Gritos no trem-fantasma, olhos bem fechados durante as cenas mais fortes em filmes de terror, livros que arrepiam a alma só de olhar a lombada na estante e sustos ao cruzar com alguém fantasiado a caráter na festa de Halloween. Se não somos obrigados a fazer nada disso, afinal de contas, por que gostamos de sentir medo – e até pagamos por isso?
Não existe uma explicação única para o chamado “medo recreativo”, mas as reações e os gatilhos que disparam esse desejo dependem de cada pessoa, segundo psiquiatras e psicólogos. Os motivos variam desde a excitação provocada por hormônios, como a adrenalina e a endorfina, liberados pelo corpo em situações de reação e defesa, até a necessidade de entrosamento social e afetivo.
“Experimentar o medo de forma segura e lúdica faz parte do nosso desenvolvimento desde a infância, com as pequenas experiências do tipo esconde-esconde. Não apenas o desenvolvimento pessoal, mas também social e cultural”, diz o médico psiquiatra Lucas Gandarela, pesquisador do Programa Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
Segundo ele, o medo recreativo divide as pessoas em três grupos. O primeiro é formado por aqueles que curtem a sensação física provocada pela reação do corpo ao medo. “São os ‘buscadores de sensações’, aqueles que gostam da adrenalina”, diz Gandarela. Há também pessoas que realmente sentem medo e vão ficar impactadas pela experiência de assistir a um filme de terror ou percorrer um corredor sinistro em uma festa. “Nesse caso, a motivação pode ser a busca pelo autoconhecimento e a percepção dos próprios limites. É a possibilidade de aprender mais sobre si”, continua o psiquiatra. Por fim, existe quem gosta da sensação de missão cumprida quando o filme acaba ou a jornada no trem-fantasma se encerra. “O alívio ao final da experiência de terror fortalece a busca pelo medo recreativo, pois há uma sensação de potência e fortalecimento pessoal por ter enfrentado aquela situação.”
Em relação aos aspectos sociais, existe ainda a sensação de demonstrar coragem e força perante parentes e amigos. “Experiências de terror estão ligadas a estímulos bons, como assistir um filme com o parceiro ou a parceira, juntinhos, para se protegerem, ou se divertir com os amigos em um Halloween”, afirma Gandarela.
“O alívio ao final da experiência de terror fortalece a busca pelo medo recreativo, pois há uma sensação de potência e fortalecimento por ter enfrentado aquela situação.”
Lucas Gandarela, psiquiatra
Há também o fator segurança embutido nessas situações, já que não são perigos reais. “A pessoa sabe que aquela situação que causou o medo vai passar e acabar, despertando nela um sentimento de controle da sensação de medo”, explica o psicólogo Marcelo Santos, professor do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Ela consegue exercitar a autoconfiança e as habilidades próprias para lidar com esse sentimento”, diz Santos, que também destaca as emoções vividas em esportes radicais ou experiências inusitadas, como voos de balão. “A expectativa e a curiosidade daquilo que é tão radical pode despertar prazer na pessoa através do medo.”
De acordo com os especialistas, as sensações físicas sentidas durante esses momentos mais lúdicos são as mesmas experienciadas pelo medo real. Ou seja: nada mais é do que uma reação do corpo para ficar alerta diante de um perigo ou ameaça. Uma proteção natural para evitar ser pego desprevenido diante de uma possibilidade de embate. “Os medos reais nos protegem dos perigos e das situações adversas que vão colocar a nossa vida em risco”, destaca Santos. O que difere é que, no medo recreativo, nós buscamos por aquela sensação pelos mais variados motivos.
A letra do medo
O roteirista, dramaturgo e autor de novelas Mario Viana aponta mais uma explicação para esse prazer. “As pessoas gostam de ver alguém sentindo e enfrentando o medo. E a função do herói ou protagonista é sempre enfrentar isso”, afirma. Ele cita a peça O auto da compadecida, escrita por Ariano Suassuna e com adaptações para o cinema e a televisão, como um exemplo de produção que aborda bem o tema.
“O Chicó é o medroso por excelência. O João Grilo (protagonista) também sente medo, mas o enfrenta. Ele enfrentou até o diabo”, diz Viana, autor-colaborador de produções da Rede Globo, como Totalmente demais e Vai na fé. Ele concorda com o argumento de que o “medo seguro” é o que encanta e movimenta as pessoas. “No fim do livro ou filme, a vida volta ao normal, em segurança. No trem-fantasma, a pessoa sabe que está em um ambiente seguro. O medo viria apenas se um parafuso do boneco soltasse e batesse o braço nela. Aí, sim, ela iria se borrar toda”, diz, brincando, Viana.
“A pessoa sabe que o que causou o medo vai passar, despertando nela um sentimento de controle.”
Marcelo Santos, psicólogo
No mercado editorial, o medo vende bem e as editoras têm investido no terror. Na Ediouro, já foram publicados 24 títulos de diversos autores, entre eles o estadunidense Edgar Allan Poe, uma das maiores referências do gênero. “Esse é um gênero que faz bastante sucesso entre os leitores, já que o medo gera uma adrenalina no nosso corpo. Então, a gente acaba sentindo um prazer ao ler os livros e assistir aos filmes de terror e horror”, comenta Ana Carla Sousa, editora do Grupo Ediouro.
Na Globo Livros, o lançamento de Predestinados, de Amanda Orlando, marca a entrada do selo no terror. O livro teve bom desempenho na Bienal do Livro do Rio de Janeiro e está entre os cinco títulos mais vendidos da categoria não-ficção da editora. “O ser humano é atraído por aquilo que o faz sentir medo. Acredito que a psicologia consiga explicar esse fenômeno muito melhor do que qualquer romancista, porém a atração pelo desconhecido, pelo mórbido, pelo sórdido, faz parte de quem somos desde o começo dos tempos”, avalia Amanda.
A escritora, no entanto, não crê que trens-fantasmas ou fantasias de Halloween assustem alguém de fato. “Ambos os elementos já fazem parte da nossa cultura e são uma mera brincadeira. O medo, ao menos de acordo com o que escrevo, reside em um lugar muito mais profundo e sombrio da nossa mente.”