Como os nossos avôs

Cuidado, meu bem, há perigo na esquina: com instituições paradas no tempo e um discurso reacionário amplificado pela internet, a geração Z vê surgir homens mais conservadores do que as gerações anteriores.  

Este é um texto que traz mais perguntas do que respostas, e algumas portas de entrada para refletir sobre um dado que não é absoluto, mas preocupante: parte dos homens jovens de 20 e tantos anos, nascidos a partir de meados de 1990, está mais conservadora e sexista. A porcentagem e os setores variam, mas pesquisas em todo o mundo, incluindo o Brasil, confirmam, com surpresa, que a geração Z, a mesma que coleciona dados progressistas (como os 26%* da população estadunidense que se declaram não heterossexual), tem uma incubadora de homens de valores perigosamente retrógrados. Nos Estados Unidos dos jovens queer, a parcela masculina entre 18 e 34 anos é 30% mais conservadora do que a feminina, segundo pesquisa divulgada em fevereiro pelo instituto Gallup. É uma diferença histórica – e as más-novas não terminam aí: em menos de uma década, os homens da geração Z nesse país retrocederam e passaram a ser mais conservadores do que os de 55 a 65 anos. Praticamente como se tivessem se transformado no amigo mais antiquado de seus próprios avôs. 

“A gente imagina que, à medida que as tecnologias avançam e o conhecimento é mais disseminado, determinados costumes e formas de pensar sejam minados. Infelizmente não: parece que os homens da geração Z se comportam como os de décadas atrás”, diz Bruna Camilo, doutora em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). A diferença parece estar apenas na ferramenta utilizada para praticar os comportamentos machistas. “Recentemente, por exemplo, meninos fizeram uma trend no TikTok de como ser uma mulher com ‘m’ minúsculo”, ela relata, falando agora do Brasil. Pesquisadora de misoginia e masculinismo (a ideologia que defende a soberania do homem e a dominação da mulher por meio da violência), Bruna observa como esse fenômeno tem repercussões que transpassam os fóruns privados, os blogs e os canais de YouTube “red pill” – como no filme Matrix, de onde vem esse termo, os masculinistas acreditam revelar aos seus seguidores o “mundo real”, no caso, um em que os homens são oprimidos pelas mulheres. “Há um impacto muito grande (do que é divulgado nas redes) no comportamento dos meninos e em como eles vão se relacionar com as meninas.” Bruna cita, por exemplo, o relato de uma professora do ensino fundamental que percebe meninas assustadas com o tratamento dispensado a elas por garotos de 12 a 14 anos.

Enquanto denúncias de misoginia na internet cresceram quase 30 vezes em cinco anos no Brasil (sem o recorte específico de idade), na Irlanda, um estudo feito pela Dublin City University apontou que plataformas como TikTok e YouTube têm sugerido conteúdo tóxico misógino para homens jovens sem que eles tenham procurado nada do gênero. Segundo o estudo, bastam de 23 a 26 minutos assistindo a qualquer vídeo nas redes para que a enxurrada sexista comece a ser oferecida. Outro dado alarmante vem da França. “Os vídeos pornográficos transmitem conteúdo misógino de uma violência rara, que dois terços dos homens com idade entre 25 e 34 anos dizem imitar em seus relacionamentos sexuais”, afirmou Sylvie Pierre-Brossolette, presidente do Conselho de Igualdade entre Homens e Mulheres, no relatório anual de 2024 sobre a situação atual do sexismo na França, publicado pelo governo francês em janeiro. 

Berço da segunda onda do feminismo, primeiro país do mundo a incluir na Constituição, em março deste ano, o direito de a mulher interromper uma gestação indesejada, a França anda com uma juventude masculina em retrocesso de valores: 28% das pessoas do sexo masculino de 25 a 34 anos acham que “os homens são mais adequados para serem chefes”. A porcentagem é bem maior do que em outras faixas etárias (entre homens de 50 e 64 anos, por exemplo, ela foi de 9%). Ainda, 59% dos jovens de 25 a 34 anos acham que “não é mais possível seduzir uma garota sem ser visto como sexista”. Para completar, 52% acham que “as pessoas implicam com os homens”.

