A homenagem a Karl Lagerfeld no último MET Gala passou longe da unanimidade. Embora o estilista alemão seja sem dúvida reconhecido entre os maiores nomes da moda mundial, seu legado foi colocado em questão a partir de suas muitas declarações absurdas, colecionadas ao longo dos anos, até sua morte, em 2019.
Uma questão se destaca nessa discussão: será que alguém como ele despontaria hoje? Quer dizer, a própria questão subentende que Lagerfeld acabou sendo tolerado em suas falas por causa de sua longa carreira, sobretudo à frente da Chanel, grife que assumiu nos anos 1980 e à qual se dedicou, entre outras atividades e sua marca própria, até o fim da vida. Ou seja, considera-se que ele foi menos cobrado devido a esse contexto temporal-social, mas que, se aparecesse hoje, se fosse um jovem designer, não teria esse tratamento.
Lagerfeld de fato caprichou. Foi misógino, fez discursos contra pessoas gordas (muitas vezes citando o período em que ele mesmo ganhou muitos quilos), disse que odiava crianças e se colocou contra a recepção de refugiados por países europeus. Espremendo tudo, é um suco riquíssimo em ignorância dos mais variados sabores. A mistura indigesta, evidente, não é criação exclusiva dele, mas de fato sua facilidade em dizer todas essas coisas abertamente foi cultivada em tempos que permitiam isso.
Felizmente, esse tempo passou. Ou melhor, há ao menos mais resistência.
Por mais que possamos questionar e criticar severamente a cultura do cancelamento, não podemos de maneira nenhuma jogar fora junto os avanços das últimas décadas. A moda nem ninguém tem esse direito. Foram conquistas coletivas, que vieram com muita dificuldade.
A patrulha marqueteira é, sim, tola e ineficaz, porque a ela falta radicalidade. Pretende higienizar as trocas, as conversas e acaba atirando no próprio pé do que jura defender, porque os sentidos seguem deslizando intactos para outras construções, ou pior, vão se aninhar nas armadilhas supremacistas, nos covis racistas, classistas e sexistas. Não precisa ir muito longe para se dar conta disso –um breve olhar para o dia a dia basta.
Por outro lado, as discussões mais embasadas, que não ignoram a complexidade da linguagem em suas relações com a história e a ideologia, são capazes de transformar comportamentos por meio de um conflito constante. Nada de pequenos espetáculos que não dão em nada e ainda por cima ajudam a criar e fortalecer heróis preconceituosos. Estamos falando de esforços contínuos, organizados.
Lagerfeld acabou sendo poupado como alguém talentoso, mas está fadado ao esquecimento como pensador da moda. A Chanel foi seu grande trabalho, um em que ele teve a difícil missão de renovar o legado de uma das pioneiras da moda ocidental, uma mulher que tinha uma visão estética e que criou um repertório de estilo conciso e memorável. Ele atuou para que isso não se diluísse e, até certo ponto, venceu, cumpriu bem sua missão.
Lagerfeld acabou sendo poupado como alguém talentoso, mas está fadado ao esquecimento como pensador da moda.
Mas Lagerfeld nunca teve um espírito subversivo, muito menos contestador. Esteve sempre ao lado do status, do mainstream. Quando tentou algo mais dissonante, a escrita da própria Gabrielle Chanel, a presença conflituosa de seu fantasma de estilo, esteve muito presente. É algo que exige observação atenta.
As criações de Coco falaram de uma divisão entre detestar a elite, desejar uma certa reparação, e reivindicar absolutamente um lugar de destaque em suas mais altas rodas, em querer ser um de seus membros poderosos. Uma briga entre como ela se via nos trabalhadores (ela mesma uma ex-costureira e filha de uma lavadeira e de um mascate) e como desejava escapar e se esquecer disso, paradoxalmente, elevando o uniforme de serviço, tecidos menos nobres e o funcional ao patamar do luxo. Podemos pensar também em como se movimentava entre mulher livre, amante de homens ricos e dama aceita nos ambientes mais tradicionais da high society, e em como isso aparece em suas roupas e escolhas de moda. Não é um jogo direto de causa e consequência, mas um emaranhado de relações.
