Com a popularização dos movimentos pelo corpo livre e pela aceitação dos diversos tipos de corpo, até parece que fazer body shaming (“constrangimento do corpo”) é algo que foi esquecido lá em 2012. Infelizmente, essa ainda não é a nossa realidade. A verdade é que as mulheres continuam sendo muito criticadas por causa de seu aspecto físico. Só que agora esses ataques ganham novos contornos e estratégias.
A atriz e cantora Selena Gomez, em janeiro deste ano, foi ao tapete vermelho do Globo de Ouro devido a seu trabalho na série Only murders in the building, da Prime Video. Ela era uma das indicadas na categoria de melhor performance como atriz em uma série de comédia ou musical de TV. Qual foi, no entanto, o assunto da noite? O seu ganho de peso.
Paciente de lúpus, Selena precisa tomar medicamentos para lidar com a doença autoimune e chegou a ter que fazer um transplante de rins. Tudo isso se reflete prontamente no tamanho de seu corpo. “Tenho a tendência de acumular muito líquido e isso acontece frequentemente, mas, quando estou sem (os medicamentos), eu meio que perco peso”, disse em entrevista na época. Depois, ela lembrou as pessoas que ela “não é uma modelo” e nunca será. “Obrigada pelo apoio e pela compreensão. Mas se não compreende a minha situação… Fique longe. Porque eu honestamente não acredito em constranger as pessoas por causa de seus corpos ou qualquer coisa do gênero.”
Assim como a moda dos anos 2000, parece que um pouco da gordofobia e da obsessão pela magreza da época também estão ensaiando um retorno. Outra atriz estadunidense, Kate Hudson, lembrou em um podcast como era ser uma celebridade no início do século e ter que lidar com o escrutínio da mídia: “Eles eram tão maldosos com as mulheres. Você não tinha escapatória: as críticas vinham, seja você uma pessoa muito magra ou muito gorda. Até levantariam a sua saia para comentar sua celulite”.
A diferença é que, se 20 anos atrás todo mundo “jogava o jogo” e uma mulher que vestisse manequim 42 era considerada “gordinha”, hoje as celebridades não estão mais levando “desaforo para a casa”. Elas têm usado as redes sociais e entrevistas para abordar os comentários de que são alvo e rebatê-los.
A cantora Lizzo, uma das porta-vozes do movimento pela positividade corporal, também faz questão de sempre abordar o tema em seu TikTok. “Desculpe-me se meu rosto perfeito e meu corpo gostoso ofendem você. Não posso fazer nada se sou a favorita de Deus”, disse, brincando, a artista num vídeo na plataforma. “Nossos corpos nem a nossa saúde são da sua conta.”
“Meu corpo é algo pelo qual eu nunca vou me sentir mal. Ele vai passar, constantemente, por mudanças. Assim como o seu, e tudo bem”, disse Lili Reinhart, da série Riverdale, em seu Instagram após uma foto levantar boatos de que ela estaria grávida. “Então não vamos gastar tanto tempo e esforço se preocupando com a silhueta de uma estranha.”
No Brasil, a criadora de conteúdo, modelo e apresentadora de TV Letticia Muniz – que foi capa da ELLE View no mês passado – saiu para dar um mergulho em uma praia do Rio de Janeiro. Na saída do mar, ela foi fotografada com um biquíni no estilo cortininha. O modelo é um dos favoritos das brasileiras e muito usado em todo o país, mas não foi bem visto no corpo de Letticia, que é gorda. Logo vieram críticas e comentários, dizendo que ela deveria “se cuidar”, que não poderia se vestir “daquela maneira”. Em sua participação no Domingão, da Rede Globo, apresentado por Luciano Huck, ela rebateu as mensagens maldosas. “Todo mundo deveria se sentir à vontade para vestir o que quiser.”
