Meta, motivação e sonho de qualquer atleta profissional, as Olimpíadas, quando se trata de mulheres, acabam por determinar muito mais do que os treinamentos ou a dieta nos anos que as antecedem. Isso significa repensar questões como a menstruação – para algumas, motivo de dor e incômodo, e para outras, uma energia extra a ser canalizada para as competições – e também a gravidez, que por vezes tem de esperar a aposentadoria profissional. “A nossa vida acaba funcionando meio que no ciclo olímpico”, diz a ex-nadadora Fabíola Molina, 49 anos, que competiu em Sydney (2000), Pequim (2008) e Londres (2012).
Nas três experiências, relembra, ela usou um implante que a fez parar de menstruar. “Embora eu não tivesse uma TPM muito forte ou indisposição, dor de cabeça, dei graças a Deus quando me adaptei ao implante e parei de menstruar. Atletas olímpicas fazem uma programação para não menstruar na competição principal, principalmente nas Olimpíadas. Mas não é uma coisa fácil de lidar. Você tem que ir ao especialista, vai fazendo todas as contas, mas o nosso corpo é uma caixinha de surpresas.”
Quando Fabíola menstruou pela primeira vez, aos 14 anos, estava no meio de uma competição de natação, longe de sua cidade natal, São José dos Campos (SP), e de sua família, na companhia apenas do treinador e de outras atletas. “Eu não sabia o que fazer. Mesmo entre as meninas, não tinha abertura. Hoje as mães as levam ao médico antes de elas terem a primeira menstruação, e elas já andam com o absorvente na mochila, até na competição. Mas naquela época não se falava sobre isso”, conta. “A gente andava com uma toalha escura porque, se na hora que saísse da piscina vazasse, conseguia disfarçar e limpar enquanto corria para o vestiário.”
A própria experiência foi um dos fatores para que a atleta criasse a linha de roupas de banho absorventes Nade Livre, pensadas para a menstruação, e que inclui maiôs específicos para atletas. O outro foram relatos de abandono do esporte por causa da menstruação que sua amiga, a ginecologista Tathiana Parmigiano (também responsável pela área no Comitê Olímpico Brasileiro), passou a levar. Os dados parecem evidenciar o dia a dia do consultório: uma pesquisa global da Puma com a Modibodi revelou que uma a cada duas adolescentes deixa de praticar esportes por dor, vergonha ou medo em razão da menstruação. “Tathi me trouxe essa angústia, digamos, das mães que chegavam ao consultório porque, quando as meninas começam a menstruar, querem parar de nadar. A gente queria fazer algo que realmente fosse seguro, que não vazasse. Pode ser difícil, especialmente para adolescentes, a mudança de humor, a dor, todo esse período menstrual. Adolescentes já estão numa fase em que têm muitas coisas acontecendo… Sentir essa segurança, ter o controle disso, não se desesperar também por causa disso, eu acho que traz liberdade, autonomia”, diz Fabíola.
“Eu tinha uma TPM que me deixava muito irritada. Mas tinha um lado bom porque era como cutucar a onça com vara curta.”
Hortência
Cinquenta anos atrás, quando começou a jogar basquete, conta Hortência, 64 anos, a menstruação também era uma questão nas partidas. “Não existia nem absorvente interno. A gente usava o tradicional, no meio do jogo encharcava, os caras botavam a toalha em volta e a gente trocava dentro da quadra mesmo.” Em um time com 12 jogadoras, diz, sempre havia no mínimo quatro menstruadas, o que também acabava por impactar o jogo. “Eu tinha uma TPM que me deixava muito irritada. Mas tinha um lado bom porque era como cutucar a onça com vara curta. Eu canalizava para o momento.” Hoje, ela celebra a tecnologia que permite a administração de hormônios para as mulheres que desejarem. “Quando passei a ser técnica, já havia outras possibilidades para as mulheres que quisessem. Nunca é uma imposição, mas as atletas já treinam tanto, se dedicam, é importante ter um recurso para minimizar o incômodo se for melhor para elas.”
Gravidez x ciclo olímpico
Em meio a um ciclo olímpico, muito mais do que evitar eventuais efeitos colaterais ruins da menstruação, a escolha do melhor método contraceptivo é imprescindível principalmente para evitar a gravidez, que por vezes tem de ficar para depois da aposentadoria do esporte. “Sempre foi uma meta primeiro encerrar a carreira e depois pensar em filhos. Casei com meu marido em novembro de 2006, na sequência havia os Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007, e no ano seguinte as Olimpíadas de 2008, em Pequim. Então a gente não estava pensando nisso. E, para um esporte individual, em que você depende muito do corpo, eu achava que, se eu parasse, por exemplo, em 2010, teria pouco tempo (entre uma eventual gestação e a preparação para os Jogos de Londres, em 2012), até porque eu já estaria com 35 anos. É mais difícil voltar numa alta performance, então esperar foi planejado”, diz Fabíola. Esta também havia sido a escolha de Hortência: engravidar após encerrar a carreira. A aposentadoria foi anunciada após o ouro no Campeonato Mundial de Basquete com a seleção brasileira na Austrália, em 1994. Assim, em fevereiro de 1996 nasceu João Victor.
