Ponto de interrogação

Conselho aos jovens de coração.

Coluna da Vivi 02 menor

A juventude, de algum jeito, está sempre perdida. Os que se encaixam nas fórmulas dos adultos têm sempre algo de muito ruim para dizer, uma previsão catastrófica, uma frase feita sobre como em outros tempos as coisas eram melhores e as promessas, mais bonitas. Além disso, ser jovem, estar jovem, também inclui a sensação de urgência, muitas vezes explicada pela ideia de que o que quer que esteja rolando parece sempre pronto para escapar. 

Ok, a coisa não vai nada bem em geral. É como se vivêssemos uma era de grandes derrotas. O que é verdade, mas também não é. Não enxergar avanços é quase como não tê-los alcançado. O que fazer, então? Tentar evitar o pior, correr atrás do que foi perdido tentando botar as coisas de volta em seu lugar? Não, não rola. Nem isso nem correr atrás de qualquer coisa que sirva para preencher as exigências de um mundo que ninguém aguenta mais remendar. 

Todos os dias os noticiários falam de problemas crescentes entre os grupos mais jovens da população. Falta de perspectivas, depressão, isolamento, desistências muitas. O futuro que se projeta parece não ter nada de muito legal, e as poucas opções exigem muito. Mais dinheiro, mais disposição, mais dedicação para alimentar aparências, mais fôlego para nunca parar, para cultuar a doutrina dos “vencedores”. Uma conta que, obviamente, não fecha. 

Mas, se tudo está perdido, nem tudo está terminado. Porque esse futuro e essas exigências valem para esse mundo, e esse mundo não é “o” planeta. Esse mundo nada mais é do que uma maneira de fazer as coisas, um jeito de organizar a vida, os sonhos, os desejos, as relações.

Parece que no meio de tanta informação, de tanta ordem disfarçada de convite, de tanta ação vazia, a pressão foi nos afastando de uma ideia importante: é possível fazer diferente, e fazer diferente pode ser criar mundos. Eu sei, parece bobo, fantasioso falar disso a essa altura… 

Mas será que é mais bobo do que insistir em autoestima e autoaceitação em uma realidade que se alimenta de julgamentos constantes e comparações implacáveis? Mais absurdo do que exigir saúde mental sem mexer em contextos adoecedores? Mais sem noção do que cobrar dos jovens que façam e aconteçam, prometendo a eles nada senão a falsa meritocracia e um horizonte estreito, de privilégios restritos a grupos cada vez menores? 

Não acho. Por mais ursinho carinhoso que pareça, dizer que o mundo pode ser outro, apostar em novos jeitos de fazer é nossa responsabilidade. E pode ser uma boa escolha para encarar todo dia o despertador e a rotina. Veja que eu disse encarar, e não aceitar. 

Esse mundo novo não pode ser apenas esperado, não pode ser visto pronto. Esse mundo novo não precisa ter um formato final. Ele precisa ser configurado em uma prática diária. Uma prática que invente novas estéticas, novos jeitos de comunicar e difundir ideias transformadoras, outras maneiras de viver, em que os laços entre as pessoas e os bons encontros, o entrelaçamento das pessoas com a própria trama da vida, sejam uma prioridade, recebam e produzam cuidado. Esse novo não é o “novo normal” nem o produto de consumo, não dá para comprar nem vender, não cabe em estratégia de marketing, porque necessariamente exige outro tipo de vínculo social. 

As coisas boas e bonitas, os caprichos, os perfumes, as graças delicadas, quase tudo pode caber nessa mudança, mas não nos moldes que temos reproduzido à exaustão. 

Ninguém mais pode levar a sério besteiras como “quiet luxury” ou logomania, dois lados da mesma moeda viciada, que já cansamos de ver caindo de um e de outro lado sucessivamente. Ninguém mais pode levar a sério uma onda “inclusiva” que decide “desincluir” como quem troca de trend, sem nem se preocupar com uma justificativa. Ninguém mais pode levar a sério uma indústria que não para de falar em sustentabilidade e segue ancorada em práticas ligadas a recordes de destruição ambiental, a casos graves de exploração humana. É preciso defender radicalmente o direito ao trabalho digno e à criatividade afetiva. É preciso inventar novos caminhos pra gente gostar, pra gente se gostar mais. 

Como disse o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica: trabalhar, sim, ter nossas necessidades básicas atendidas, sim, mas também ter tempo para nossas paixões e para as pequenas “loucuras” de cada um de nós. Isso para todas as pessoas.

A juventude não é só uma idade. É a capacidade de sentir uma espécie de despertar que fala de desejo, de prazer de fazer coisas junto, de sentir a energia de transformação que marca o corpo e que tem alto potencial anticonformista. Um adolescente, uma pessoa de 20 anos e uma de 60 podem viver isso, de jeitos diferentes, mas podem. 

 

A juventude não é só uma idade. É a capacidade de sentir uma espécie de despertar que fala de desejo, de prazer de fazer coisas junto, de sentir a energia de transformação que marca o corpo e que tem alto potencial anticonformista.

Só que quem é jovem pela primeira vez tem a seu favor o vigor da emergência, das estreias. E esse vigor não deveria mais ser sugado e consumido até a existência se reduzir a uma sensação tristonha de “meu tempo passou, melhor entrar na linha”. Também já chega de ver pessoas desperdiçando essas experiências com discussões tolas e infinitas para alimentar algoritmos, reinventar rodas que não saem do lugar. Chega de jovens etaristas, donos de uma verdade morta, tão caretíssimos quanto os vovôs do patriarcado, que não enxergam além do próprio umbigo – não se enganem, pois esse é um comportamento muito incentivado porque é exatamente o mais útil à manutenção das engrenagens e cadeias de sentido opressivas. 

Conformismo não é o “caminho natural das coisas”, que nem existe. 

Então, se você por acaso está lendo este texto agora e tem se sentido meio sem ânimo pra nada, convencido de que precisa se encaixar porque sua vida vai sempre ser medida pela conta bancária e por réguas morais que não dizem nada, calma. Dê uma chance não ao futuro, mas ao passado. Dê uma chance àquela criança que você foi, que mesmo que por um breve momento pôde sonhar o impossível como se o impossível fosse nada mais do que parte do tecido extraordinário do dia a dia. 

Ganhar um novo mundo é viver para construí-lo, viver construindo, dedicar tempo para imaginá-lo coletivamente. Não é bolinho, eu sei. Não é nada fácil. Estamos cercados de muitas grades, muitas delas invisíveis. É dureza mesmo. 

Mas, quando você for dormir, feche seus olhos e tente se dar a liberdade de pensar, sem cinismo: você tem o direito de, com todas as suas forças, querer e imaginar um mundo que não seja esse, um direito que implica no dever de batalhar por ele. Abrir mão disso tem consequências sérias. Tem custado a vida de muita gente, simbólica e literalmente. 

Criatividade e transformação combinadas fazem coisas incríveis. Não à toa há tanto esforço em domesticá-las em gaiolas separadas. Levante seu travesseiro, esse sobre o qual você sonha. Existe ali uma chave para uma porta que só se constrói se pudermos trabalhar juntos. E, como já disse o poeta, não é questão de ter crédito: “Tem que acreditar”.