CemiTok

Criadores de conteúdo do TikTok desmistificam a aura de terror dos cemitérios e mostram que eles podem ser lugares que reúnem arte, beleza e histórias.

Uma coisa é certa: um dia você vai morrer. E, quando isso acontecer, é provável que seu lugar de descanso final seja um cemitério.

É normal sentir medo. Os cemitérios, como lembretes tangíveis de nossa finitude, despertam sentimentos conflitantes. Mas nem só de luto e clima de filme de terror se faz uma necrópole. Elas também têm sua beleza: oferecem tranquilidade, arte e a oportunidade de conhecer (muita) história.

Se você já teve curiosidade para saber quem são aquelas pessoas – e seus amores, ódios e paixões – que hoje habitam os cemitérios, talvez seu lugar seja no GraveTok, comunidade do TikTok que reúne os tafófilos, como são chamados os apaixonados por cemitérios.

Nessa comunidade, organizada em torno da hashtag homônima, que conta com mais de 800 milhões de visualizações, os membros limpam lápides abandonadas (seguindo a obsessão do app por vídeos satisfatórios). Eles também mostram a rotina de trabalho nos cemitérios, ressuscitam a história dos mortos e até cozinham, recriando receitas familiares legadas ao futuro por meio de epitáfios.

 

@ghostlyarchive

Trying recipes inscribed on tombstones. Let me know if you’ve found others #cemeteryexploring #bakersoftiktok #recipegravestone #gravestonerecipe #taphophile #gravetok #cemterytok #cemeterytiktok #bakingrecipe

♬ Ooh Ahh (My Life Be Like) [feat. Tobymac] – Grits

 

No Brasil, uma das principais produtoras de conteúdo é a designer Ivi Pivetta Viero, proprietária do perfil @tumultulos. Ela conta que seu interesse pelo tema é antigo. “Desde criança, eu sempre tive curiosidade sobre cemitérios. Mas percebia que as pessoas sentiam repulsa, então eu nunca conseguia matar minha curiosidade.”

Quando se mudou para a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Ivi começou a frequentar esses espaços, estabelecendo conexões entre os nomes que via nas lápides e a história da cidade, como o nome das ruas. Como as visitas se tornavam mais frequentes e as imagens de cemitérios passaram a dominar seu perfil pessoal, ela decidiu criar uma página no Instagram dedicada exclusivamente ao tema.

O perfil no TikTok surgiu após uma conversa com um motorista de aplicativos, em que Ivi descobriu que o poeta Lobo da Costa morreu no mesmo local em que ela vivia, quase 150 anos antes. A designer lembrou de ter visto o túmulo dele no cemitério e resolveu limpar a lápide do poeta, com a ajuda do noivo, Germano Londero Zenkner. O resultado final foi compartilhado despretensiosamente na rede social, sem grandes expectativas.

“Criei uma conta naquele dia e postei o vídeo. Esquecemos a história e fomos fazer outras coisas”, conta Ivi. “No final do dia, quando a gente foi ver, o vídeo estava com quase 1 milhão de visualizações. Foi nesse momento que eu percebi que tinha mais gente interessada.”

 

@tumultulos

Uns dias atrás viralizamos no tiktok por limpar o túmulo de um tal Lobo da Costa, mas afinal, quem foi ele? Já tinha ouvido falar? #lapides #limpandolapides #tumulo #póstuma #cleaningasmr #artetumular #cemiterioantigo #asmrsounds #tombcleaning #cleaningtok #arttok #limpezadetumulo #artenotiktok #pelotas

♬ som original – tumultulos

 

Por trás dos vídeos de limpeza, está a ideia de combater o abandono. “A gente via vários túmulos em que quase não dava mais para ler o nome da pessoa. Túmulos que eram lindíssimos, só que estão cobertos pela sujeira, pelo acúmulo do tempo mesmo”, explica Ivi. “Há túmulos tão antigos que eu tenho certeza que até os bisnetos (da pessoa enterrada) já estão mortos. Então, quem é que vai cuidar deles? Começamos a limpar por causa disso.”

Atualmente, o perfil possui mais de 130 mil seguidores, que acompanham não só as limpezas, como também vídeos sobre arte cemiterial e as histórias das personagens sob as lápides – trazendo relatos de santos populares, crianças que não chegaram à idade adulta e crimes do passado.

 

@tumultulos

Será verdade que esse túmulo tem uma abertura secreta!? 😲 #arttok #lapides #gothictok #asmrsounds #cemiterioantigo #asmrtok #tumulo #asmr #artetumular #cemiterio #tournocemiterio #tumbas #passeionocemiterio #misterios

♬ Mantra – Nono

 

“Alguém que era superimportante na sua época, por exemplo, e hoje em dia ninguém mais sabe quem é, eu consigo resgatar isso através do túmulo dele. Dizem que eu ‘ressuscito’ pessoas que já foram esquecidas”, conclui Ivi. 

No caso do analista de sistemas e fotógrafo Kleber Domingos, dono do perfil @arte_tumular_br, o interesse surgiu de outra forma. Ele estava passando por uma crise criativa quando leu em um livro sobre as obras de Michelangelo, como a Pietá e a estátua de Moisés comissionada para a tumba do papa Júlio II. Kleber, então, teve a ideia de dar uma volta pelo cemitério de Bebedouro (SP), onde mora, um lugar que até então não tinha o hábito de frequentar. “Para minha surpresa, assim que eu cheguei, olhando à esquerda, já tinha uma escultura de uma Pietá de bronze”, conta.

Em seu perfil, o fotógrafo registra para seus quase 50 mil seguidores a variedade das obras de artes nos cemitérios. Suas favoritas são as esculturas de mármore, como a reprodução da Musa impassível, uma obra de Victor Brecheret que saiu do cemitério do Araçá para a Pinacoteca de São Paulo. Mas o analista também desenvolveu uma paixão pelas lápides e pelos epitáfios que contam a história de quem está lá.

 

@arte_tumular_br

Arte tumular: Escultura Criança sob mortalha Cemitério de Barretos/SP. . #artetumularbr . #barretos #cemiterio #cemetery #interiorsp #urbex #gravehunter #assustador #viral

♬ som original – Arte Tumular BR

 

“As pessoas evitam falar de cemitério porque, consequentemente, teriam que falar de morte. Só que elas não sabem, ainda, do acervo que são os cemitérios. Não só o acervo artístico, que é inquestionável, mas do ponto de vista socioeconômico. Cada túmulo ali conta um pouco sobre quem era aquela pessoa”, avalia Kleber.

Para a historiadora Viviane Comunale, membro da Abec, a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, esses conteúdos nas redes sociais ajudam a desmistificar os cemitérios. “As pessoas se interessam em conhecer esses espaços. Elas vão começar a frequentá-los e, quanto mais gente circulando, maior a chance de preservação.”

Viviane vê um interesse crescente nas visitas guiadas que coordena no Cemitério da Consolação e enfatiza a importância das memórias contidas nesse lugar. “Quero contar a história dos Matarazzo, mas quero contar também das primeiras pessoas que foram enterradas no Consolação, que eram pobres, que eram prostitutas, que não foram enterradas no Cemitério dos Aflitos. Tem uma grande luta pela preservação de um espaço que remete a essas pessoas que não são a elite desse país”, conta. “Tem muita gente interessada. Então, estou muito contente de ver que a gente está conseguindo atingir essas pessoas.”

Para saber mais

Perfis de gravetokers para seguir no Instagram e no TikTok:

Tumultulos
Arte Tumular BR
Necrotur
Junior Covas
ManicPixieMom
Ghostly Archive
Patrimônio funerário
O que te assombra?