Cobrir semanas de moda envolve bem mais do que analisar desfiles, coleções, identificar tendências, marcas ou estilistas em ascensão. O plural lá no começo da frase não é apenas porque as fashion weeks são várias, mas por ser um trabalho contínuo de documentação, observação, apuração e contextualização nada limitados ao mercado.
Por exemplo, não é de hoje que se fala de roupa com memória – o que pode significar muitas coisas: uma peça que funciona como um manto de proteção e aconchego; uma carregada de valor sentimental, seja por associação a um evento importante, seja por lembrar uma pessoa querida; aquela vinda de gerações anteriores ou que nos conecte a determinada comunidade; ou moldada e marcada pelo corpo e hábitos de seu dono.
“Você pode recontar sua vida e lembrá-la pela forma, pelo peso, pela cor, pelo cheiro das roupas do seu armário”, disse Louise Bourgeois. Morta em 31 de maio de 2010, a artista usou tecidos como metáforas para os processos psicoanalíticos atrelados à sua obra e passou a incorporar itens do próprio vestuário em suas criações.
Outra interpretação passa pela atual obsessão nostálgica. É a roupa que remete a períodos passados, vividos ou não. Vale um item que estimule uma recordação pessoal, tipo algo que você usou durante uma fase marcante da vida. Vale um visual coletivo, como um look inspirado no estilo dos anos 1990 ou 2000.
Existe ainda um significado mais atrelado às qualidades humanas e funções socioculturais para as memórias imbuídas nas roupas. Um significado que interessa e inspira alguns dos estilistas mais sensíveis e influentes do momento faz uma seis temporadas.
Cores, padronagens, estilos, formas e tecidos servem de demarcadores sociais há milhares de anos. Se você consegue identificar uma gótica, uma clubber, uma evangélica, uma executiva, uma funkeira, uma emo etc., é por isso. Como escreveu Nietzsche, “o homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si”.
O pensador alemão gastou umas boas palavras sobre o papel da roupa e, por consequência, da moda na nossa construção identitária e comunitária: “Não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto, o tomar consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos”.
Trata-se de um processo fundamental às relações e organizações humanas. Ante supostas ameaças de substituição e obsolescência por novas tecnologias e inteligências artificiais, faz sentido o foco em características além do alcance das máquinas.
Para a apresentação da coleção de verão 2024 de alta-costura da Dior, a diretora de criação Maria Grazia Chiuri convidou Isabella Ducrot para decorar as paredes da sala de desfile com ilustrações imensas de roupas planificadas, conectadas umas às outras por um fio preto. O trabalho da artista e escritora italiana propõe uma abordagem humana sobre os tecidos (ela é uma grande colecionadora deles), tanto na fabricação quanto nas implicações nas vidas e nos corpos de quem produz e veste.
Na trilha sonora, o poema “To weave is human” (Tecer é humano), de Patrizia Cavalli, resumia o escopo de sua obra: “Sem a trama ele está sozinho no palco/ em fortes linhas paralelas – entediado até a morte./ É por isso que todo urdume fica louco/ querendo conhecer a trama o mais rápido possível. Todo tecido resulta, assim,/ desse abraço forçado, um grande projeto/ que apenas as mentes humanas estão destinadas a compreender/ e executar”.
Criadores menos dependentes das materialidades (porém não menos preocupados nem atenciosos), abordam a memória por meio das emoções. Jun Takahashi, diretor criativo da Undercover, dedicou seu verão 2024 aos entes queridos que ele perdeu nos últimos tempos. Na estação anterior, a de inverno 2023, o luto também foi um tema central.
No desfile, a ideia era falar sobre memória. Sobre quase todos os looks desfilados, havia um véu de organza. O tecido deixava transparecer a alfaiataria rebelde do estilista, as jaquetas varsity meio desconstruídas, o shortinho curto (olha ele aí de novo), o moletom esportivo. Mas não somente.
Pequenos detalhes, como giletes, cartas de baralho, aranhas de plástico, fitas de crepe, asas, flores, sem contar nas partes dos corpos das modelos, até as mãos, apareceram debaixo dessa camada, que cobria tudo. Os elementos visíveis, como que num raio x, não foram escolhidos por acaso. Eles eram elementos de histórias pessoais dos personagens que inspiram a coleção.
Miuccia Prada é obcecada por história e pela ação das memórias na trama do tecido social ao longo do tempo. Para o verão 2022, a Prada fez dois desfiles simultâneos, em Milão e em Xangai. Em ambas locações, as imagens transmitidas digitalmente tinham um ar voyeurístico meio sinistro, meio sexy. “É sobre uma linguagem de sedução que sempre leva ao corpo. Usando essa ideia, essas referências de peças históricas, a coleção é uma investigação sobre o que elas significam”, explicou Raf Simons, codiretor de criação desde 2020.
No inverno 2022 masculino, os diretores criativos apresentaram uma espécie de estudo sobre as roupas de trabalho. A ideia era ilustrar como as vestimentas de determinada profissão funcionam como demarcador social.
No feminino, questionaram como as tradições servem de condutores culturais entre as gerações. “Tradição é sobre humanidade – conexões entre pessoas, transmissão de conhecimento. Uma história humana. Essas ideias nos interessaram – ver como e por que as coisas foram criadas de certas maneiras. Mas há apenas um rastro, uma memória”, escreveu a Sra. P.
Corta para a temporada de verão 2023. Miuccia e Raf exploraram o impacto da realidade humana sobre as roupas. Em outras palavras, como os hábitos marcam tecidos, definem silhuetas e delimitam seus usos.
Na emblemática coleção de alta-costura de verão 2024 da Maison Margiela, John Galliano construiu algumas peças com base em ações populares corriqueiras, como cobrir a cabeça com a jaqueta para se proteger da chuva. Na passarela, o casaco vinha moldado para tal prática, como se congelado num frame fotográfico.
De volta à Prada, na estação seguinte (inverno 2023), a palavra arquétipo serviu de base para estudos sobre como itens do vestuário são identificadores ou demarcadores sociais.
Na mais recente semana de moda de Milão, Miuccia fez questão de ressaltar que a nova coleção “não é sobre nostalgia, é sobre entendimento”. Parte dela é dedicada ao registro evolucionário de silhuetas, formas, tecidos e peças do passado que desenharam a base de suas versões contemporâneas.
Em coletiva de imprensa, os estilistas afirmaram que o inverno 2024 é composto de fragmentos da história e de belezas. É uma espécie de estudo sobre como as roupas – e tudo no mundo – são formadas por memórias, emoções e fatos passados. Na passarela, a ideia é trabalhada em peças que combinam, acumulam, misturam e alteram umas às outras. No release, o duo fala que “a linguagem das formas pode ser alterada através da materialização, da refabricação para alterar a percepção”.
A abordagem, no entanto, não foi racional. “É uma reação emocional aos ideais de beleza que ainda parecem ressoar.” Ou seja, foi sobre memórias, nunca precisas, sempre sentimentais. Muitas vezes sem linearidade alguma, todas fragmentadas. Como alguns looks vistos na passarela.
Miuccia mencionou ainda o respeito e o aprendizado provenientes do passado e essenciais ao entendimento do presente e ao planejamento do futuro. Parece clichê, só que não. Ao enfatizar a importância emocional dos registros e lembranças pessoais e coletivos, a estilista oferece uma resposta – ou pelo menos uma alternativa – a uma moda comoditizada, homogênea e, sobretudo, a uma forma de consumir, se vestir, se expressar e viver menos automatizada, mais autência e inteligente.