O escritor, o arado e o fogo

Autor do maior sucesso literário brasileiro dos últimos anos, Itamar Vieira Junior fala à ELLE View sobre seu novo romance.

Sabendo onde Jorge Amado (1912-2001) vivia em Salvador, um jovem de nome Itamar Vieira Junior foi à portaria do prédio para tentar ter um livro autografado pelo escritor, de quem era leitor ávido desde menino. Não só conseguiu como ganhou de Zélia Gattai (1916-2008) um convite para subir e tomar café com o casal, em um episódio que poderia ser lido hoje como uma espécie de batismo baiano.

Na ocasião, ninguém poderia prever que Itamar se tornaria um fenômeno literário: traduzido em mais de 20 países e com uma futura adaptação para o audiovisual, seu Torto arado vendeu mais de 700 mil exemplares desde o lançamento, em 2019. Já seu novo romance, Salvar o fogo, alavancou 37 mil cópias somente na pré-venda e encabeça a lista dos livros de ficção mais vendidos no Brasil.

 

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Se Amado se dedicava sobretudo ao litoral – praias, portos e lagoas baianas –, Vieira, um funcionário concursado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), constrói o que chama de trilogia da terra, da qual Salvar o fogo é o segundo volume. Na Chapada Diamantina ou no Recôncavo Baiano, seus personagens estão às voltas com as feridas abertas da herança colonial, que deixa alguns com tanto e outros com tão pouco, em livros que falam também de ancestralidade e religião.

Atualmente com uma rotina de pop star, Itamar emenda eventos de lançamento em nove capitais brasileiras e é um dos nomes já confirmados para A Feira do Livro, no início de junho, que ocupa pela segunda vez a Praça Charles Miller, em São Paulo.

Quando conversou com a ELLE, o escritor se recuperava do jet-lag de uma viagem a trabalho ao Japão e havia corrido para comprar um acarajé pertinho de casa, seu almoço quase às 6 da tarde, entre uma entrevista e outra.

A seguir, trechos da boa conversa com Itamar.

Sob a sombra de Torto arado
“Pressão de minha parte, eu não senti. Um pouco de aflição talvez. Quando o livro ganhou o (prêmio) Jabuti e o Oceanos (em 2020), tinha um público expressivo, mas não era o público que alcançou depois. Achei que ia poder continuar o meu trabalho. Daí vieram os veículos falar comigo, os eventos e fui absorvido por aquilo. Teve um momento que pensei: ‘Nossa, agora parece que esse livro cresceu mais do que o autor. Será que sempre vão esperar que eu escreva da mesma maneira?’ Depois, percebi que não posso me preocupar com isso. Torto arado pertence aos leitores, e eu vou cuidar daquilo que preciso: a literatura.”

O fogo como metáfora
“Ao mesmo tempo que o fogo pode significar destruição, todos os rituais litúrgicos, religiosos, o envolvem porque tem o sentido da purificação. A gente sabe como ele mudou a história humana. O livro do (Claude) Lévi-Strauss O cru e o cozido (1964) mostra um pouco como isso aconteceu. Mas o fogo também pode significar esse ímpeto de criação, essa energia vital que todos nós temos… A paixão, o desejo, um elemento ambíguo que abriga em si o bem e o mal, uma coisa muito humana que existe em todos nós.”

A trilogia da terra e a questão do território
“Quando cheguei ao ponto final de Torto arado e não sabia se era o ponto final, pensei: ‘Eu tenho muita coisa para narrar’. Mas não fazia sentido que fosse no mesmo volume. Ficaria uma coisa muito Guerra e paz (romance de mais de mil páginas, em sua versão original, de Liev Tolstói). Não era a minha intenção. Então, percebi que o que tenho para contar merecia volumes e eu preciso fechar esse ciclo. Chamo de trilogia da terra, mas no fundo são histórias sobre esse direito que é o mais elementar de qualquer ser humano, e a garantia a todos de certa dignidade. Fico pensando que esse não é um problema brasileiro apenas. É uma questão universal. Quando a gente pensa na questão palestina, nos curdos, nas migrações, estamos pensando em pessoas desterritorializadas, alijadas da possibilidade de existência. É sobre isso que essas histórias falam.”

Chapada Diamantina x Recôncavo Baiano
“A Chapada (o cenário de Torto arado) eu vim conhecer muito mais tarde, já trabalhando no Incra como servidor. Fiquei fascinado pela força daqueles chapadões, daqueles morros. Ao mesmo tempo, é um ambiente hostil, com estiagens severas, que às vezes duram mais de um ano. Acho que foi um casamento profícuo, ideal, com as personagens. Já o Recôncavo (cenário de Salvar o fogo) é uma região das minhas origens. Nasci na capital (Salvador), meu pai também, mas ele foi criado pelos avós em Maragogipe (BA), num povoado chamado Coqueiro. Meus bisavós têm origem nessa localidade. Eu só o conheci adulto, porque a gente não tinha condições de chegar até lá, mas havia muitas imagens e memórias que eram contadas em casa. A paisagem das duas histórias é distinta: uma em um ambiente mais hostil, mais seco, e outra em um mais favorável. Mas ainda assim a dureza da vida é a mesma porque essa é a nossa história, né?”

