Roupas vintage estão com tudo. Suas conservações já são outra história

Com o crescente interesse por peças emblemáticas de épocas passadas ou itens raros de grandes estilistas, técnicas de preservação e profissionais especializados ganham cada vez mais importância.

Looks vintage de grandes estilistas têm marcado presença nos tapetes vermelhos mais observados do planeta, em festas e em cima dos palcos. Nas redes sociais, não é diferente. No TikTok, a hashtag #vintagefashion tem quase 2,5 bilhões de visualizações e, no Instagram, não faltam influenciadoras aparecendo aqui e ali com um bom Jean Paul Gaultier de algumas décadas atrás. Casas de leilões tradicionais, como Christie’s e Sotheby’s, não deixaram por menos e criaram recentemente departamentos exclusivos para itens de vestuário, tamanho é o interesse – a valorização – por tais peças.

“Hoje tudo é muito parecido, pois as tecelagens fazem tecidos similares e a malharia é sempre a mesma coisa”, opina o estilista Marcelo Sommer, frequentador de brechós desde a adolescência e coautor, ao lado de Helô Rocha, de alguns dos upcycling mais legais do país, sobre o fenômeno.

Mas, para ser valorizado, um item histórico precisa, claro, estar em boas condições. Ou seja, conservado. Prática que não é nada simples, muito menos barata. Manter uma coleção de roupas demanda tempo, espaço e cuidados de preservação constantes e específicos de cada técnica de produção, material e contexto em que uma peça foi criada ou usada. 

“Cada tecido, bordado, renda e vivência devem ser analisados individualmente”, diz Amanda Cordeiro, professora do curso de conservação e restauração de bens culturais móveis da Universidade Federal de Minas Gerais, a primeira a ter essa disciplina no Brasil (hoje ela também é encontrada na UFRJ, UFPEL e UFPA, além de cursos de nível técnico) e uma das poucas que incluem têxteis no campo de estudo. 

Como empecilhos, a professora cita a falta ou a limitação de recursos, de capacitação e treinamento adequado. Garantir temperatura, luz, umidade, espaçamento e manuseio apropriados, entre outras práticas, por exemplo, exige conhecimentos técnicos e investimento. “E tem ainda um ponto que recai sobre a fragilidade das peças. Outras formas de arte, como a escultura, têm um tempo de preservação maior”, argumenta.

 

Casa Juisi 1

De brechó a acervo da moda nacional

Um dos acervos mais importantes do país, a Casa Juisi surgiu no ano 2000 como um brechó, em São Paulo, com a curadoria de Simone Pokropp e Junior Guarnieri. O negócio começou pequeno, no apartamento da dupla no bairro do Jardins, e o crescimento foi constante, vide os vários endereços ocupados pelo Jusi by Liquor, como era inicialmente conhecido, até a chegada ao número 108 da Rua Roberto Simonsen, no centro da cidade. O prédio, onde funcionou o primeiro cartório da capital paulista, hoje abriga uma coleção de 5 mil peças.

A transição entre loja de roupas de segunda mão e acervo histórico aconteceu quando alguns colecionadores com quem Simone e Junior tinham relações de longa data passaram a oferecer itens de criadores importantes no Brasil, como Clodovil, Dener e Markito. Cientes de que aquilo não poderia se perder ou virar lixo, os dois decidiram preservar pedaços da história da moda nacional do jeito que der.

“Nenhum item do acervo da Casa Juisi está à venda”, fala Simone. “Nem tenho resposta para dar quando pedem para comprar. Estou tentando salvar uma parte da história da moda brasileira e isso não me traz tanto dinheiro. Por isso, alugo 80%, e 20% fica parado.” 

Além dos fundadores, o acervo conta com dois profissionais e com o suporte de freelancers. As condições de conservação, como em boa parte das coleções no país, porém, dificilmente seguem todos os preceitos necessários por falta de recursos e estrutura.

“Herdamos da Escola de Comunicação e Artes da USP alguns figurinos de farda do começo dos anos 1930 que estavam em um prédio abandonado”, conta Simone. “Hoje, elas estão protegidas contra a poeira. Se não fosse isso, o destino delas seria muito pior. Mas não consigo dar toda a atenção que elas precisam. Já tentamos ajuda com instituições museológicas, e é sempre uma mão que mais pede do que oferece. A minha vontade é pegar o Adriano Pedrosa (diretor artístico do Masp) e falar: ‘Pelo amor de Deus, para tudo que você está fazendo. Eu tenho isso daqui, coloque em seu radar’.” 

“Minha vontade é pegar o Adriano Pedrosa e falar: ‘Pelo amor de Deus, para tudo que você está fazendo. Eu tenho isso daqui, coloque em seu radar’.” – Simone Pokropp 

Acontece que nem o Museu de Arte de São Paulo tem um especialista em tecidos ou roupas no time.

