Cheia de asa. Mas voar que é bom, nada

De veterana para bicho, um serviço público direto da Linha Amarela do metrô.

A menina gravava um vídeo quando escutou o WhatsApp chegando. Se desconcentrou. Desmontou o sorriso e a coluna. Leu o que parecia ser um texto meio grande pra mensagem escrita. O celular apoiado numa perna, a outra em cima do banco, olhava pra tela enquanto arrancava umas linhazinhas do desfiado da calça. Ela enrolava a linha no dedo, dava uma volta, outra, arrematava um nó e colocava o fio no bolso. Não queria sujar o metrô, talvez. Respondeu com voz fina no áudio.

– Mãe, isso é o “melhores amigos” da conta privada. Mas por que tu fica pegando o celular de Mateus pra ver minhas coisas? É brincadeira, mãe, juro. Não tem nada demais. 

E não tinha mesmo, pelo menos até ali.


Zebra

Vai restringir Mateus. Tem que restringir. Chega outra mensagem, ela desconcentra de novo, sente a barriga esfriar, enrola o cabelo do mesmo jeitinho que enrolou a linha, uma volta, outra, o nó, põe tudo pra trás, solta, devolve pra frente, divide um pouco pra cada lado, se apruma na cadeira, ri pra ninguém e retoma a gravação. 

– Então gente, agora sim. Esse é o seu, o meu, o nosso: ajude os bichos do médio a não pegar roubada. Tudo testado e desaprovado por essa que vos fala. Amanhã faço o dos aprovados, mil pessoas pedindo já. Bora começar pelo Jorginho Galego? Pois então, propaganda enganosíssima. Tá bom, tá bom, é do primeiro ano, eu devia ter adivinhado. Mas tem cara de quem sabe o que faz, não tem? Sabe nada. Vai por mim, amiga: só não!

Avestruz

Mateus é irmão gêmeo de Carol. Em tudo diferente dela. Nem conta privada no Instagram tem. Tava nos “melhores amigos” meio que não sabia nem por quê. O pescoço e as pernas compridas, que nela caíam tão bem, em Mateus formam uma figura desagradável de olhar. Como se fosse um boneco de palito, mas o círculo maior, em vez de ser na cabeça, é na barriga. Uma cabeça bem miudinha, quase da largura do pescoço. A mãe não disfarça. Prefere Mateus. Dá trabalho nenhum, o dia todinho enfiado no computador desde que se mudaram pra São Paulo. “Já essa menina não. Tá aí no meio da rua, falando absurdo. Já não deixo sair de noite. Agora é que vai ser da escola pra casa mesmo.” 

Mateus saiu primeiro, passou facinho num parto que não dava nem pra chamar de normal de tão rápido que foi. Carol não saía de jeito nenhum, tiveram que abrir a barriga. Na cabeça miúda de Mateus cabe um tanto de coisa. E é bem por causa dessas coisas que daqui a três anos, exatinho quando os dois fizerem 18, ele vai parar no Presidente Venceslau. O mesmo endereço do pai, metido no jogo do bicho até a última gota de sangue. De lá, não sai por nada, feito Carol bebê, só que dessa vez nem abrindo barriga.


Águia

A mãe liga, ela faz que não vê. Põe o telefone no bolso. Desce do vagão. Tira do bolso, segue filmando e batendo cabelo pra irritação do povo com horário, que tenta passar da Linha Verde pra Amarela. 

– Veja, Arthur Rosa é um caso assim de se comprar na planta. Deixei disponível pra quem quiser. É sabido, é danado, é todo lindo. Pero tem a mãe, né? A mãe não deixa nem o cara chegar em casa depois da meia-noite. Tu entende? Seria o caso de uma aposta no futuro mesmo. Pra quando ele entrar na faculdade, ou quando a mãe morrer, sei lá. Agora eu te pergunto: você tem esse tempo pra perder, amor? Eu não tenho. 

Burro

– Aí tem o Daniel, né?

Borboleta 

– Guga seria assim o Arthur Rosa que não deu certo. Terminou o terceiro no ano passado, tá no cursinho agora e segue chegando e saindo das festas no banco de carona do pai. Naquelas que vai, né? Porque na cervejada deste ano ele faltou – e gente, assim, foi a festa, a festa. Me disseram que no fundamental ficava todo mundo de olho no Guga, “tá num casulinho, quando sair”. Saiu, ó. Pra quê? Tá aí murcho, cheio de asa, mas voar que é bom, nada.

 

Cachorro

– Vamos ter que falar do João Antônio. Eu sei que vocês gostam, mas é um grande, grande não.

