Os limites da representatividade

As modelos magras estão de volta e as passarelas revelaram que a diversidade pode ser só uma moda. Para onde devemos caminhar para mudar a indústria de verdade?

“Na minha agência, me falaram que o padrão voltou e me cortaram da SPFW”, escreveu um usuário do TikTok nos comentários do primeiro vídeo da coluna Giu Me Explica, no qual a repórter da ELLE Giuliana Mesquita discute a diminuição de modelos mid e plus size nas passarelas internacionais e, em troca, o retorno de corpos extremamente magros.

Na mesma plataforma, a modelo brasileira Gizele Oliveira, conhecida sobretudo por participar de algumas edições do Victoria’s Secret Fashion Show, fez um relato sobre ter sido descartada do desfile da Philipp Plein, no qual já estava confirmada, por não terem oferecido roupas em seu tamanho. Ela veste o 4 estadunidense, equivalente ao 38 brasileiro. Essa informação e todas suas medidas foram avisadas com antecedência. “Eu informei repetidas vezes qual era o meu tamanho, mas eles falaram que não havia nada que pudessem fazer e que não iria funcionar”, disse no desabafo.

 

@gizeledoliveira Exposing @philippplein_official . The fashion industry has got to change ‼️ Part 2 on my profile #bodyshaming #bodypositivity #fashionindustry ♬ som original – Gizele Oliveira

 

De todas as roupas desfiladas nessa última temporada no Brasil, somente 5,7% foram por modelos mid size, que vestem do 40 ao 46, e ínfimos 0,6% por modelos plus size, que vestem a partir do 48. Esse cenário acontece poucos anos depois de as semanas de moda se mostrarem um pouco mais diversificadas e modelos como Ashley Graham, Paloma Elsesser, Iskra Lawrence, Precious Lee e Jill Kortleve ganharem destaque global. Mudou o que de lá para cá? Bem, a resposta curta e grossa é uma só: o interesse do mercado.

Ao menos, esse é o palpite (bem aceito) da jornalista Marie Declercq. “É isso o que acontece quando acham que a publicidade é o principal meio de causar mudanças estruturais na sociedade. O ciclo acabou e o mercado vai partir para outra tendência sem o menor peso na consciência’, escreveu em um tuíte, que recebeu mais de 14 mil curtidas e 660 mil visualizações.

 

Modelo plus size Gabriela Adams usa vestido mídi verde na passarela da Misci no SPFW 54

A modelo Gabriela Adams debutou nas passarelas no SPFW 54. Aqui, ela desfila para a Misci | Foto: Ze Takahashi/@agfotosite

“Com a volta dos anos 1990 e dessa moda pautada em corpos magros, de repente, corpos maiores já não estão com tanta força. Isso só reitera que os nossos corpos são vistos como tendências.” Gabriela Adams

“Com a volta dos anos 1990 e dessa moda pautada em corpos magros, de repente, corpos maiores já não estão com tanta força. Isso só reitera que os nossos corpos são vistos como tendências e que o nosso espaço, de fato, ainda não foi conquistado”, complementa a modelo Gabriela Adams, que debutou nas passarelas em novembro do ano passado, na 54ª edição da SPFW. “A moda quer tanto ser entendida como uma representação política e social, mas esquece que também se isenta de várias responsabilidades políticas e sociais”, reflete.

A presença de modelos como Gabriela e Letticia Muniz, nossa capa, nesses espaços heterogêneos é importante para que seja possível reconstruir o imaginário social. Sabe aquele exercício de quem vem à mente quando se pensa em uma modelo? Em uma pessoa que é capa de revista? Em uma pessoa bonita? É bem isso.

“Recebo comentários que buscam se passar por elogios, implicando que eu sou bonita por ser quase magra. Coisas do tipo: ‘Ah, você nem é curvy! Olha esse corpo!’, e isso acontece porque o único corpo que acham bonito é o magro, e quando não é magro as pessoas até se espantam por achar bonito”, aponta Gabriela. “Se a gente cresce vendo somente certos padrões, não amplia nossas possibilidades. Nosso vocabulário estético fica muito reduzido”, complementa a psicóloga Thaís Fontinele, doutora e pesquisadora em gênero e corpos na contemporaneidade.

Além disso, para quem se vê representado, o efeito na autoestima e na perspectiva de futuro é transformador. “Se ver em uma campanha, em uma passarela, no Instagram, muda nossa cabeça e cria um caminho possível, mesmo que seja difícil. O primeiro passo para mudar algo é sonhar que é possível, e a representação gera esse sonho”, afirma Beta Boechat, criadora de conteúdo e sócia do Movimento Corpo Livre, uma plataforma de encontros, notícias e consultoria.

