Demonstrações políticas em eventos esportivos quase sempre são desestimuladas ou proibidas por parte dos seus organizadores. O Comitê Olímpico Internacional é uma das entidades, aliás, que acreditam que a política não se mistura com o esporte, embora já tenha afrouxado as regras a partir dos Jogos de Tóquio, em 2021. Ainda assim, ao longo das últimas décadas, vários atletas usaram gramados, pistas e quadras para se posicionarem contra racismo, homofobia, desrespeito aos direitos humanos e injustiças sociais.
“Não vou me levantar para mostrar orgulho a uma bandeira de um país que oprime negros e negras.”
Colin Kaepernick
A seguir, relembramos nove momentos em que o esporte esteve de mãos dadas com grandes causas humanitárias.
Jesse Owens e a conquista histórica na Alemanha nazista (1936)
Jesse Owens Foto: Getty Images
Nascido no Alabama e neto de escravizados, o estadunidense foi recebido friamente ao chegar à Alemanha nazista para participar dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Sua ida ao evento quase não aconteceu. Owens havia sido aconselhado por grupos ligados ao movimento de direitos civis a boicotá-lo. Os anfitriões não tinham poupado esforços para transformar a competição em uma grande propaganda da ideologia nazista, que pregava a supremacia da raça ariana.
Mas o que Adolf Hitler e o mundo assistiram foi o triunfo de um atleta negro. Em Berlim, Owens se tornou o primeiro esportista a conquistar quatro medalhas de ouro em uma só Olimpíada. Ele ganhou os 100 e os 200 m, além do revezamento 4×100 e o salto em distância, com impressionantes 8,06 m, marca que durou 25 anos para ser superada.
Apesar da glória olímpica, o feito do atleta não foi reconhecido pelo então presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. Em seu retorno, Owens foi esnobado pelo mandatário. Depois dos Jogos Olímpicos, ele teve que aceitar diversos empregos para garantir o sustento de sua família. Somente quatro décadas mais tarde, recebeu do presidente Gerald Ford a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior honraria dada a um civil nos Estados Unidos.
Věra Čáslavská e defesa da democracia (1968)
Věra Čáslavská Foto: Getty Images
Depois de conquistar três ouros nos Jogos de Tóquio, em 1964, a ginasta da extinta Tchecoslováquia era presença mais do que aguardada nas Olimpíadas da Cidade do México, quatro anos depois. Mas muita coisa havia mudado na vida de Věra Čáslavská, uma espécie de Simone Biles da época.
Preocupada com a situação de seu país, que vivia sob a interferência política da então União Soviética, a ginasta assinou o manifesto Duas mil palavras, juntando-se a outras vozes que clamavam por mais liberdades democráticas. Moscou respondeu com o envio de tanques à Tchecoslováquia, esmagando qualquer possibilidade de mudança no país. Temendo pela vida, a ginasta fugiu para o campo e terminou sua preparação para a Olimpíada se exercitando em galhos de árvores, transformando troncos em traves de equilíbrio. Na última hora, conseguiu permissão para ir ao México.
Lá conquistou mais quatro medalhas de ouro, além de duas de prata. No solo, dividiu o primeiro lugar com Larissa Petrik, da União Soviética. Ao ouvir o hino nacional soviético no pódio, a ginasta tcheca baixou a cabeça e desviou o olhar da bandeira.
A atitude e a recusa em retirar a assinatura do manifesto pró-democracia fizeram com que Čáslavská fosse banida da prática esportiva por muitos anos. Mas ela nunca abandonou a ginástica. Em 1989, foi nomeada conselheira para questões esportivas do então presidente da Tchecoslováquia, Vaclav Havel, um dos líderes do movimento que depôs o governo comunista de seu país. Também foi membro do Comitê Olímpico Internacional de 1995 a 2001. Até sua morte, em 2016, ela se manteve crítica ao governo russo e foi uma voz incansável em defesa da democracia.
Tommie Smith e John Carlos na luta por direitos civis (1968)
Tommie Smith (centro) e John Carlos Foto: Getty Images
Também durante os Jogos Olímpicos na Cidade do México (1968), Tommie Smith ergueu o braço direito enquanto ouvia a execução do hino dos EUA, depois de conquistar a medalha de ouro nos 200 m rasos. Atrás dele, o medalhista de bronze John Carlos levantou o braço esquerdo, acompanhando o gesto do amigo e colega de equipe.
A imagem desses atletas negros estadunidenses, usando luvas pretas e o punho cerrado, remetia à saudação do Black Power, movimento surgido nos Estados Unidos durante as grandes mobilizações nos anos 1960 por igualdade de direitos civis.
Na época, muitos atletas negros, como Muhammad Ali, alertavam sobre o racismo, falando abertamente sobre como era viver num país com segregação racial.
A glória de Smith e Carlos, no entanto, durou pouco. Ao voltar para casa, foram excluídos da equipe de atletismo dos Estados Unidos, perderam verbas de patrocínio e foram transformados em párias. Só foram reabilitados anos mais tarde. Em 2005, ganharam uma estátua que reproduz o gesto histórico na Universidade de San José, onde treinavam. Um ano depois, a dupla foi recebida pelo então presidente Barack Obama.
