Realeza
Cronos está há quase duas horas tentando achar posição. Ocupa a terceira cadeira da sala de espera, o Samaritano lotado, só que em PS não se chama por ordem de cadeira. Pensou que não se fazia necessário dizer na triagem que acabou de tomar duas cartelas de Vonau. Emetofobia. Talvez tivesse sido importante também mencionar que o Vonau fez companhia a 19 comprimidos de Luftal e ele tem horror a rima. À enfermeira, respondeu seco, do alto de seu orgulho de rei: estou bem, só um pouco enjoado, e tem o gás, é como se eu fosse inteiro feito de gás. Daqui a 15 minutos, Cronos vai desmaiar tamanha a dor abdominal da superdosagem. Da dor abdominal para a cegueira repentina, a pressão baixa, os vômitos parideiros. Teria dado tempo de evitar a cena, teria sido até fácil. Mas o tempo, o tempo é outro pra quem está com a pulseirinha verde do PS.
Régua
Se você acreditar muito no que diz, acaba que todo mundo acredita junto. Você tem 1,73 m, 1,71 m quando cansada. Chama a comissária de bordo e fala com todo o otimismo do mundo que, caso sobre uma poltrona lá na frente, ou mesmo na saída de emergência, adoraria mudar de lugar. Minhas pernas são muito compridas, você acrescenta. O vizinho da 37B franze a testa, ele com pelo menos 15 cm de perna a mais do que você, ele com pés enormes, agora que você se deu conta, ele com os joelhos quase furando a 36B, ele que não topou 69,90 reais pela porta de emergência, nem 59,90 pela fileira 1. Você não tem pressa, mas é o tempo de abrir a sua bolsa, alcançar o lápis, a borracha e o sudoku, preencher dois números – um 3 e um 7, coincidentemente –, e a comissária vem te buscar. Você olha pra ela, agradece, olha pra ele, deseja bom voo e leva as suas pernas compridas pra qualquer lugar que você quiser.
Reprovada
Hoje, lágrima tinha prova prática. Passou a noite decorando. Choro de raiva dói primeiro na garganta, o de cansaço, atrás da cabeça, de tristeza é feito o de comoção, dói no fundo do olho, o de medo, dói no pescoço, o de alegria é pegadinha, às vezes dói no peito, às vezes na boca. Quando viu que o que caiu foi o de premonição, o único de que não se lembrava, sentiu doer tudo que foi canto.
Remendo
Se alguém acreditar muito no que te diz, acaba que você acredita junto. Você tem voo hoje à noite. É praia. Achou horário pra pé e mão no salão do aeroporto, tipo um milagre. Você com unhas compridas, quase furando o tênis 36 com seu dedão 37. Está de tênis, agora que se deu conta. Não vai dar tempo de secar. A manicure diz com todo o otimismo do mundo que o chinelinho de EVA está disponível. Mas eles sempre se desfazem, você acrescenta. Ela franze a testa. Não os nossos, amor, promete. Você pinta de vermelho. Sai com pés enormes, no minichinelinho, encostando dois dedos de calcanhar no granito xadrez de Congonhas. É o tempo de dar uns passinhos – 3 pra um lado e 7 pro outro, coincidentemente. Rasgam. Você passa descalça com a sola do pé preta e os tênis na mão pelo portão de embarque. A moça do raio X te olha e agradece a prontidão, você olha pra ela, deseja bom voo, calça os tênis e leva as suas unhas já manchadas para todas as fotos da viagem.
Réquiem
O motoqueiro atendeu o celular equilibrado no capacete com uma destreza danada de impressionante. Não dava pra ver, mas entortava a boca desconfiado. Na hora de desligar, exagerou a velocidade do movimento e quase deixa cair o aparelho, quase. Num instante, a boca riu de alívio. Só um pouquinho. Só até ele bater no caminhão de gás, que freou meio do nada. Tava exatamente em frente ao Samaritano, pena que ele não tem plano de saúde.
Reflexo
Na hora da turbulência, 37B abriu os dois braços. O da esquerda alcançou a mão magrinha e pintado de mancha senil de 37C. Se entrelaçaram apertadas. O da direita ficou lá estirado no banco vazio. Quando o avião estabilizou – e levou menos de uma volta do ponteiro de segundos do Chronos do comandante –, 37B e 37C se pediram desculpas. Não precisava. 37B levou a outra mão no pescoço, enxugou uma lágrima e recolheu o braço. 37C fez o mesmo, mas só o braço da esquerda. Lá na frente da aeronave, 1A também sentiu saudades.
Réveillon
Faltavam 69,90 reais pra Juliana bater a meta. Era 31 de dezembro e Hera, filha do dono do salão, só liberou quem já tinha batido. Ou serviço ou produto, tem que vender, dizia quase gritando. A mão custava 59,90 e o pé 69,90. Entrou uma cliente meio perdida bem na hora que ela tentava convencer o namorado de que ainda estava mesmo no trabalho. Tô chegando, na esquina da Conselheiro Brotero com a Veiga Filho, na frente do Samaritano já, é bom tu tá aí mesmo. Desligou o telefone e correu pra porta. Gabriele já foi dizendo que o pé era dela. Juliana viu de longe que a mulher estava de tênis. Olhou bem no olho da desavisada como quem vai lhe salvar a vida e ofereceu o chinelinho de EVA. Esse não rasga, amor, são só 10 reais. A moça comprou. Baixou a porta de metal do salão quase às 11 horas da noite. Doía a garganta, atrás da cabeça, o fundo do olho, o pescoço, o peito e a boca.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.