“Nós somos seres de relação, ou seja, a gente só se percebe como existente no mundo, só se entende como pessoa, quando se relaciona com o outro. Então vamos pensar em uma criança que esteja por qualquer razão fora do padrão: se ela não se tem como referência, ela já cresce com esse sentimento de incapacidade”, complementa a psicóloga.

 

Paloma Elsesser na capa da i-d de fevereiro 2022, edição de primavera

Paloma Elssenser na capa da edição de primavera 2022 da revista i-D | Foto: Reprodução

 

Mas a representatividade é limitada, principalmente pela capacidade de ser manipulada. Nesse sentido, corpos gordos aparentam ocupar espaços que, na realidade, ainda não ocupam. Quando esteve na capa da revista i-D vestindo uma minissaia e um cropped da Miu Miu, Paloma Elsesser fez barulho: era a primeira vez que o famoso – e polêmico – conjunto aparecia no corpo de alguém não magro. No entanto, aquela seria também a única vez: o tamanho foi feito sob medida para a modelo e nunca chegou às lojas da grife.

“É difícil quando você vai a uma prova de roupa e não existe uma no seu tamanho. Você não consegue fazer o seu trabalho, que é experimentar a roupa. Estão te chamando, mas não sabem como te acolher, como respeitar seu corpo”, pondera Gabriela. “A marca vai lá, cumpre a cota, mas não entende o significado disso. Por exemplo, se você coloca uma modelo maior em uma campanha, você precisa oferecer esse tamanho”, continua a modelo.

Acontece que a superficialidade é o caminho mais fácil. “Produzir uma grade maior exige aprendizado”, afirma Sylvia Sendacz, fundadora da Flaminga, uma marca especializada em tamanhos plus size. “Ampliar uma roupa não é só crescer 2 cm na manga e 2 cm na barra. Não é porque a pessoa é maior que seu braço é comprido, entende? É preciso entender a variedade desses corpos e oferecer roupas para diversos biotipos”, comenta sobre a expertise que demanda tempo, dinheiro e sobretudo interesse – um fator fundamental para a prosperidade da expansão de tamanhos.

Acontece que a superficialidade é o caminho mais fácil. “Produzir uma grade maior exige aprendizado”, afirma Sylvia Sendacz, fundadora da Flaminga, uma marca especializada em tamanhos plus size. “Ampliar uma roupa não é só crescer 2 cm na manga e 2 na barra. Não é porque a pessoa é maior que seu braço é comprido, entende? É preciso entender a variedade desses corpos e oferecer roupas para diversos biotipos”, comenta sobre a expertise que demanda tempo, dinheiro e sobretudo interesse – um fator fundamental para a prosperidade da expansão de tamanhos.

 

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Campanha da Flaminga, marca de moda plus size fundada em 2012. | Foto: Divulgação

 

“Quando colocamos no papel, tudo isso faz a produção plus size ser mais cara. Mas tentamos driblar esses fatores e, por exemplo, procurar uma matéria-prima mais barata para oferecer as peças a um preço acessível, que é outro fator importante”, continua, mostrando como a vontade de fazer acontecer é crucial em relação às dificuldades apresentadas.

Sendo assim, ignorar ou maquiar essa demanda por tamanhos maiores é, de certo modo, uma estratégia econômica – embora moralmente questionável. A falta de um regulamento coerente para os tamanhos das roupas permite que as marcas possam fingir um aumento na grade, vendendo, por exemplo, um 58 que no papel seria um 52. “Fazem isso para parecerem inclusivas, mas não abraçam a causa de verdade. E aí quando a cliente vai consumir a grade maior, será que a roupa cabe mesmo nela? O caimento é bacana? Veste bem?”, provoca a empresária.

Mas essa economia é somente a curto prazo. Dados indicam que o investimento em tamanhos inclusivos é uma medida lucrativa, uma vez que o consumo desse público cresce a cada ano, mas muitos de seus interesses ainda não são atendidos. De acordo com Associação Brasil Plus Size, mais de 110 milhões de pessoas no Brasil usam manequim a partir de 46 e, portanto, são consumidores desse mercado. Ainda segundo a ABPS, nos últimos três anos, entre 2019 e 2022, o segmento teve o crescimento de 21% e somente no ano passado movimentou 9,6 bilhões de reais.

