Nos últimos anos, as redes sociais ajudaram a popularizar conhecimentos sobre o machismo. O debate sobre a desconstrução de determinado tipo de masculinidade agressiva (contra as mulheres e também contra os próprios homens) alcançou novas proporções e incluiu muita gente que se encontrava antes às margens do saber. Porém esse mesmo espaço virtual estimula discursos de ódio, o que evidencia que o cenário está longe de ser apenas progressista.
De acordo com a ONG Safernet, em 2022, 65% dos casos de cyberbullying ocorreram com mulheres, que receberam 67% das mensagens de conteúdo íntimo e sexual sem consentimento. Segundo o projeto MonitorA, da AzMina e do Internetlab, os termos “louca, doida e maluca” foram os principais usados contra as candidatas do executivo e legislativo na eleição de 2022. Já uma pesquisa do Repórteres Sem Fronteiras e do Instituto para Tecnologia & Sociedade (ITS Rio) evidenciou que jornalistas mulheres foram 13 vezes mais mencionadas do que os colegas homens em tuítes com hashtags contra a imprensa.
“Me parece que grupos baseados no ódio e na exclusão estão em vantagem na visibilidade e na cooptação de novos membros na internet.”
André Villela
Contudo, nesse mesmo local, o movimento feminista levanta cada vez mais bandeiras, conhecidas por gerações anteriores, como a violência de gênero, a cultura patriarcal e o fortalecimento da interseccionalidade (gênero, etnia, classe social etc.). Como essas pautas são disseminadas nas redes, não é surpreendente que a reação agressiva a isso ‒ os ataques machistas ‒ aconteça no mesmo espaço.
“Se em um momento anterior havia um emissor que detinha a informação, agora nós temos um processo multidirecional. Todo mundo fala com todo mundo, o que traz aspectos positivos e negativos”, explica Ellen Feitosa, mestre e doutoranda em psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “O discurso de ódio passa por ideias que deslegitimam e subjugam a vivência do outro. No Brasil, ele tem um viés colonial, racista e patriarcal. Nossa sociedade foi construída pelo discurso de ódio, em que homens europeus falavam de outros – incluindo a mulher – como inferiores.”
As redes são um espaço cibernético no qual a cultura, ou seja, um conjunto de valores e práticas disseminadas socialmente, está presente. E é difícil bater o martelo se as plataformas contribuem com o avanço do machismo ou ajudam a desconstruí-lo, já que elas fazem parte da própria sociedade, não existem fora dela.
Um pouco dos dois
Novas formas de disseminação foram criadas, isso é fato. “A diluição das barreiras geográficas, a possibilidade de criação de contas fake e o anonimato são alguns exemplos de produção de ódio. Esses artifícios permitem uma capilaridade e uma amplificação das falas machistas sem precedentes”, afirma André Villela de S. Lima-Santos, psicólogo membro do Lepps – USP (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde) .
“Nossa sociedade foi construída pelo discurso de ódio, em que homens europeus falavam de outros – incluindo a mulher – como inferiores.”
Ellen Feitosa
Logo elas podem tanto facilitar quanto prejudicar a disseminação do machismo. “Entretanto, há uma hegemonia de discurso. Às vezes, nas nossas bolhas, temos a impressão de que todas as pessoas são progressistas. Mas é uma percepção com base nos algoritmos que consumimos e de onde estamos situados. O discurso machista é muito mais presente”, pontua a psicóloga doutoranda da UFBA.
“Me parece que grupos baseados no ódio e na exclusão estão em vantagem na visibilidade e na cooptação de novos membros na internet”, ressalta André Villela. “As estratégias de resistência têm de ser pensadas. Afinal, é muito mais fácil acusar, criar teorias da conspiração e vociferar gritos do que responder a isso, explicar os motivos de esse ódio ser infundado.”
No contexto digital, fala-se atualmente sobre possíveis medidas de regulamentação governamental das plataformas. “Pensemos em uma espécie de constituição para esses espaços. Não estamos falando de censura, mas de uma regulamentação do limiar entre a violência e a liberdade de expressão”, defende Ellen Feitosa.
Segundo a psicóloga, o algoritmo precisa ser revisto em relação ao banimento de divergências. “Antes do boom das redes, conseguíamos dialogar com mais diversidade de opiniões. Claro, buscamos coisas que nos trazem conforto, mas é importante encaixar a diversidade nisso para que as pessoas pensem com criticidade.” E assim consigam assumir uma posição a partir da diferença, e não do consumo cotidiano de informações iguais.
Onde há força, há resistência
As redes permitem a formação de diferentes nichos (bolhas) e os algoritmos adaptam os conteúdos ao interesse do usuário. Inclusive, podem sugerir novos assuntos. “É nessa lógica que pessoas, principalmente homens, são cooptados por movimentos como o ‘red pill’. E, como todo conteúdo extremo gera engajamento, a coisa está feita. Acredito que a maioria dos usuários já se deparou com algum conteúdo violento ou problemático sem que tivesse solicitado”, pontua o psicólogo da USP.
Red pill é um termo empregado para um movimento digital de homens que defendem uma ideia de “masculinidade dominante”. O conceito faz referência ao filme Matrix, no qual o personagem principal, Neo, tem a opção de tomar uma pílula azul ou vermelha. A primeira o manteria na ignorância e a vermelha lhe daria consciência. O termo foi apropriado por homens críticos à igualdade de gênero.
Entretanto, onde há força, há resistência, ressalta o psicólogo André Villela. “É nessa mesma hora que o conteúdo de matriz feminista pode chegar às pessoas. O avanço e a popularização dessa pauta são inegáveis e a reação a isso acaba crescendo também.”
Com otimismo, é possível afirmar que o aumento do machismo online é por causa do fortalecimento do feminismo. “Se esses homens estão tão incomodados, é porque se sentem ameaçados. E não podemos nos dar por satisfeitos enquanto inúmeros ataques são feitos às mulheres diariamente.”