Se os homens parecem dar marcha à ré no bonde da história da evolução das relações de gênero (pelo menos, o masculino e o feminino), as mulheres, em todo o mundo, nunca foram tão progressistas. É o que aponta uma pesquisa divulgada em março pela consultoria Glocalities, feita com 300 mil pessoas, em 20 países, entre 2014 e 2023. “O resultado revela uma divisão crescente entre homens e mulheres jovens. As mulheres fortaleceram significativamente sua adoção de valores liberais e antipatriarcais na última década, enquanto os homens jovens estão cada vez mais atrasados nessa tendência”, publicou o estudo.  

Em uma escala em que 1 representa o mais conservador e 5 o mais liberal, as mulheres de 18 a 24 anos em todo o mundo passaram de 3,55 em 2014 para 3,78 em 2023 – a taxa mais alta para qualquer faixa etária. Os homens da mesma idade passaram de 3,29 para 3,36. E nos EUA os homens de 18 a 34 anos se tornaram menos liberais, caindo de 3,48 para 3,46, reforçando os dados da pesquisa do instituto Gallup no caso dos jovens nos Estados Unidos. 

Por que, afinal, todo esse retrocesso masculino? Depois dos resultados chocantes do ano passado, que revelavam mais ou menos o mesmo comportamento masculino da edição atual, o relatório sobre o sexismo na França de 2024 resolveu ir mais a fundo e atacar o que os especialistas do estudo chamaram de “as três raízes” do problema. “O sexismo começa em casa, continua na escola e explode online”, resumiu Sylvie. 

Trocando em miúdos, o estudo indica que a educação dada pela família ainda faz diferença de gênero, mesmo que inconscientemente (a pesquisa apontou a percepção de diferenciação de tratamento de meninas com irmãos do sexo masculino, ainda que os pais jurassem de pé junto que educavam ambos da mesma forma). A escola não se atualizou nem em relação à igualdade de gênero nem aos desafios que o mundo virtual traz para a sala de aula. As redes sociais, por sua vez, continuam sem regulamentação, não só divulgando como oferecendo conteúdos tóxicos a adolescentes e jovens, além de criar uma bolha de informações de opinião única. Bruna Camilo concorda e complementa: “Hoje, percebo que o nicho masculino que ganha mais destaque na machosfera (a bolha de conteúdo machista na internet) é o de 14 a 20 anos, com foco nos menores de idade. Por serem crianças, é preciso que os tutores, pais e responsáveis saibam o que eles estão vendo nas redes. O que está acontecendo dentro de casa para que esses meninos não estejam sendo enxergados? E na escola, para estarem sendo radicalizados? É preciso haver uma combinação de políticas públicas, uma boa relação dentro de casa e uma conexão com a comunidade escolar”. Um dado resume a gravidade do tema e de suas consequências: entre 2002 e 2023, ocorreram 36 atentados contra escolas no Brasil. Todos foram cometidos por meninos. Já as meninas eram maioria entre as vítimas fatais. 

Pesquisadora visitante da Universidade de Stanford, especializada em divergências de gênero, com um grande estudo publicado sobre o assunto, a socióloga Alice Evans acredita que outra maneira de evitar o confinamento dos homens dentro de universos paralelos virtuais, onde o mantra da culpa feminina por todos os males masculinos soa uníssono, é promover a convivência e a troca entre os gêneros durante a infância e adolescência. Não apenas por meio de escolas e espaços públicos, o que já existe, mas com o incentivo à interação e à amizade entre meninos e meninas em todas as fases da vida. Algumas escolas, lembra ela, já estão proibindo os celulares, o que pode ajudar. Um bom momento para dar fim, de vez, aos famigerados clubes do Bolinha e da Luluzinha. Que, mesmo nos tempos dos nossos avós, já eram um conceito antipático e excludente, não? 

Carolina Vasone é jornalista e mestranda em estudos de gênero na Universidade Lumière Lyon 2, na França

*Dado da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da SaferNet, organização de defesa e promoção dos direitos humanos na internet.