A oportunidade não está passando despercebida. No Brasil, grandes grupos do varejo implementaram recentemente uma grade maior em suas coleções. Desde 2019, a C&A traz para algumas de suas linhas, como a best-seller e jovial Minse7, tamanhos que vão do GG1 ao GG4, equivalente ao 50 e 56, respectivamente, e que podem ser encontrados no e-commerce, no aplicativo e nas lojas físicas selecionadas. “Fora isso, a maior parte dos produtos da loja foi estendida até o tamanho GG (48)”, diz Mariana Moraes, head de marketing do grupo. O retorno dessa ampliação, segundo ela, está sendo “muito positivo”.

 

C&A lança coleção em colaboração com a influencer Robertita com tamanhos plus size até o GG4/56

Campanha da coleção colaborativa da influencer Robertita com a mindset, linha da C&A. | Foto: Divulgação

 

O Vista Magalu, a start-up de moda do Magazine Luiza, oferece desde seu lançamento, ocorrido em outubro de 2021, todas as suas peças do tamanho PP ao GG4 e o grupo Renner atua desde 2016 com a Ashua, uma marca exclusiva para o público que veste a partir do 46.

“Em relação aos tamanhos inclusivos, nunca se viu uma oferta tão grande em todo o mundo”, afirma a especialista em tendências da WSGN Naia Silveira. A aquisição de marcas setorizadas por players maiores é outro movimento que mostra o avanço do mercado. “No ano passado, a Victoria’s Secret adquiriu a varejista de roupas íntimas inclusivas Adore Me. Isso significa que a marca vai trabalhar muito mais a positividade corporal ao longo de 2023”, analisa a profissional de trend forecasting.

Todavia, para o sucesso efetivo da estratégia, comunicar o aumento da grade é quase tão importante quanto a própria ampliação da oferta de tamanhos. “A frase ‘a gente não faz porque não vende’ é engraçada para mim”, confessa a empresária Sylvia, da Flaminga. “Vamos supor que uma confecção que sempre fez seis tamanhos passe a oferecer 12 tamanhos. Mas a vida inteira ela comunicou que trabalhava para um grupo determinado e não todos os grupos. Realmente, as vendas podem não ser boas porque as pessoas mal sabem que agora existem esses outros tamanhos. As clientes precisam saber que esse tamanho existe para que se consiga vendê-lo”, pondera. No entanto, ela acredita que essa conversa já está mudando, “afinal, não há como não vender se existe demanda – e a indústria está prestando atenção nisso”.

E se a indústria está ouvindo é graças à voz e ao empoderamento das mulheres gordas, em que reside a verdadeira representatividade, que é a demonstração dos interesses de um grupo. “Todas as revoluções que vivemos só foram possíveis porque um grupo de pessoas iniciou, pouco a pouco, rupturas no tecido social”, comenta a psicóloga Thaís Fontinele, que cita o movimento feminista como um exemplo recente. “Elas usaram seus corpos e suas experiências para dizer algo que ninguém estava dizendo, e isso foi importante para que suas queixas fossem registradas.” 

 

Beta Boechat sócia do Movimento Corpo Livre

Beta Boechat, sócia do Movimento Corpo Livre. | Foto: Divulgação

“Para mudar a forma como a sociedade trata as pessoas fora do padrão, precisamos de criadores a estudiosos, de publicitários a médicos, de estilistas de moda a professores.” Beta Boechat

O mesmo pode estar acontecendo agora. “O problema da exclusão de corpos fora do padrão não é novo nem superficial. Está enraizado na cultura e não vai mudar em um ou dois anos, em três ou quatro ciclos de desfiles”, defende Beta Boechat, do Movimento Corpo Livre. “Para tornar esse espaço realmente democrático, teríamos que multiplicar a presença e a ocupação de pessoas não magras em duas, quatro vezes mais, se comparado com o que temos hoje. De todo modo, a representatividade é esse movimento inicial de ruptura social”, complementa Thaís.

Então, “para mudar a forma como a sociedade trata as pessoas fora do padrão, precisamos de criadores a estudiosos, de publicitários a médicos, de estilistas de moda a professores”, relata Beta. “Acredito que lutar por uma causa é entender que precisamos de muitas frentes diferentes para atacar um problema de forma efetiva. A representatividade sozinha vai interferir diretamente na gordofobia médica? Na falta de acessibilidade dos lugares? Não. Não existe bala de prata. O que existe é um trabalho de formiguinha, setorizado e múltiplo”, finaliza a criadora de conteúdo e consultora. Abraçar e fortalecer essas vozes, portanto, é o caminho mais sincero a ser tomado pela indústria.