e não era tão evidente, porque muitos simplesmente venderam perfumes para custear as ideias abstratas na passarela.

Segundo escreveu o economista italiano Enrico Ciettanum, em A economia da moda, um dos livros mais completos sobre o business, “a moda não é só uma atividade arriscada, mas é a mais arriscada dentre os produtos criativos”.

O motivo é que se focar apenas na criatividade significa assumir riscos maiores do que os suportáveis pela empresa. No entanto, se preocupar apenas com o risco traz o perigo da repetição, ou da imitação de algo já existente, “com o resultado de estar sempre em atraso, um passo atrás em relação aos outros e ao mercado”, nas palavras de Ciettanum.

O que se vê agora é a tentativa de conjugar a tradição, limando o risco, mas costurando uma capa de originalidade. Mas por que mesmo isso está acontecendo? Siga o dinheiro.

 

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Crise à vista ou parcelada = quiet luxury

O que explica esse vaivém de estilistas, que não atinge os mais altos cargos de gestão das grifes, tem origem em fatos de 15 anos atrás. A grande crise financeira de 2008, a pior desde o crash da bolsa de Nova York em 1929, obrigou as empresas de moda a buscar novos mercados e a olhar para os lados para sobreviver à queda no consumo do lado de cima do planeta.

Os executivos foram os grandes regentes responsáveis por gerenciar a sinfonia de números estratosféricos que se seguiu à entrada em países da Ásia, em especial a China, ao investimento robusto em operações próprias na América Latina (lembra da chegada em massa de labels internacionais no Brasil, em 2010?) e ao apelo maior do estilo dito emergente. A logomania, nesse contexto, teve seu auge como chamariz para novos clientes.

Agora, neste exato momento, a quebra do Silicon Valley Bank, nos Estados Unidos, e a turbulência do banco Credit Suisse, que precisou recorrer ao governo suíço para segurar as pontas, denotam o início de uma crise que as consultorias já alertavam. O mundo anda sem liquidez, sem crédito barato, e isso significa menos investimentos e menos consumo, fatores que são o prenúncio de uma temida recessão.

Essa é a palavra de ordem na boca dos analistas e o que forçou as marcas a olhar para aquilo que lhes parece mais seguro no momento. E quem parece estar mais são e salvo? Bem, a Hermès reportou lucros recordes em 2022, assim como o grupo LVMH, com destaque para Louis Vuitton e Christian Dior. Na Itália, a Brunello Cucinelli, um signo da herança do cashmere e da tradição da alfaiataria casual, já projeta 1 bilhão de euros em receita no ano de 2023, após semestres de vendas nunca antes registrados. O clássico, então, renasce. E com novo nome: quiet luxury. Quer dizer, nem tão novo assim. O termo foi muito usado após o baque financeiro de 2008.

O tipo de moda vendido por Cucinelli, por exemplo, sintetiza o que vimos de mais forte nas duas últimas temporadas, que é o retorno dos clássicos de extrema qualidade.

O tipo de moda vendido por Cucinelli, por exemplo, sintetiza o que vimos de mais forte nas duas últimas temporadas, que é o retorno dos clássicos de extrema qualidade. “Não quero trabalhar com algo que não dure”, disse Cucinelli, antes da divulgação das cifras vultosas de sua marca em dezembro.

Em sua fórmula, pesa o fato de que a produção da grife é reconhecida por privilegiar artesãos italianos e os produtos, assim como em outras grandes casas, não têm data de validade – além de poderem ser reparados após a compra. “Gosto da ideia de ter uma identidade, mas não só sobre o gosto em si. É também onde você trabalha, como você trabalha e o que faz com esses tecidos”, afirma o estilista e empresário.

A obsessão por excelência encontra eco no tipo de cliente que o luxo precisa seduzir cada vez mais, aquele imune às oscilações do mercado. O que ele supostamente quer é a sensação de comprar algo eterno. E eternidade custa caro. As marcas já aumentaram em mais de 40% os preços de seus produtos, tanto para se protegerem das compras compulsivas que ocorreram na esteira do fim do isolamento provocado pela covid-19 (o luxo gosta de ser exclusivo) quanto para pagar o aumento nos preços de produção e logística.

A grande dúvida que persiste é se a suposta recessão atingirá em cheio todo o mercado de moda ou será parcelada, com o consumo baixo da classe média afetando negócios menores e deixando o luxo reinar, por ora, sozinho na indústria.