Pautado em realidade

“Não é a realidade atual do museu possuir um restaurador para cada tipo de material”, declarou, em nota, o departamento de acervo e conservação do Masp. Criado oficialmente em 1972, o acervo de moda da instituição reúne peças de designers renomados, itens doados pela empresa de tecidos Rhodia e parte de uma rica coleção de roupas feitas em parceria entre artistas e estilistas brasileiros desde a década de 1960.

Hoje, a preservação de moda e vestuário do museu é feita em conjunto pelas equipes de conservação e restauro. Os têxteis, assim como todo o acervo, recebem acondicionamento e guarda próprios. As conservadoras possuem conhecimento e existe bibliografia especializada”, continua o comunicado enviado à ELLE View.

Possíveis agentes de degradação são identificados pelos profissionais, que determinam quais processos podem ser feitos para reduzir e gerir os danos, tais como controle da qualidade do ar, temperatura, umidade relativa, modos de acondicionamento e formas de manuseio e de acesso e exposição. 

Já o restauro é feito por colaboradores externos. “Idealmente podemos pensar que seria importante ter um especialista para cada tipologia de material, principalmente se fosse o caso de realizar intervenções de restauro. Contudo, a coleção atualmente se encontra em boas condições e, quando necessário, são contratados consultores ou especialistas externos”, finaliza o Masp.

Além do impedimento financeiro, há uma resistência cultural que dificulta uma melhor preservação e manutenção dos acervos existentes. Amanda Cordeiro, professora da UFMG, acredita que o entendimento cultural de moda e vestuário como arte decorativa, menos importante e valiosa, também contribui para a falta de atenção e incentivo. “Parece uma discussão antiga, mas até hoje há dificuldade de valorizar hierarquias com funções utilitárias e decorativas”, afirma ela.

Outra coleção robusta é a da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), que conta com uma especialista têxtil desde 1999. Seu nome é Maria Cristina Ribeiro dos Santos, técnica em química e mestre em conservação predial, especializada em conservação e restauração de têxteis.

“Ao entrar, todas as peças são catalogadas e, nesse processo, é feita uma análise de materiais, estado de conservação, fotografia do todo e dos detalhes e acondicionamento. Tudo de acordo com a especificidade de cada item”, explica Maria Cristina. No total, sua equipe é formada por mais duas conservadoras, uma coordenadora de curadoria, dois montadores e uma monitora.

 

Marcio Banfi 1

Acervos particulares e oportunidades de negócios

Stylist e professor da faculdade Santa Marcelina, Márcio Banfi possui um acervo de 1,5 mil peças em São Paulo. O recorte da sua coleção é feito por itens importantes de estilistas que marcaram a história. Tem desde os brasileiros Clodovil e Guilherme Guimarães até estrangeiros, como Yves Saint Laurent e o mesmo Jean Paul Gaultier, sucesso das mídias sociais. “Poucos se interessam por Dener. Querem sempre ver os gringos e famosos”, comenta.

As roupas foram inicialmente adquiridas para ajudar com seu trabalho de styling e, quando começou a dar aula, Banfi percebeu que também poderia usá-las na formação dos alunos. Coleções costumam ter pontos de origens variadas – necessidade de trabalho, curiosidade, admiração, herança –, bem como os pontos finais. “O fim talvez seja ter acabado o espaço, o dinheiro ou o interesse”, arrisca Banfi.

“Às vezes, empresto para um filme e pago o aluguel do espaço em que mantenho meu acervo por até um ano. Em outras, fico seis meses sem alugar nada”, conta. Pensando em valores, Banfi explica que há variação, mas que conhece acervos que chegam a cobrar 20% do valor original da peça por um empréstimo. Claro, quando essa comparação ainda é possível.

O stylist e professor já recebeu propostas para vender o acervo, no entanto o valor foi “absolutamente impensável”. Para ele, seria mais interessante doar para alguma instituição com capacidade financeira para manter e preservar as roupas. “Não quero passar para alguém que só quer comprar e revender depois.”

Claudia Garcia, fundadora da loja online vintage Youtopia, é uma das que colecionam roupas com foco comercial. O acervo de sua loja, em Vitória, tem entre 1,5 e 2 mil itens. “Se você pega uma saia de um designer que morreu, como Yves Saint Laurent, consegue vender por um valor bem alto”, afirma ela.

O foco do Youtopia são peças vintage de qualidade, que representam uma época pela modelagem e pelo tecido, mas que se mantêm atemporais. Entretanto, apesar da predileção por qualidade e cuidados, os itens ainda estão suscetíveis à passagem do tempo, é bom lembrar. 

“Uma blusa de seda da década de 1970 pode ser vendida em perfeito estado e, em um mês, rasgar. Acontece e a gente troca”, explica Claudia. “Quando você vende algo de época, muitas vezes pode ser um item com qualidade superior, mas em outras situações o tecido não aguenta. Em alguns casos, você também precisa refazer a barra e trocar botões e forro. Pode haver um grande custo por trás de uma peça dos anos 1960 em uma loja”, finaliza.