Mães na estrada

Mallu Magalhães, Negra Li, Pitty e Roberta Sá dividem os desafios e as belezas em conciliar a vida entre os palcos e o dia a dia com os filhos.

Se a rotina, ou a falta dela, para cantoras que vivem de palco em palco mundo afora, entre viagens, hotéis, shows e noites sem dormir, já é por si só exaustiva, imagine acrescentar a essa pilha de pratinhos a serem equilibrados o peso da maternidade. Sim, é um peso. Porque o laço entre mães e filhos pode ser a mais perfeita definição de amor, mas é também cansativo física e emocionalmente, desafiador, assustador e, por vezes, solitário. Como descreveu Pitty, maternar é “um mistério e uma explicação”. 

“Acho especialmente curioso como a maternidade é esse encontro e essa convivência de pesos e levezas, sombra e luz, ganhos e perdas. É como se fosse uma manifestação palpável do que é estar vivo”, diz Mallu Magalhães, 31 anos, mãe de Luísa, 7, do casamento com o cantor Marcelo Camelo.   

Quando ela nasceu, em 2015, Mallu se preparava para a turnê Saudade, em formato voz e violão. “Foi muito difícil porque eu planejei a turnê grávida, mas não sabia como era criar um bebê. Quando ela nasceu é que notei que nada do que planejei seria como o planejado”, lembra, rindo. “Um grande amigo que me ajudou muito foi o canguru (uma espécie de mochila em que se carrega o bebê junto ao corpo). A amamentação também ajudou. E juntas aproveitamos muito cada momento. Acho que foi um curso intensivo de curtir a vida como ela se apresenta, em vez de ficar resmungando que não aconteceu como você escreveu na planilha do Excel.”

 

“Quando ela nasceu é que notei que nada do que planejei seria como o planejado” Mallu Magalhães

 

Hoje, morando em Lisboa, com idas a São Paulo, Mallu segue em tour com seu quinto disco, Esperança (2021), mas consegue pensar a carreira de forma a minimizar a distância da filha. “A maneira que encontrei para viabilizar a vida de shows com a rotina da escola da Luísa foi espaçar mais as datas e evitar shows seguidos. Dessa maneira, consigo muitas vezes voltar para casa no mesmo dia e não fico ausente por mais de uma noite.” Nesse contexto, evita também viajar para países distantes de Portugal ou para estados que não sejam próximos de São Paulo, onde moram seus pais, nas temporadas de shows no Brasil. Sem se afastar da filha, ela consegue também pensar nos próximos passos de sua marca de roupas, a GranGran.

Estreia ainda na barriga

Roberta Sá, 42 anos, apresentou o palco para sua primeira filha, Lina, hoje com quase 8 meses, ainda na gestação. A cantora fez o registro de seu mais recente trabalho, o DVD Sambasá ‒ Ao vivo, grávida de Lina, em um show no Circo Voador, no Rio de Janeiro. “Minha voz estava superdiferente. O diafragma fica muito comprimido com o bebê, então eu sentia bastante falta de ar”, lembra. De todo modo, foi uma gestão tranquila, diz ela, e o principal desafio era o sono. “Queria que os shows fossem mais cedo (na gravidez) e essa vontade permanece. (risos) Porque, depois que você tem filho, começa a acordar, sei lá, às 5h30, ou várias vezes à noite. Amamentar cansa muito, e eu faço isso em livre demanda, que para a criança é a melhor coisa, mas para a mulher é muito desafiador. Seu corpo fica a serviço disso.”

O retorno da sambista ao trabalho aconteceu dois meses e meio após o parto. “Precisava voltar a trabalhar, depois de dois anos de pandemia. Não tinha como parar nem artisticamente nem financeiramente.” Foram duas noites de show em um camarote no Carnaval do Rio este ano, sem nem pensar em esticar para curtir a festa. Só um banho na volta para casa para tirar o glitter e a purpurina e, enfim, alimentar a filha. “Cansativo, mas me dava a sensação de potência também, de realização.”