 

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Medidas de identidade

Dois pontos surgem como cruciais na fórmula usada pelas marcas como antídoto para a recessão, ou seja, na gestão do risco (lembra dele?). A primeira e mais visível é a manutenção do que os franceses chamam de savoir-faire. A excelência material e técnica de um fazer específico e raro é o novo desafio das grandes maisons e impulsiona a abertura de novos centros de produção. O grupo LVMH reportou ao mercado que atualmente 90% de seus novos contratos são para as divisões de manufatura, e que, no auge da pandemia, em 2020, investiu 90,7 milhões de euros em treinamento de artesãos. A Hermès segue o mesmo caminho e, além de treinamento, abrirá dois novos ateliês de couro até 2026 para suprir a demanda.

A francesa Bénédicte Épinay, diretora do Comité Colbert, um espécie de associação das grifes de luxo que reúne os principais nomes do segmento, disse durante passagem por São Paulo, no ano passado, que a preocupação com a continuidade do savoir-faire é real e motiva uma união de marcas, muitas delas concorrentes, para mitigar a evasão dos jovens dos ateliês. 

Essa união define o entendimento de que é preciso vender a ideia de luxo para além do aspecto do preço, que, apesar de influir na escolha dos clientes, deve estar em segundo plano. 

“O savoir-faire nasce da ideia de um produto que dura e se relaciona com sua vida sem prazo de validade.” Bénédicte Épinay

“O savoir-faire nasce da ideia de um produto que dura e se relaciona com sua vida sem prazo de validade. Há muitas ideias preconcebidas sobre o consumo de luxo que perderam a validade. Comprar um batom podia soar fútil, mas, se ele fez você se sentir bem, deixou de ser futilidade. É por isso que as tendências estão sendo deixadas de lado, já que não duram, não dão um sentido que perdura. Veja, ninguém compra uma bolsa Hermès por causa do preço. Paga-se pelo que ela representa. Isso muda tudo”, disse Épinay.

O que restaria à parcela da moda que não pode contar com uma herança centenária para criar novidades a partir dela? Conhecer mais a fundo o seu público. E a tecnologia tem sido uma boa aliada dos executivos, ainda que haja dúvidas sobre os efeitos de longo prazo – as métricas passaram a definir boa parte dos lançamentos de varejistas e das grifes premium. O uso das informações de compra dos clientes apontam o que ele mais consome. Com isso, as coleções passam a ser mais assertivas para mitigar riscos. 

Apesar dos muitos pesares, a Shein é o exemplo mais contundente disso. Tudo o que é lançado pela empresa chinesa se baseia em análises de dados dos tipos de itens mais buscados e no que é tendência nas redes sociais. E o Brasil já testa com sucesso essa ideia. Na C&A, por exemplo, a marca Mindse7, feita de coleções cápsulas criadas a partir das demandas dos clientes e identificadas por software, deu tão certo que deixou de ser comercializada exclusivamente online e chegou às lojas físicas em 2019. 

 

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Nos grandes grupos de moda, a história é um pouco diferente. No Soma, dono de marcas como Animale, Farm e Hering, entre outras, as informações dos clientes são uma indicação para que os estilistas tenham uma noção do que pode dar certo, apesar de não definir o que irá ou não para as araras.

O diretor de tecnologia e inovação do grupo, Alisson Calgaroto, explica que os dados ajudam a identificar mudanças de hábitos. Numa conta rápida, se for necessário que a equipe de estilo lance 100 produtos, são desenhados 150 e a escolha passa pelo pente fino dos dados. Diferentemente das varejistas, que copiam as tendências, o Soma faz uma avaliação com os vendedores com notas para as novidades que serão lançadas, para ter uma previsão mais embasada sobre quanto de cada peça pode ser produzido. O índice de assertividade gira em cerca de 80%.

“Somos produtores de moda. É diferente de olhar o que vende e reproduzir. O ‘provão’ (antes dos lançamentos) dá um peso, inclusive regionalizado, para cada modelo, até porque o Brasil é muito grande e os estilos não são uniformes”, diz o executivo. E acrescenta: “O algoritmo, pelo menos nos próximos 50 anos, não vai substituir a parte criativa. O que enxergamos é uma contribuição dele sobre o que está acontecendo no mundo, porque a criatividade é o que garante a perenidade do nosso negócio”.

Independentemente de quem ocupa o volante, decide que direção tomar e coloca a roupa na estrada, está claro que o grande capital da moda ainda são as pessoas.