O “vrá” de Wraase

Cris Wraase passou a maior parte da vida se maquiando escondido no quarto. Hoje ele é um dos maiores fenômenos digitais da beleza no Brasil.

“Eu nem sabia que podia sonhar com isso. Nunca foi uma possibilidade. A maquiagem era um segredo que eu precisava guardar comigo até o túmulo”, lembra Cris Wraase em entrevista à ELLE Brasil – pouco depois de pousar em São Paulo, vindo de Porto Alegre, onde mora. Em um café na capital paulista, o maquiador e influenciador digital ostenta seus fios vermelhos cortados num mullet cheio de atitude, que dá match perfeito com sua maquiagem impecavelmente bem executada – ele parece ter saído de um clipe da banda My Chemical Romance. Mas, para além do visual rockstar, Cris é gentil e seu carisma transborda. Não à toa, ele tem mais de 250 mil seguidores no Instagram e seus vídeos no TikTok somam mais de 5 milhões de curtidas.

Fenômeno nas redes sociais, o criador de conteúdo tem nomes como os do cantor estadunidense Adam Lambert e da baiana Ivete Sangalo entre seus fãs. Aos 23 anos, ele já assinou contratos com marcas do porte de MAC Cosmetics, Givenchy, Natura e outras gigantes globais do mercado de cosméticos. As muitas conquistas em contraponto à pouca idade geram suspeitas de quem conhece o seu passado: “Será que nasceu rico?”, “será que já era um insider do mundo da beleza?”, “será que é mais um privilegiado que sempre teve tudo o que quis?”. A resposta para todas essas perguntas é não.

“Sou um menino de interior, e não tinha acesso a nada disso. Nasci em Lajeado, uma cidade pequena e majoritariamente reacionária no Rio Grande do Sul. Nunca fiz uma viagem internacional. Cresci em ambientes bem conservadores e estudei em escola religiosa a vida inteira. Desde sempre, sofri pressões externas para não ser quem eu sou. Não existia um espaço confortável para eu me expressar, me assumir como homem gay ou me maquiar”, lembra. “Tive a oportunidade de estudar em escola particular, mas não tinha a mesma condição financeira dos meus amigos. Lembro dos meus colegas me perguntando: ‘E aí, Cris, vai fazer o que nos 15 anos? Viajar para a Disney ou fazer uma festa?’ E eu ficava assim, ‘eu conto ou vocês contam’? Porque não teria nem um nem outro.”

Às escondidas, nas horas “válidas”

“Sempre tive mãos nervosas”, diz depois de retocar o batom, esfumar a sombra e bater a colher na xícara do café continuamente. “Desenho desde muito novo. Na escola, para conseguir prestar atenção na aula, eu precisava ficar desenhando durante a explicação. É o jeito que tenho de me concentrar.” Aos 13 anos, os contornos começaram a sair do papel e ir para o rosto, com a ajuda das maquiagens que ele pegava escondido de sua irmã gêmea, Caroline. Tudo era feito em segredo – com a porta do quarto trancada e com um constante medo do flagra.

Foi também naquele período que Cris descobriu e ficou viciado no reality show estadunidense RuPaul’s drag race. “Foi ali que vi homens maquiados pela primeira vez. Aquilo me empolgava, mas não tinha com quem conversar. Toda a minha personalidade foi criada secretamente. Meu quarto foi o ambiente mais acolhedor que tive. Tinha a certeza de que jamais seria respeitado pelas pessoas se elas descobrissem o que eu fazia lá dentro”, lembra. 

A repressão acompanhou Cris durante todos os anos em que permaneceu em Lajeado. O cenário começou a mudar em 2020 – quando ele tomou coragem para publicar o seu primeiro vídeo na internet. “Morria de medo porque tinha certeza de que ninguém iria me respeitar depois daquilo.” Na época, ele cursava o bacharelado de design à distância, devido à pandemia da covid-19.

Durante as aulas, ele pintava o rosto. “Eram muitas horas de videoconferência, então conseguia aproveitar o tempo para criar maquiagens cheias de detalhes. Eu tirava fotos e mandava para as minhas amigas, que insistiam em que eu postasse as imagens”, conta. No nécessaire, ele tinha apenas um corretivo de 20 reais e uma paleta de sombras dessas bem baratinhas, com formulações um pouco duvidosas. Para chegar ao resultado ideal, apelava para misturinhas inteligentes. “Sou um grande incentivador de produtos multifuncionais exatamente por isso. Já fui a pessoa sem acessos e sei como é não ter condições de comprar uma série de coisas. Nos meus vídeos, sempre tento mostrar para as pessoas que elas podem fazer muito mesmo tendo pouco.”

