Dança das prateleiras

Uma nova geração de marcas de beleza busca ajudar os consumidores com soluções pautadas pelo desejo, e não pela culpa. A questão é: essas pequenas empresas estão rapidamente sendo englobadas por grandes conglomerados. O que isso significa para o futuro desse mercado?

Há algo de novo no reino da beleza. Dez anos atrás, lembro que corríamos para as prateleiras de beauté em busca de resoluções para nossos “defeitos”. Corta para 2023 e esse discurso soa absolutamente desatualizado e anacrônico. As marcas de beleza já não apelam tão descaradamente para esse tipo de comunicação, em que a cliente tem algo de errado a ser corrigido. “Agora, o foco é ajudar as pessoas a resolverem questões práticas a respeito de sua aparência, além de potencializar a expressão de suas indentidades”, diz Juli Soares, diretora de insights da Cool.lab, uma agência de pesquisa de tendências de mercado.

Às vezes, a mudança está nos detalhes. Por exemplo, a The Body Shop mudou o nome da sua principal linha de cuidados faciais. A Drops of Youth (Gotas de Juventude) – um dos sucessos comerciais de maior êxito da marca britânica, hoje comandada pelo grupo Natura – foi rebatizada para Edelweiss (fazendo alusão ao ingrediente mais proeminente utilizado nas fórmulas dos produtos). “A funcionalidade é a mesma. O que muda é o posicionamento. Cuidar da pele não significa mais perseguir, obrigatoriamente, uma aparência mais jovial”, explica Juli.

A maneira como olhamos para a questão dos grisalhos também é um bom termômetro para entender esse novo momento do mercado de beleza. Pelo menos é o que defende Hanne Lima, especialista em tendências na WGSN, uma consultoria de tendências de comportamento e consumo. De acordo com ela, hoje a preocupação nem sempre é esconder os fios brancos. “Basta olhar para a quantidade de produtos sendo lançados que prometem matizar o grisalho para mantê-lo polido e uniforme”, argumenta. O mesmo vale para as espinhas: não são poucas as linhas de adesivos de hidrocoloide que, em vez de disfarçá-las, dão ainda mais destaque à região afetada (eles vêm em formato de estrelinha, coração etc.).

Ao mesmo tempo, há também um movimento de marcas determinadas a cuidar de demandas antes obliteradas pela vergonha: estamos falando de hidratantes para os seios, skincare para o bumbum, axilas e partes íntimas. “A ideia é priorizar o bem-estar. As vantagens de um produto estão mais associadas ao que ele te faz sentir do que como ele transforma a sua aparência”, continua. “A esperança é que o mercado de beleza diminua o reforço dos padrões hegemônicos conforme esse tipo de abordagem encontre respaldo mercadológico.”

Calma, nem tudo é preto e branco

Se por um lado estamos vendo tudo isso acontecer, inclusive com a ajuda de influenciadores que desafiam o establishment ao não esconder a acne, as manchas, as linhas finas e os poros, por outro há um movimento muito contundente na direção contrária. O sucesso de filtros nas redes sociais como o “Bold Glamour” (que faz uma harmonização facial virtual no usuário que o aplica), por exemplo, tem incentivado, inclusive, a demanda por cirurgias plásticas. 

Em um estudo realizado pela Academia Americana de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva Facial, 79% dos médicos entrevistados relatam que seus pacientes procuram por intervenções com o intuito de “sair melhor” na câmera ou nas chamadas de vídeo.

Ou seja, em alguma medida, o mercado representa uma dicotomia que todos nós vivemos dentro de nós mesmos: temos que lidar com a pressão estética (que é real, quase palpável), ao passo que também estamos cada vez mais propensos a caminhar na jornada rumo ao autoamor. “Os consumidores querem liberdade para manifestar, sem julgamentos, essas contradições”, revela Juli. “Quando o conceito de beleza caminha para um lugar cada vez mais particular e subjetivo – e, portanto, menos impositivo –, o diálogo se impõe como uma ferramenta fundamental para a construção desse novo momento.”

Fagocitose controlada

Para além de mudanças de comunicação – a exemplo do que ocorreu com a The Body Shop –, a pergunta que fica é como as grandes marcas estão se adaptando a esse novo comportamento de consumo. Segundo Juli, elas estão tendo dificuldades em se reformular para a era do “consumidor vigilante”: “As pessoas estão cada vez mais bem informadas, atentas e exigentes a respeito dos produtos que selecionam para si. A decisão, na maioria das vezes, é feita a partir de seus valores pessoais e, portanto, é preciso recuperar esse elo com a sustentabilidade, a diversidade, o consumo consciente etc.”

Até agora a melhor estratégia para os gigantes de beauté tem sido englobar em seu guarda-chuva marcas que, de nascença, têm essas características na veia. “Urge a necessidade de furar as bolhas e, para isso, ter um portfólio diversificado de marcas é muito bom. Dessa forma, diferentes grupos identitários, gerações e estilos de pessoas podem usufruir de um mercado de beleza em que suas narrativas estão sendo ouvidas e incluídas”, continua Juli. 

Sinal do tempo, em 2020, aqui, no Brasil, a farmacêutica Hypera Pharma comprou a marca Simple Organic como uma forma de entrar no mercado de beleza limpa. “É um movimento mais comum quando falamos de empresas voltadas à sustentabilidade”, explica Hanne.

Mas vale lembrar que as grandes corporações não se restringem a comprar e fundir pequenas marcas aos seus portfólios. Recentemente, conglomerados como L’Oréal, Procter & Gamble e Unilever têm feito investimentos considerados pequenos em marcas de menor porte, em uma espécie de “namoro” pré-fusão. É uma forma de começar a testar o acesso da empresa a um público mais jovem e mais nichado. A Estée Lauder, com seu setor de incubação, divulgado em março de 2021, por exemplo, colocou dinheiro na ascendente marca de beleza Faculty (famosa por seus esmaltes coloridos sem restrição de gênero).

Na encruzilhada

Porém, quando aquela marca pequena, independente, que você amava consumir, acaba entrando para o portfólio de um grande grupo, será que a relação de vocês será a mesma? “Em vários casos, a fusão não impacta em danos a imagem da marca. Pensando no consumidor que já tem uma conexão emocional com a empresa, ele é um fã que torce por ela”, aposta Juli Soares. 

Alguns dados, contudo, apontam para um cenário diferente. O barômetro de confiança da Edelman, em 2022, registrou níveis recordes de desconfiança dos consumidores frente às gigantes de beleza. Será que o tiro pode sair pela culatra?

“Há uma descrença muito grande em relação aos conglomerados. No contexto de uma aquisição, a leitura da marca pequena pode ser afetada. O que antes era apoiar um negócio local e independente já não é mais”, argumenta Hanne. “Isso sem falar nos casos em que o comprador passa por cima dos valores da empresa adquirida. Se uma marca de xampu vegano é adquirida por um conglomerado que faz testes em animais, essa contradição será percebida pelo público”, completa Juli. 

O fato é que, muitas vezes, ainda que o comportamento da clientela esteja mais propenso a novas e disruptivas abordagens, nem sempre quem tem a coragem de dar esse passo tem o estofo financeiro para seguir com o sonho até o fim. E aí é que surgem esses investimentos externos, que podem (ou não) funcionar, como uma faca de dois gumes.

O futuro do mercado de beleza, portanto, é bem menos maniqueísta, esquemático e dicotômico do que uma leitura rápida pode sugerir.