Enquanto se adaptava ao novo momento, crescia a pressão para que ela voltasse às quadras para disputar os Jogos de Atlanta, no mesmo ano. “A ideia era jogar só as Olimpíadas e parar de novo. Resolvi aceitar o desafio.” Foram cerca de 90 dias para entrar em forma e recuperar a musculatura após dez meses parada. Dois meses após o parto, com o pequeno nos braços, Hortência estava embarcando para os treinamentos. “Tive que fazer escolhas, como deixar de amamentar porque eu não podia treinar com o peito cheio de leite. Foi muito duro para mim, mas ao mesmo tempo estava feliz por realizar o sonho de ser mãe”, recorda.
Como só atletas e delegações podem se hospedar na Vila Olímpica, João ficava com o pai e a babá e encontrava a mãe nos treinos. “Ele passou a ser o mascotinho. Era uma briga, pois todo mundo queria segurá-lo. Ele foi a alegria da equipe. Teve essa energia boa de uma criança em um grupo acostumado a treinar muito, a ficar trancado dentro de um quarto concentrado. E veio a medalha de prata, que eu não tinha na minha vida. Valeu a pena o sofrimento que eu passei.” De volta ao Brasil, e aposentada em definitivo, ela daria à luz Antônio no ano seguinte. Já João parece ter gostado da experiência da infância: em Paris, ele fará sua terceira participação em uma Olimpíada, como atleta do hipismo.
Conscientizar os homens, oferecer escolhas às mulheres
Atrapalhar o desempenho, deixar a atleta sensível demais… Em meio a mitos e tabus, a ginecologista Tathiana Parmigiano faz, desde 2011 no COB, o acompanhamento da saúde das atletas, o que vem mudando a forma como temas como menstruação são encarados. “Não é só o fato de o tema ser pouco falado. A gente vem há muito tempo tratando homens e mulheres de maneira igual. No momento em que entra uma ginecologista, o tema é visto de uma maneira científica, com fisiologia, abordando a anatomia. Não é só aquela besteira de falar que a menstruação é ruim, que a menstruação é o que faz a mulher não performar igual ao homem. Algumas coisas eram mal colocadas, muitas vezes, por falta de conhecimento, e não só no COB, mas no contexto geral”, diz a doutora Tathi, como é carinhosamente chamada na instituição.
Para além de discutir junto às atletas as melhores opções de acordo com o desejo de cada uma em assuntos como menstruação e gravidez, Tathiana acaba por aproximar o tema também dos homens. “Muitos treinadores são homens, então apresentamos o ciclo menstrual para eles, falamos das oscilações hormonais, que a menstruação não é ruim para todo mundo. Eles não precisam temer que as suas atletas estejam menstruadas. É muito importante que a gente não trabalhe só com as meninas. Não adianta você dar uma informação às meninas e elas não terem com quem trocar, continuarem em um ambiente que não absorve esse tipo de cuidado. A gente cada vez mais trabalha com toda a equipe multidisciplinar e com um foco muito importante nos treinadores.”
Hoje, diz Tathiana, uma das metas é desmistificar a ideia de que a menstruação é sempre um problema. Para muitas atletas, defende ela, pode ser um diferencial positivo. “Trabalhamos nos focando na individualidade de cada uma. Nem todas têm sintomas, nem todas se atrapalham. E apresentamos escolhas. A gente tem hoje maneiras seguras de permitir que as meninas escolham se querem menstruar e quando querem menstruar. Dessa maneira, eu acabo fazendo o planejamento do ciclo. Não existe uma única forma. As medalhas são conquistadas em qualquer fase”, diz. Questionada pelas atletas sobre a melhor fase do ciclo para competir, Tathiana já tem uma resposta na ponta da língua: “Você escolhe, e eu vou te ajudar a estar nela”.
É a ginecologista também quem atua junto às atletas no planejamento da gravidez em meio ao ciclo, não só olímpico, mas também biológico. “Principalmente a partir dos 35 anos, a gente tem a responsabilidade de conversar com a atleta sobre o desejo de engravidar. Porque os níveis de fertilidade podem diminuir numa velocidade maior. Ela tem que fazer escolhas que podem passar por congelar óvulos, postergar a Olimpíada ou adiar a gestação. E nunca é uma decisão fácil. Essa conversa geralmente começa antes para que, no momento ideal, a gente já tenha tudo bem firmado. Há atletas que esperam a aposentadoria, outras que fazem isso entre ciclos e um terceiro grupo que coloca uma data limite”, diz.
No fim das contas, afirma, o importante é que um sonho não inviabilize o outro e o lugar de mãe também é na Olimpíada se ela assim desejar. “Claro que tem um período da amamentação, da adequação do sono, que garante a saúde e previne a lesão. Tem a divisão entre dar atenção ao bebê e a demanda que o treino exige. Então a participação do parceiro ou da parceira é importante. É um contexto grande, mas absolutamente viável se houver apoio.”