Quem tem medo da inteligência artificial?

Hollywood sai na frente na discussão sobre os direitos dos trabalhadores em relação ao progresso tecnológico.

Em Joan é péssima, episódio da sexta temporada de Black mirror, uma mulher (Annie Murphy) vê sua vida transformada em uma produção de streaming em que é interpretada por Salma Hayek. 

Na verdade, a série foi toda feita por inteligência artificial, pois a atriz cedeu os direitos de sua imagem. O que alguns anos atrás geraria comentários como “nossa, parece Black mirror” hoje está mais para “Olha como Black mirror imita o que acontece de verdade”. 

Atores sendo substituídos por imagens digitais, textos de ficção e jornalísticos escritos por máquinas e androides interagindo como seres humanos, vide filmes como Blade runner (1982) e A.I. – Inteligência artificial (2001), a partir de uma história concebida nos anos 1970, estão cada vez mais longe da ficção científica e próximos da realidade. 

 

Quem tem medo da inteligência artificial?

 

E é esse um dos motivos pelos quais atores e roteiristas de Hollywood entraram em uma greve histórica – os sindicatos das categorias não paralisavam as atividades ao mesmo tempo desde 1960, quando os computadores pessoais nem existiam, e Tom Cruise não tinha nascido ainda. 

Entre as reivindicações, além do aumento dos salários e de um contrato que contemple a revolução ocasionada pelo streaming, está a proteção para atores e roteiristas de que seus trabalhos não sejam substituídos pela inteligência artificial. 

Na entrevista coletiva de anúncio do início da greve, aprovada por quase 98% dos membros do SAG-Aftra (Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists, ou Sindicato dos Atores-Federação Estadunidense de Artistas de TV e Rádio), o negociador oficial, Duncan Cabtree-Ireland, disse: “Os atores enfrentam agora uma ameaça existencial para sua subsistência devido ao uso da inteligência artificial e das tecnologias generativas”.

 


“Os atores enfrentam agora uma ameaça existencial para sua subsistência devido ao uso da inteligência artificial e das tecnologias generativas”.
Duncan Cabtree-Ireland

 

Ele prosseguiu dizendo que os estúdios que fazem parte da AMPTP (a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão, que reúne Amazon/MGM, Apple, Disney/ABC/Fox, NBCUniversal, Netflix, Paramount/CBS, Sony, Warner Bros./Discovery) teriam sugerido que os figurantes poderiam ser escaneados, ganharem por apenas um dia de trabalho, e as companhias poderiam usar essas imagens para sempre, sem pagamento extra. A AMPTP negou que a proposta tenha sido essa. 

É improvável que alguma pessoa aceitasse ceder sua imagem perpetuamente para uma empresa, sem saber em que ela poderia ser usada – por exemplo, um ator judeu poderia ser escalado para fazer um nazista sem ser consultado. Fora isso, ser figurante em um filme ou uma série é a porta de entrada para muitos atores, que precisam de créditos para rechear o currículo. 

Ou são mesmo o ganha-pão. Hollywood não é feita só de Ryan Goslings e Margot Robbies, que ganham milhões de dólares por cada projeto. Cerca de 87% dos membros não têm o plano de saúde do sindicato por não alcançarem o mínimo necessário: ganhar mais de 26 mil dólares ou trabalhar 102 dias em 12 meses. 

Pouco antes de ser escalado para Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, pelo qual ganhou o Oscar este ano, Ke Huy Quan era um dos sem plano. 

Trata-se de uma ameaça existencial, como disse Crabtree-Ireland, porque a inteligência artificial generativa é capaz de aprender padrões complexos de comportamento a partir de uma base de dados. O avanço foi tamanho no último ano que os atores e roteiristas de Hollywood viram que não dava mais para adiar essa pauta, que deve estar nas discussões de todos os setores nos próximos meses. 

 

GettyImages 1601314717

 

A verdade é que a inteligência artificial já é bastante utilizada em Hollywood. “Ela impactou a produção, revolucionando muitos aspectos da criação e entrega de conteúdo de maneiras conhecidas e de formas que ficam mais nos bastidores, às quais o público em geral e mesmo pessoas da indústria não têm conhecimento”, disse à ELLE Deepak J. Chetty, chefe do departamento de artes cinemáticas emergentes da Universidade do Texas em Austin. 

Por exemplo, nas animações e na área de efeitos visuais, a inteligência artificial cria ambientes detalhados e aperfeiçoa as performances de captura de movimento, como as utilizadas em Avatar

Já a polêmica tecnologia do “deep fake” recria a imagem e a voz de atores. É possível fazer cenas com Carrie Fisher como princesa Leia mesmo depois da morte da atriz. Ou encontrar todas as imagens de Harrison Ford para rejuvenescê-lo na sequência de abertura de Indiana Jones e a relíquia do destino. Ou ainda fazer Elis Regina contracenar com sua filha Maria Rita, adulta, em um comercial de televisão. “Apesar da controvérsia, isso abre horizontes para os cineastas e atores para futuras possibilidades narrativas”, acredita o professor.

A IA hoje é utilizada pelas plataformas de streaming para proporcionar recomendações de conteúdo, aumentando o engajamento do público. Ela pode ainda fornecer dados referentes às reações da audiência para que o conteúdo agrade a mais pessoas e dar informações que permitam prever o sucesso de séries e filmes. 

 

“O desafio é usar a inteligência artificial para aumentar e não ofuscar a criatividade humana.”
Deepak J. Chetty

 

Essas oportunidades todas, porém, também escondem perigos. “A indústria precisa tomar cuidado com a redução do toque humano no conteúdo e com os dilemas éticos, especialmente com tecnologias como os deep fakes e a criação de conteúdo generativa”, disse Chetty. “O desafio é usar a inteligência artificial para aumentar e não ofuscar a criatividade humana.”

Um medo dos roteiristas e dos atores é que a tecnologia use o trabalho feito por eles como alimento e, depois de ter aprendido e absorvido tudo, elimine os seres humanos dessas profissões. Ou seja, as pessoas podem “ensinar” as máquinas e serem substituídas pelos alunos-máquinas. 

Há um perigo grande na falta de definição do que é criação e do que é plágio. Se as máquinas receberem centenas ou milhares de textos, de quem é a autoria desse roteiro? Quem recebe por qual parte? Se conseguir replicar a atuação de uma Meryl Streep, sem usar a imagem de Meryl Streep, como fica isso? A clonagem de vozes já é algo totalmente possível hoje.

O professor Deepak J. Chetty destacou o lado positivo da ferramenta, como ajudar os roteiristas a construir seus personagens e arcos dramáticos. Ele acha difícil os atores realmente serem substituídos, pois uma performance humana é diferente. “Contanto que essas técnicas sejam usadas como apoio à criação de conteúdo, e não como uma troca, eu sou otimista.”

É uma época empolgante, embora um tanto assustadora. Ele admite que muitos empregos atuais se tornarão irrelevantes, deixando um bocado de gente desempregada. “É um novo paradigma de criação de conteúdo. Eu espero que o uso seja responsável e haja respeito pelos artistas, sua arte e seus processos. Eu ficaria perturbado se o processo de criação da arte fosse substituído no atacado pela automação.”

E essa é uma realidade em todas as indústrias. Hollywood pode ser o posto mais avançado ou com mais holofotes sobre a discussão, mas a verdade é que ela atingirá todos nós, quaisquer que sejam nossas profissões.