Esse tipo de batalha em vários níveis praticamente não existe em Lagerfeld sozinho ou em outras parcerias, algo que fica evidente em tudo o que ele fez fora da Chanel. Salvo lapsos para ele despercebidos, ali se trata de algo mais “flat”, mais pasteurizado, criações bem realizadas e perfeitamente alinhadas com os mandamentos do glamour e do status vigentes, sem grandes conflitos (mesmo com malabarismos perspicazes de sentido, como o desfile do supermercado) – a não ser quando ele foi atacado de fora, como pelo Peta, no caso do uso de peles de animais.
É preciso lembrar, porém, que a própria Gabrielle, para além desse recorte, também esteve envolvida em acusações seríssimas, embora as tenha negado até sua morte. Livros e documentários recolheram evidências não só de que ela teria um aristocrata nazista entre seus amantes, mas que também teria sido recrutada para missões em favor do regime. As provas são consideradas insuficientes por seus defensores, e mais do que relevantes e comprometedoras para os autores dessas pesquisas.
A marca procurou se distanciar disso, quase como se pudesse ser Chanel sem Coco. Alguns analistas tentaram até linkar o minimal da marca ao estilo dos supremacistas, mas isso não se sustenta assim na trajetória da estilista, sobretudo pensando cronologicamente.
Em outro caso famoso, mais pontual, recente e gravado, John Galliano ofendeu pessoas com insultos antissemitas em um bar de Paris. Alegou estar bêbado e sob efeito de drogas. Foi em seguida demitido da Dior. Um grande escândalo, sobretudo porque Galliano era um dos mais talentosos e mais adorados estilistas do mundo naquele momento. Levado a julgamento, mesmo com a confirmação do uso de substâncias, foi considerado culpado pela Justiça francesa e recebeu uma multa, além de ter seu comportamento acompanhado durante um período longo. Ele se internou em uma clínica de reabilitação, desapareceu por anos e, ainda hoje, agora na Margiela, tem moderado bastante suas aparições públicas e na mídia.
E a lista segue.
É bom que, como sociedade, a gente saiba que dizer certas coisas não são opinião. É violência. Não falo do bom e velho shade, que nunca vai desaparecer, a não ser que o mundo se transforme em um reino de robôs, mas da ofensa que visa manter um certo estado de coisas, que garante uma certa organização de poder. Falas que humilham, que segregam grupos marginalizados, que causam exclusão e sofrimento, que dizem quem pode ser pisado para diversão sistemática dos demais.
Se estivermos firmes em construir no terreno do comum uma ideia de moda e beleza que possa ser mais divertida e menos cruel com os outros, se mais gente puder curtir, se expressar e pirar brincando de roupa ou trabalhando dignamente com elas, talvez a preocupação sobre se haverá outro Lagerfeld deixe de ser necessária.
Por quê? Porque virão outros melhores que ele, mais criativos, tão ou bem mais talentosos. Porque esses que virão não precisarão fazer discursos se, para eles, a solidariedade for algo tão corriqueiro e enraizado quanto a exclusão foi para a geração e pares de Lagerfeld. Não precisamos viver como nossos pais e avós. Podemos aprender com o que passou. E a melhor forma de honrar o que foi feito de bom sem abafar os problemas é se engajar em ações que levem a transformação a sério.Nos casos de governos, ditadores, genocidas, no caso de pessoas e criminosos que precisam pagar por seus feitos, no caso de inscrições importantes que precisam ser feitas, de marcas históricas incontornáveis, lembrar é algo necessário e fundamental. Isso no caso dos mortos. Para os que estão vivos, a lei, a pressão social organizada, o não permitir mais a naturalização, o registro aqui e agora para não repetir o passado. É preciso lutar por isso com todas as forças.
As roupas de Lagerfeld sobreviverão nos arquivos da moda de mãos dadas com Chanel. E os novos registros devem tratar de botá-las em contexto, não fugir disso, não apagar, considerar o curso da história.
Mas aqui há nuances.
Em certa perspectiva atual, suas palavras ruins devem parar de ser repetidas no intuito de caçar cliques porque são irrelevantes, dão péssimo exemplo, são usadas para retroalimentar grupos de ódio e merecem nada mais que o esquecimento.
O que se pode exigir daqui para frente, e isso é muito mais importante, é que nenhuma grife volte a se omitir não só diante das falas, mas também diante das escolhas e atividades de seus designers, de seus donos e altos executivos. Que haja compromisso.
Aliás vale refazer a questão: por serem grandes e poderosas, as marcas estão acima de qualquer responsabilidade? A resposta a essa pergunta precisa ser efetivamente não.