 

“Uma vez entrei no palco chorando, pensando: ‘Caramba, estou muito cansada, como é que eu vou conseguir fazer esse show?’” Roberta Sá

 

Desde então, Lina já conheceu muitos camarins de teatro onde a mãe se apresentou e fez até uma tour pela Europa. “Eu e Pedro (Seller, marido de Roberta) decidimos continuar amamentando a Lina na estrada. É mais tranquilo do que eu imaginava, mas também porque tem o pai junto, né? E ele se dispôs a viajar comigo para todos os shows no primeiro ano.” Toda a logística das apresentações é baseada em facilitar as coisas para a filha, conta. As apresentações ficaram propositalmente mais espaçadas. Roberta procura chegar à cidade do show na noite anterior e está sempre em contato com o pediatra. A estrutura ajuda, mas, claro, tem horas em que o cansaço bate. “Uma vez entrei no palco chorando, pensando: ‘Caramba, estou muito cansada, como é que eu vou conseguir fazer esse show?’ Atrasou muito, chuva, o dente nascendo, ela tinha acordado de hora em hora para mamar.”  

Mães na Estrada

Mallu Magalhães e Roberta Sá Fotos: Daryan Dornelles/Anne Karr

Calma, vai passar 

Em 2018, Pitty lançou, ao lado do codiretor Otavio Sousa, Do ventre à volta. O documentário é um registro íntimo do processo de voltar aos palcos após a gravidez toda em repouso por recomendações médicas e o nascimento da filha, Madalena, hoje com 6 anos (do casamento com Daniel Weksler, baterista do grupo NX Zero). Animada para o retorno, que se deu no festival João Rock, após um hiato de quase dois anos, a roqueira relata no filme o cansaço para ensaiar por ter acordado cedo para amamentar. “Houve horas na montagem e na edição (do filme) em que eu falei: ‘Cara, eu estou muito vulnerável aqui, mas tudo bem’. Eu me deixei mostrar desse jeito, até porque é um momento único na vida das mulheres”, lembra. “Para mim, foi único por eu ter tido uma gravidez em repouso, por ser uma artista, trabalhar com o palco, com o público e, de repente, ficar em casa com a minha barriga e a minha filha, naquele meu gigantesco universo particular, cheio só dos meus pensamentos e, claro, de uma vida dentro de mim. Então, era tudo muito poético, melancólico e feliz ao mesmo tempo. Uma mistura de sensações.” 

 

 

Desse período de “muita revolução hormonal, pessoal e de rotina”, ela lembra a sensação intensa de ter que voltar para o mundo com um pé no trabalho e outro na primeira fase da criança. “Foi muito grande para mim. É cansativo cuidar, dar de mamar, estar disponível, mas eu amava e tenho muita saudade de dar peito, por exemplo. Ao mesmo tempo, lidava com o sentimento de voltar para o palco transformada pela maternidade.” 

Se a volta cinco anos atrás foi intensa, hoje a baiana consegue rever as dificuldades do puerpério por outra perspectiva. “Mesmo quando alguém falava ‘calma, vai passar’, a gente não consegue assimilar porque está imersa naquele momento. Hoje eu olho e penso ‘nossa, passou mesmo’”, avalia. “É uma vitória. Foi uma gravidez difícil, mas que valeu muito a pena.” 

Mães na Estrada

Negra Li e Pitty Fotos: Rodolfo Magalhães e Bruno Fujii

Duas gestações, duas cantoras

O intervalo de oito anos fez com que a rapper Negra Li, 44 anos, mãe de Sofia, 14, e Noah, 6, vivesse de maneira diferente as gestações. Nas duas ocasiões, ela trabalhou até o final da gravidez e voltou ainda no puerpério. “Na gravidez da Sofia, eu enjoava muito. Depois, ela, bebê, viajou bastante comigo. Com o Noah, coincidentemente fiz shows em locais mais próximos de onde eu estava. Mas eu tinha dores e lembro de o leite empedrar”, relembra. “O que aconteceu nas duas vezes foi me sentir sozinha no final da gravidez e logo após o nascimento deles. Era uma tortura. Eu me senti inútil no fim da gravidez e pensava: ‘A barriga está pesada, mal consigo andar, não vou poder trabalhar’. Quando o bebê nasce, às vezes, a gente beira a depressão pós-parto e não sabe, e o homem não entende. Lembro muito de me sentir sozinha, mesmo com o pai da criança dentro de casa.” 

