A cara do espanto

Nem só de make de bonita vive a maquiagem. Especialista em produções assustadoras, o professor e maquiador Márcio Desideri revisita os principais momentos da sua carreira e diz em qual personagem você deveria apostar no Halloween.

“Tem uma lenda entre os maquiadores de que a maquiagem cênica escolhe a gente, e não o contrário. Eu nunca imaginei ser maquiador”, diz, de cara, Márcio Desideri, que começou a carreira por acaso, preparando atores em noites de Halloween, em um parque de diversões em São Paulo – hoje ele é responsável pelo visual de artistas em after parties do Oscar, por exemplo. 

Aos 38 anos, 13 deles no mercado artístico, Márcio já assinou trabalhos com grandes canais de televisão, como Fox, Universal Channel e Syfy, deu vida a zumbis na estreia da série The walking dead no Brasil e tem uma trajetória profunda em estudos teóricos nas artes plásticas. 

No currículo, acumula graduação e mestrado em artes visuais, especialização em técnicas realistas na Cinema Makeup School, em Los Angeles, Estados Unidos, e é doutorando em artes da cena na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Como pesquisador, criou o termo “maquiartista”, ao investigar os processos criativos da maquiagem nas artes visuais para “ampliar o papel do maquiador e legitimar a práxis na academia”, e entre suas inspirações e referências cita Tunga e Elle de Bernardini. 

E, claro, bons filmes de terror. Confira.

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Como surgiu o seu interesse pela maquiagem cênica?

Eu comecei a fazer artes visuais na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e, por coincidência do destino, a faculdade ficava perto do Playcenter, em São Paulo, onde aconteciam as Noites do Terror, no período de Halloween. Como sempre me interessei por performances e surrealismo, vi que abriram uma vaga para ser maquiador no evento e me apliquei para ser assistente. Mas me colocaram como maquiador mesmo. Aí começou a loucura. Havia profissionais maravilhosos lá, e eu não tinha nenhuma habilidade para maquiagem. Era artista plástico mesmo. 

Você nunca tinha feito maquiagem artística antes, então?

Uns machucadinhos só, mas não tinha profissionalismo. Quase desisti, pois foi muito difícil para mim. Eu não desenhava, não fazia escultura, não tinha habilidade. Mas me dediquei e fiquei três anos trabalhando nas Noites de Terror do parque. De lá, eles me indicaram para a Fox Channel Brasil, que precisava de um brasileiro para fazer os zumbis nos eventos de estreia da temporada da série The walking dead. Foi aí que eu entrei de cabeça na área da maquiagem e nunca mais parei.

“O terror adolescente Fala comigo (2022) tem algumas maquiagens muito incríveis e bem complexas.”

E lá se foram 13 anos de carreira. Quais são as principais técnicas que você usa?

Na maquiagem, temos questões de criação de personagem e de funcionalidade. Então a técnica depende. Eu trabalho com todas as técnicas, da maquiagem cinematográfica à cênica. Quando faço maquiagem para cinema, costumo usar próteses de silicone, que são ultrarrealistas, translúcidas. Um exemplo de uso delas pode ser visto no filme Bombshell (2019), que ganhou o Oscar de maquiagem. Nem dava para perceber que a Charlize Theron estava usando prótese. Já na maquiagem cênica, entram a prótese e a espuma de látex (foam latex), porque elas têm uma durabilidade para o palco e funcionam bem com a distância física. Também tem a técnica de body painting, a pintura corporal, com a qual pintamos o corpo com aerógrafo HD. 

Além de um portfólio incrível, você também tem um repertório acadêmico extenso. Como une a prática com a teoria no seu dia a dia?

Eu acho que a gente ainda vive num momento de pensamento cartesiano, em que a teoria é uma coisa e a prática é outra. Na qual não se vive de teoria. Tem que ter prática. Só que para mim não é assim. Sempre tive essa fome, essa sede de conhecimento. E a falta de informação, de livros, de fundamentação teórica sobre as maquiagens cinematográfica e cênica é assustadora. Já tenho alguns artigos publicados e acredito nessa união da prática com a teoria, que, para mim, é uma coisa só.

Como professor de maquiagem artística, o que você mais procura ensinar a seus alunos?

O que eu faço é quebrar paradigmas do senso comum da maquiagem e mostrar que ser um maquiador não é só ir lá e executar a técnica. É justamente englobar isto: a fundamentação teórica, a construção de conhecimento, a inteligência emocional. Não é só chegar e fazer uma maquiagem incrível. Existem coisas por trás disso.

Como você vê o mercado no país atualmente?

Sinto que estamos em um momento de expansão. Quando eu estava estudando em Los Angeles, percebi que a gente tem tanto potencial. Por que não estamos valorizando os maquiadores que temos aqui? Vivemos também em um momento importante para reconhecer trabalhos nacionais, a exemplo dos feitos na série Cidade invisível (Netflix), na fantasia e no terror de Desalma (Globoplay) e no Reality Z, com a Sabrina Sato, que tem uma megaprodução. Temos a vontade de fazer esse cinema com muitas próteses e efeitos especiais que trazem esse realismo. É o momento de voltar o olhar para o Brasil e valorizar os profissionais daqui. Arregaçar as mangas.

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Há investimento no mercado para tal valorização?

Tem demanda, mas o mercado ainda não está preparado para lidar com ela. Porque tudo isso envolve orçamentos e processos. Começamos com pesquisa, depois o desenho, em seguida a prévia de coloração, para depois esculpir, criar as próteses e aplicar. O que acontece muito é gente pedindo maquiagem num prazo de cinco dias. E aí voltamos para a falta de fundamentação teórica, de conhecimento. A partir do momento que entendermos qual o real papel do maquiador, isso tende a melhorar.

Quais seriam os maiores desafios de um maquiador artístico no Brasil?

São vários. Para começar, é uma profissão muito cara, porque envolve grande investimento em produtos, que não são baratos: HD, próteses, silicones. A especialização na área também é um desafio, pois ainda nos baseamos em cursos no exterior. Por último, treino. Tem que treinar muito. É uma profissão que exige muito da gente. 

Entre as maquiagens que você já fez, qual a preferida?

Gosto muito do trabalho que fiz para o filme O livro reverso perverso de Abigail (2022). São cenas bem realistas, com efeitos de machucado, próteses. Foi uma maquiagem que me marcou muito. Foi intenso. Visualmente falando, gosto também do molusco humano que fiz em Los Angeles. Passei um mês trabalhando na escultura e foram mais de sete horas de aplicação. Fiz tudo do zero. 

Se você tivesse que apostar em alguma personagem ou fantasia para este Halloween, qual seria?

O terror adolescente Fala comigo (2022) tem algumas maquiagens muito incríveis e bem complexas. A freira 2 (2023), que estreou recentemente, também. Para um baile, vale apostar na maquiagem glam, aquela em que a gente pega a personagem e a modifica para uma forma mais glamourosa. Outras atuais seriam Cruela (2021), Barbie (2023), Wandinha (2022) e as personagens da refilmagem de Beetlejuice (estreia em 2024).

Tem alguém que você ainda sonha em maquiar?

Sabrina Sato. Acho ela maravilhosa. E, fora do Brasil, aquela pessoa, né… Lady Gaga! (risos)

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