“Não sou um alvo mais evidente por ser uma celebridade. É só diferente. Porque, no fim das contas, todas as mulheres gordas ouvem comentários e julgamentos dentro de casa e até no ambiente de trabalho”, diz Letticia em entrevista à ELLE View. “Como estou na mídia, sou atacada virtualmente. Parece que faz mais barulho, mas a verdade é que qualquer pessoa gorda passa por isso. Existe na sociedade um conforto muito grande em opinar e julgar os nossos corpos. Sejam eles grandes ou pequenos.”
Quase fora da lei, mas não fora da moda
Uma pesquisa realizada pela Getty Images Visual GPS mostrou que 64% das mulheres brasileiras ainda se sentem discriminadas por causa de seu corpo, forma física ou tamanho. Segundo especialistas, essa pressão estética e a sensação de inadequação levam as pessoas a desenvolver ansiedade, fobia social e transtornos alimentares. Tanto que, em 2020, o estudo Mental First Health Aid mostrou que 52% das garotas e 45% dos garotos disseram que pulavam refeições ou tinham algum hábito de desordem alimentar.
Nos Estados Unidos, para combater os efeitos do body shaming, ativistas têm proposto leis no Conselho da Cidade de Nova York que tornariam ilegais a discriminação por altura ou peso, principalmente em assuntos relacionados a emprego e habitação. Prestes a se tornar um crime, por que comentários e críticas sobre o corpo das pessoas, principalmente mulheres, ainda têm tanto espaço na nossa sociedade?
“A ditadura da beleza continua acontecendo ainda mais fortemente hoje em dia”, opina Lavinia Palma, psicóloga feminista e histórico-social, de Brasília. “A estrutura social não mudou. O que a gente tem hoje é um refinamento dessas opressões.”
Por muito tempo, ter um corpo gordo era um sinal de riqueza, de privilégio, no Ocidente. Mas as coisas foram mudando ao longo dos anos. Amy Erdman Farrell rastreou, em seu livro de 2011, Fat shame: stigma and the fat body in american culture (“Vergonha do peso: estigma e o corpo gordo na cultura americana”), que o corpo mais magro se tornou uma preferência em meados do século 19, quando foram publicados o primeiros livros de dietas na Inglaterra. Ela notou que esses conteúdos eram focados principalmente nas mulheres. É que, de acordo com Lavínia Palma, nessa época se tornou mais comum que as pessoas se casassem por amor, e não por acordos.
“Se antes era preciso pagar um dote, agora a mulher precisa ser bonita, ser capaz de seduzir para conseguir um marido.” Até então a moeda de troca era o dinheiro. A partir do século 19, a aparência feminina é que tomou esse lugar. “Seu valor agora é indissociável de seu corpo. Ela vai ser mais ou menos valorizada por causa de sua aparência. Por isso, um comentário sobre o corpo do homem é apenas um comentário, não vai desqualificá-lo. O que é bem diferente para as mulheres”, explica a psicóloga. Ainda segundo a especialista, o capital do homem é a inteligência, a competência, o seu trabalho. “São outras características que não são físicas”, afirma. “A mulher pode ser bem-sucedida, inteligente, ter vários atributos, mas é o corpo que vai ditar o valor dela na nossa cultura. A aparência dela vai ser sempre julgada primeiro.”
Vemos isso acontecer todos os dias. Janja Lula da Silva é socióloga pela Universidade Federal do Paraná, tem uma longa trajetória como militantes do Partido dos Trabalhadores, participou ativamente da campanha do marido, o presidente Lula, e tem tido um papel importante na articulação política do governante. Ainda assim, Janja é mais lembrada pelo look que usou na tomada de posse, pelo valor e caimento das peças que usa nos compromissos oficiais.
Letticia Muniz relembra ainda que, aos olhos do público e da mídia, a cantora Adele não alcançou seu “ápice” ao ganhar 16 Grammy, mas quando apareceu muito mais magra. “Dizem que a (cantora sertaneja) Marília Mendonça morreu em seu auge não porque estava no ponto alto de sua carreira, mas porque estava mais bonita, emagrecendo”, comenta a criadora de conteúdo.