 

“Quando o bebê nasce, às vezes, a gente beira a depressão pós-parto e não sabe, e o homem não entende” Negra Li

 

Artisticamente, os filhos acabaram por influenciar de formas totalmente distintas o seu trabalho. “Na primeira gravidez, fiquei um pouco mais retraída. Acabei ouvindo mais MPB, fiz um disco inspirado no gênero (Tudo de novo, 2012).  Comecei a usar saião, mudei um pouco meu jeito. Já na gravidez do Noah, não entendi nada. (risos) Quando vi, estava fazendo um clipe praticamente de calcinha e sutiã (da música “Malagueta”), resgatando uma mulher selvagem. Três anos depois, me separei. E aí veio também uma conexão com a minha sexualidade.”

Nasce a mãe, nasce a culpa

Se sobram boas lembranças dos primeiros anos dos filhos, inevitável rememorar também certa culpa pela falta de rotina acarretada pela carreira, diz Negra Li. “Hoje, por exemplo, meu filho não foi à natação porque estou doente, com dor de garganta. Mas aprendi a parar de me culpar. Tem uma voz sempre me lembrando: ‘Você precisa tentar dar aos seus filhos uma rotina, porque não é a escolha deles ser artista’. E eu tento ao máximo.”

O dia a dia de uma cantora tem também seus benefícios: “Eu me sinto abençoada por muitas vezes estar em casa em momentos em que mães normalmente estão trabalhando, por ter conseguido amamentá-lo até os 2 anos. Fico pensando como é a vida de mães que precisam deixar seus filhos na creche com meses de vida e vê-los só no final da tarde”.

Equilibrar os dois papéis, diz, foi algo que aprendeu com o tempo. “Se deixar, viro dona de casa, só mamãe. Tenho que me policiar. Com a Sofia, foi assim e, quando vi, estava fazendo poucos shows. Hoje não. Depois de perceber meus filhos me olhando, com orgulho da paixão que tenho pelo meu trabalho, virei essa chavinha. Não é só ser uma dona de casa que vai fazer meus filhos se orgulharem de mim. É ser uma mãe feliz. Mãe feliz, filhos felizes, daí eu entendi tudo.”

 

“A maternidade é um aspecto maravilhoso da minha vida, mas não saberia viver sem o meu aspecto de criadora, compositora, artista de palco, de ter uma vida social” Pitty

 

Roberta conta estar descobrindo esse novo jeito de ser como profissional. “É tudo misturado. A mãe está cansada, a voz fica cansada. Agora, comecei a sentir vontade de existir para além da maternidade, e com isso vem a culpa.” De toda forma, há lugares em que a cantora ajuda a mãe. “Ganhei peso pra caramba na gravidez. É muito louco às vezes você estar desconfortável com a sua imagem e ter que subir ao palco. Para mim, foi: ‘Trabalho com meu corpo, estou me sentindo esquisitaça com esse peito gigante, jorrando leite. Mas preciso voltar a trabalhar e vou assim mesmo’. E senti nisso outra beleza, que vem da força de conseguir fazer isso”, afirma. “É um exercício maravilhoso você não se abandonar, ser obrigada a olhar para você, tanto física quanto emocionalmente. Para fazer um show, tenho que estar com tudo em cima emocionalmente. Estou fazendo isso pela Lina também. Tem que estar inteira para ser uma mãe inteira, né?”

Acolher essa nova mulher depois da gestação foi também um processo para Pitty. “Você vira mãe e nunca mais vai deixar de ser, não importa o que aconteça. Então, é deixar ir uma pessoa que você era e acolher essa nova, que você também não conhece e vai passar a conhecer na medida em que for se aprofundando na maternidade, com seu filho crescendo.”

A roqueira vê a maternidade e o próprio ofício como dois lugares onde “a alma está”, sem que um seja mais importante ou anule o outro. “A maternidade é um aspecto maravilhoso da minha vida, mas não saberia viver sem o meu aspecto de criadora, compositora, artista de palco, de ter uma vida social com meus amigos. Não saberia viver apenas sendo mãe. Acho que todas essas outras coisas complementam e fazem de mim uma mãe melhor.”

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Fotos em destaque: Rodolfo Magalhães, Daryan Dornelles, Bruno Fujii e Anne Karr