João Antônio merecia uns quatro tracinhos dos stories, no mínimo. Problema é que, com a música do metrô anunciando a próxima estação, entra um grupinho do Objetivo: cabra, carneiro, camelo, cobra e coelho. Todo mundo vê Carol, Carol vê todo mundo. Os outros Cs se fecham num círculo, olhos disciplinados passeando só entre eles. Os dela olham pra baixo, as mãos alcançam o desfiado de novo. E o cabelo. E o desfiado. E o bolso. E o cabelo. Ela levanta, desce na Higienópolis/Mackenzie. Anda pela plataforma como quem chegou ao destino, espera a música e volta pro mesmo lugar. Mas calcula mal o tempo, dá pra eles verem e dá pra ela ver a risada do grupo que percebe o movimento: “Ué, saiu só pra mudar de trem?”  

Elefante 

Desce junto um menino com tapete de ioga na bolsa de pano. Ela não reconhece, ele sim. Se fosse fazer uma lista de aprovadas do Objetivo, ou de recomendadas, colocaria Carol no topo. Mas Ameya nunca faria uma lista. Tenta contato visual, mas pega a menina vulnerável, com o flagra de agorinha. Ela tinha planos de entrar no próximo trem, mas acaba decidindo sair da estação. Vai andar até a República. Ameya acompanhará por três quadras, mas não por perseguição, por coincidência de caminho mesmo. Os dois ainda vão lembrar desse dia muitas vezes. Ele, na chave do destino. Ela, naquela das lembranças contadas que a gente empurra pra dentro e acaba acreditando que lembra também. 

Galo

No vagão que vai com os Cs, vai também um menino com camiseta de goleiro que entende a cena inteira. Ele se dói por Carol. Mas guarda a defesa pro jogo de já já.

Gato

Se desse pra tirar o celular do bolso na Consolação, Carol diria três ou quatro mentiras sobre Pedro Barros. A real é que o único defeito de Pedro é não ter se interessado por ela. Pelo menos é assim que o olhinho de 15 anos enxerga, dali da cadeira perto da porta, nem cheirando a lousa como os famintos do Enem, nem no grupinho lá atrás – o de Pedro –, onde todo mundo queria estar, menos os famintos do Enem. Ela, meio da metade pra frente, meio no canto da saída, a zona possível para os de poucos amigos. 


Jacaré

Na Consolação não pode, mas na Major Sertório até dá. Ela volta pra contar da língua áspera e da boca cheia de dentes de Chico. 

– Minha gente, chega a ser perigoso beijar aquele lá. Juro por Deus – e ria pra trás. – Desculpa, Deus, tu não tem nada a ver com isso. Mas quem mandou fazer um bicho feio desses e ainda soltar pra minha escola?

Leão, Macaco, Porco, Pavão

Junta Luan, Marcos, JP e Chris num story só. 

– Metido, Didi Mocó, sujo e vaidoso. Pronto, é isso.

Meio culpa da pressa, meio do medo de assalto, meio da escassez de inspiração. Se bem que pra Marcos ela tinha até escrito um pouquinho na primeira versão do roteiro. Uma fala roubada que ouviu no elevador do prédio. O pai mal-humorado vira pro filho engraçadinho e solta um: “Qual foi? Lanchou palhacitos hoje, é?” Ela tinha achado aquilo tão São Paulo. E aí que, quando lembra que tinha esquecido, quando se dá conta de que falou em Didi Mocó, referência da mãe, ninguém vai saber quem é Didi Mocó, aí lembra da mãe, e lembra que tinha esquecido de tirar Mateus dos “melhores amigos”. E vai se afogando naquele tanto de lembrança que ela esqueceu de esquecer, a asinha ficando murcha feito a de Guga. O peru, o touro, o tigre, o urso e o veado, como é que fala mal desse povo que ela nem conhece, como é que desaprova? Ela quer eles todos. Qualquer um. 

Não tinha falado com ninguém do colégio desde o começo do ano. Não tinha beijado ninguém na vida, mesmo antes do colégio novo. Nos “melhores amigos”, só as meninas de João Pessoa pra quem contava as histórias mais mirabolantes de uma São Paulo que nunca existiu. Aquilo vai dando uma gastura, um medo de chegar julho e as amigas virem passar as férias de verdade, um medo de chegar em casa, de ver a mãe, de não ver o pai, de contar nos dedos de uma mão as visualizações dos stories.

Vaca

Julho demora, mas a mãe vai rapidinho buscar Carol na porta. Ao contrário de Mateus e dos silenciosos 54 colegas de sala do Objetivo que nunca lhe dirigiram palavra, dona Odete tem bastante o que dizer.