Por mais que sua foto com o biquíni cortininha tenha sido pauta quente na internet, Letticia diz que ouve críticas sobre o seu corpo desde muito nova. Tanto dentro de casa como na escola, em forma de bullying. “Eu tive transtornos e sei que a maioria das pessoas também começa a desenvolver esse tipo de doença pelos comentários da própria família. Porque todos se sentem à vontade para comentar, julgar, dar dicas”, recorda ela.
“O corpo feminino é entendido como um lugar público. É como se o corpo da mulher não fosse dela”, diz Lavínia. “É um processo de objetificação. Quando vemos a mulher como um objeto, não a vemos como um ser humano.” Letticia complementa: “Nós conquistamos a nossa liberdade, nossa independência financeira, mas a sociedade resiste em largar a mão do controle”.
Até a Primeira Guerra Mundial, as mulheres tinham pouquíssimo acesso ao espaço público. Elas deixaram o ambiente doméstico e foram para as fábricas assumir os postos de trabalho deixados pelos homens que haviam ido para o front. “Surgiu, então, uma estratégia. Já que não tinham mais como segurá-las dentro de casa, criou-se um controle da população feminina a partir dos ideais de beleza”, retoma Lavínia. Para ocupar aqueles espaços, elas não deveriam apenas “existir”, mas seguir um roteiro. Precisa se maquiar, se arrumar. Estar apresentável. “Até porque a sociedade nunca quis que nós, mulheres, nos tornássemos donas de nossos próprios destinos”, arremata Letticia.
Precisamos ser belas?
Mais de 100 anos depois de conquistar o espaço público, as mulheres já não estão mais a fim de ouvir comentários de boca fechada. “Muita gente não tem abaixado a cabeça como antes. É claro que há quem acate, vá atrás de fazer um procedimento estético, mas agora há muita gente que não aceita mais ser alvo desses comentários”, avalia Letticia.
Para usar um vestido que era de Marilyn Monroe no MET Gala de 2022, Kim Kardashian precisou perder 7 kg em algumas semanas. O emagrecimento repentino foi creditado ao uso de Ozempic, o nome comercial da semaglutida, um ativo para tratamento de obesidade que tem sido usado para o controle de peso. Desde então, veículos de comunicação, como a revista New Yorker, têm reportado que o medicamento se tornou “uma febre” entre as mulheres do meio de entretenimento.
Mesmo nesses casos, em que há uma relação pouco saudável com o emagrecimento, o corpo da mulher não deveria se tornar o ponto central de discussão. Pelo menos não individualmente. “Deve haver um debate sobre esse emagrecimento repentino das celebridades, mas como sociedade. Porque existem medicamentos como o Ozempic há muitos anos. O que precisamos discutir é sobre o porquê de as pessoas fazerem isso de maneira geral”, afirma Letticia Muniz. “As pessoas falam muito que influenciadores como eu romantizam a obesidade, mas a verdade é que a magreza é glamourizada há anos e ninguém nunca se importou com os efeitos colaterais do que fazemos para perder peso.”
A magreza é muito relacionada à saúde porque espera-se que as mulheres sempre estejam tentando entrar no padrão. Se não, ela não está se esforçando o bastante. E parece que não há um caminho correto porque, mesmo quando há um investimento em procedimentos estéticos, maquiagem e academia para ser “bela”, a mulher ainda assim é criticada por estar “gastando demais com coisas fúteis”. “É uma distração porque, enquanto isso, os homens podem investir em cursos, em seu futuro profissional, em sua independência financeira, em sua autonomia na sociedade.”
Para Lavínia, por mais que os movimentos de body positive tenham um papel bastante importante e as pessoas se sintam mais livres para serem como são, ainda estamos longe de tirar esse controle sobre o corpo, principalmente o feminino. “É que ainda é muito importante o discurso de que qualquer pessoa é bonita. A real desconstrução é quando não precisarmos mais sermos bonitas. Teríamos que ser competentes, viver com saúde, mas não precisaríamos mais ser belas.”