 

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A estrutura colonial brasileira
“Independentemente da paisagem, tem uma estrutura que remonta ao nosso passado, à nossa história, que é bastante violenta. Ou seja, as pessoas não vão ser prósperas se morarem no litoral, onde chove mais e o solo é favorável, e muito menos no semiárido. Essa é a história da formação do nosso país, do nosso passado colonialista e escravista, ainda muito presente na vida das pessoas. O papel que a Igreja tem em Salvar o fogo é metafórico, o que também tenta iluminar de maneira literária o papel que ela teve para o colonialismo e para o escravismo. O empreendimento colonial não teria sucesso se não tivesse a cumplicidade da Igreja. Ela foi a grande detentora de escravizados durante anos, e talvez tenha sido a maior delas no território brasileiro. E pouco se fala sobre isso.”

Religiosidades
“Vivendo na Bahia, as coisas são bem excepcionais, né? Embora eu conheça profundamente a religião de matriz africana, nunca fui um praticante. A maior parte da (minha) família era católica, e a outra parte neopentecostal, evangélica. Cresci a partir de toda essa liturgia. Então, escrever esse livro para mim foi mais pessoal do que Torto arado. Se o jarê, a religião em Torto arado, podia ser um instrumento de resistência das pessoas para que uma violência maior não acontecesse, em Salvar o fogo a gente percebe como a religião pode envenenar as relações, modificá-las de uma maneira brutal. Em alguma medida, dividiu aquelas pessoas. Quem conseguiu se integrar ao cristianismo conseguiu, e aqueles que ainda tinham dons ou outras maneiras de olhar e ver o mundo foram alijados.”

Formação em geografia e o Incra
“A minha paixão mais antiga é a literatura, mas venho de uma família humilde. Meus pais achavam isso uma fantasia e imploraram para que eu procurasse uma profissão ‘normal’. Li todos os livros de literatura da escola onde eu estudava e, quando acabaram, comecei a ler os de história e de geografia. Teve um momento que disse que ia cursar geografia, porque ela me dava um pouco da experiência na literatura – esse contato com culturas, com territórios diferentes. O Incra chega mais tarde. Fui empacotador em supermercado, trabalhei em farmácia de madrugada. Quando me formei, disse que não queria mais ter patrão, ser humilhado como eu era. Passei em dois concursos para professor e no do Incra. Na hora de pôr tudo na balança, a ideia de viajar, conhecer outros lugares, ir a campo me atraiu. Fui trabalhar no Incra por necessidade, porque precisava me manter, mas foi uma das experiências mais maravilhosas que tive na vida. Só recentemente, no mês passado, é que me licenciei para poder me dedicar uns três anos à literatura, mas já estou com saudades, viu?”

Anos Bolsonaro
“O governo Bolsonaro foi o pior momento da minha carreira, porque realmente era como se dissessem ‘vocês não prestam, não servem para nada. Então, vão ficar aqui sentados, sem fazer nada, ou só responder à Justiça, porque nós não vamos dar trabalhos para vocês’. Foi o período mais terrível que vivemos. Mas, como nada é por acaso, acredito que já rendeu boas histórias, pelo menos os leitores têm gostado.”

Adaptações de Torto arado
“Acho maravilhoso que um livro provoque outros artistas a adaptá-lo. Fico contente, inclusive, de saber que Torto arado seja procurado para ser adaptado. Mas, quando me perguntam se quero participar do processo, confesso que para mim não dá, não gosto de estar perto. A vida da gente é tão curta, o tempo é tão escasso, que eu abriria mão de horas para escrever, por exemplo. Então, é uma questão de escolhas também. Até porque acho que o artista que escolhe adaptar, o dramaturgo ou o diretor, precisa ter um pouco de liberdade para imaginar. Sempre vai estar escrito ‘trata-se de uma adaptação’, e a gente tem que ter essa consciência de que é uma interpretação, uma leitura.”

Próximos projetos
“Tenho um projeto em andamento, que é uma história que estou reescrevendo, que não tem relação com essa trilogia. Quando me perguntam quando vem a terceira parte, digo que vão ter que esperar, porque vou colocar essa na frente. Até preciso desse respiro para poder voltar à última parte com mais energia. Antes do Torto arado, publiquei dois livros, um inclusive foi reeditado, que é a coletânea de contos Doramar ou a odisseia: histórias (2021). E tenho projetos de escrita que alimento já há muitos anos. Tem muita coisa para narrar.”

Fotos: Renato Parada