Depois do primeiro post, ele nunca mais parou. Foi essa coragem que o levou a Porto Alegre – onde vive ao lado do namorado, Arthur. “Minha vida mudou completamente. Sou eu e ele. A gente vai se virando. É maravilhoso estar ao lado de alguém que me entende, que está alinhado comigo. Ele é meu fã número um. Nunca tive tanto incentivo. Entendi a importância de ter uma rede de apoio. Consegui encontrar uma família nas pessoas que estão à minha volta.”

Em 2022, veio a participação no Corrida das blogueiras, reality show brasileiro criado pelos youtubers e influenciadores digitais Eduardo Camargo e Filipe Oliveira, do canal Diva Depressão – um dos mais importantes e antigos perfis online que comunicam entretenimento e cultura pop voltados para a comunidade LGBTQIA+.

 

cris wrase inicio

 

A hora da virada

Com a visibilidade do programa, o mercado publicitário o notou – e o sucesso foi o passaporte para sua independência. “Obviamente, não virei a Bruna Marquezine”, diz, brincando. “Mas, quando eu saía na rua, as pessoas, às vezes, me reconheciam, principalmente em lugares onde a heteronormatividade passa longe”, fala, demonstrando certa incredulidade da realidade que vive atualmente. “Sempre fico chocado quando falo da minha carreira. Não tinha noção de que isso aconteceria. Só que aconteceu, sabe? Estou no processo de entender que eu posso viver essa vida, que posso me apropriar do que tenho e do que ainda sonho em ter. Nunca fui respeitado em nada como sou respeitado hoje pelo meu trabalho.” 

Apesar dos anos acompanhando RuPaul’s, as referências de maquiagem de Cris foram mudando e se afastando cada vez mais do rebocão e das centenas de camadas usadas pelas drags. Com o tempo, ele começou a enxergar a maquiagem como uma ferramenta para comunicar seu estado emocional. É como um cartão de visita imediato, que deixa claro como ele está se sentindo no dia. “A maquiagem está no rosto, que é a nossa maior forma de expressão. Todos os nossos sentimentos estão estampados nele. Não quero ficar mais bonito. Quero me comunicar”, garante. 

Sendo um homem no mercado de beleza, Cris é comumente associado ao termo “maquiagem masculina”, que ele renega intensamente. “Não gosto desse termo. Me vejo muito mais numa maquiagem que não tem gênero, que é para qualquer pessoa. A gente tem muitos homens comunicando beleza e usando maquiagem, mas é uma maquiagem muitas vezes ligada ao feminino, no sentido dos traços que as mulheres têm naturalmente mesmo. Os contornos do rosto, os cílios mais curvados, o delineador marcado que alonga os olhos. Sinto falta de uma beleza que não seja tão marcada pelo gênero e é isso que trago no meu trabalho.”

Ou seja, regras do passado não têm vez por aqui. E o mesmo vale para as produções que exigem horas para serem feitas. “Sei que muitas pessoas não têm tempo para ficar uma hora e meia se maquiando antes de pegar transporte público, por exemplo. Quero que elas vejam que a beleza pode ser prática, divertida e fácil”, comenta. O esforço tem funcionado. “Recebo mensagens de mulheres de 50, 60 anos, contando que finalmente estão conseguindo se divertir enquanto se maquiam, que conseguiram executar sozinhas algo que ensinei. Fico muito honrado porque vejo que existe utilidade naquilo que eu faço.”

“Hoje me sinto à vontade para sair maquiado, de unha pintada. Sei que para muitas pessoas isso já não é uma questão, mas, para quem está longe das bolhas desconstruídas da capital, as coisas são muito diferentes. Sempre falo sobre isso porque é uma questão importante na minha vida. Sei que sou uma pessoa branca, com muitos privilégios, mas passei a vida chamando a atenção de forma negativa em vários lugares que passei. Isso marca a gente. Luto diariamente para me desprender dessas amarras e para me comunicar com garotos que também passam por isso”, reforça.

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Encore

Cris terminou o colegial em 2018. Na época, ele sonhava em celebrar sua formatura maquiado, do jeito que gostava de se ver no espelho. Não foi possível realizar o desejo. Em 2022, depois de já estar em Porto Alegre, voltou para Lajeado com uma missão especial: maquiar Murilo, que estudava no mesmo colégio que ele, para a sua formatura. Murilo se tornou o primeiro menino a se formar maquiado na história da instituição. “Consegui fazer por ele algo que não foi possível para mim. Realizei um sonho que também era meu.”