Colin Kaepernick e o protesto durante o hino nacional estadunidense (2016)
Colin Kaepernick Foto: Getty Images
O ex-jogador do San Francisco 49ers brilhou durante várias temporadas na NFL (a liga de futebol americano). Até que em 2016, Colin Kaepernick se ajoelhou durante a execução do hino dos Estados Unidos, que precede os jogos. Foi a forma que o quarterback encontrou para protestar contra as injustiças sociais, especialmente as mortes de afrodescendentes pela polícia.
“Não vou me levantar para mostrar orgulho a uma bandeira de um país que oprime negros e negras. Para mim, isso é maior do que o futebol e seria egoísta eu ignorar essa situação”, justificou. O gesto do atleta, saudado como o Muhammad Ali da nova geração, logo foi seguido por outros companheiros, a contragosto dos proprietários de equipes da NFL. O ex-presidente Donald Trump chegou a ironizar o atleta, dizendo que Kaepernick “deveria encontrar um outro país que fosse melhor para ele”.
Ao final da temporada de 2016, o contrato do quarterback com a equipe da Califórnia chegou ao fim e ele nunca mais encontrou espaço para jogar em outra equipe.
Após a morte de George Floyd, assassinado durante uma abordagem pela polícia de Minneapolis, em 2020, e o crescimento do Black Lives Matter, Kaepernick se transformou em inspiração para outros colegas. Atletas de todo mundo e de modalidades como basquete, futebol, F1 e rúgbi passaram a reproduzir o gesto de ficar de joelho em silêncio antes do início dos jogos, inspirando atletas como Vini Jr. e Lewis Hamilton.
Lewis Hamilton e o ativismo em meio ao Black Lives Matter (2020)
Lewis Hamilton Foto: Getty Images
Diferentemente da maioria de seus colegas, o primeiro piloto negro da F1 não se esquiva de falar sobre temas que não são ligados ao esporte. Nada escapa do radar de Lewis Hamilton, que se posiciona sobre temas como meio ambiente, direitos LGBTQIA+, equidade de gênero e diversidade.
Quando o assunto é combate ao racismo, o heptacampeão se coloca na linha de frente. Em setembro de 2020, no Grande Prêmio da Toscana, o piloto inglês protestou contra o assassinato de Breonna Taylor, morta por policiais dentro de seu apartamento em Louisville, Kentucky (EUA). No pódio, de cabeça baixa, vestiu uma camiseta pedindo punição aos assassinos da jovem. “Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor”, dizia a mensagem. Quando a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) ameaçou investigar o episódio como uma violação do regulamento da entidade, Hamilton prometeu não se calar.
No mesmo ano, os protestos que sacudiram várias cidades do mundo após o assassinato de George Floyd também contaram com o forte apoio do heptacampeão, que inclusive participou de manifestações em Londres.
Ao conquistar o sétimo título na F1, em 2020, Hamilton contou que o movimento Black Lives Matter foi fundamental para que triunfasse. A luta pelo fim das injustiças raciais motivou o piloto a chegar em primeiro lugar ao final das corridas daquele ano, revelou. Para ele, as mudanças que podem vir como resultado de suas ações são tão ou mais importantes quanto o legado que deixará como um dos maiores pilotos de todos os tempos.
Elnaz Rekabi e a recusa à obrigatoriedade do hijab (2022)
Elnaz Rekabi Foto: Getty Images
A atleta do Irã não usou o tradicional hijab (o véu usado por mulheres muçulmanas) no Campeonato Asiático de Escalada em Seul, em 2022. Em vez de aparecer com a cabeça coberta, Elnaz Rekabi usou uma faixa na testa e exibiu seus cabelos presos num rabo de cavalo.
A ausência do hijab na competição coincidiu com os protestos que se espalhavam pelo Irã após a morte de Masha Amini, depois de ser abordada pela polícia de costumes em Teerã por supostamente usar o hijab de forma inadequada. Nas imagens dos protestos que se seguiram, muitas iranianas apareciam sem o véu obrigatório, desafiando o regime dos aiatolás.
Depois de sua participação no campeonato na Coreia do Sul, Rebaki retornou ao seu país e foi recebida como uma heroína por sua atitude. No entanto, a atleta desapareceu de cena logo após sua chegada. Reapareceu 48 horas depois por meio de suas redes sociais, atribuindo a falta do hijab a um acidente e falando de uma maneira que não parecia espontânea. Seja qual for a verdade por trás do episódio, Rebaki fez história.
Harry Kane pelos direitos LGBTQIA+ (2022)
Harry Kane Foto: Getty Images
A Copa do Mundo no Catar (2022) foi marcada por polêmicas dentro e fora dos gramados. Antes de o torneio começar, o jornal The Guardian publicou que cerca de 6 mil imigrantes tinham morrido em decorrência de jornadas de trabalho desumanas para erguer os estádios de futebol do país.
Jogadores de seleções da Europa protestaram contra o desrespeito aos direitos humanos. Os alemães, por exemplo, posaram para a tradicional foto antes da partida com a mão na boca, no que pareceu ser um protesto contra a censura e a falta de liberdades individuais. A imagem não foi mostrada pela transmissão oficial.
Já Harry Kane, capitão da seleção inglesa, ensaiou entrar em campo com a braçadeira com o símbolo One Love, que traz um coração com as cores do arco-íris, em apoio à comunidade LGBTQIA+. Gays, lésbicas, bissexuais e trans são alvo de perseguição no Catar e o sexo entre homens pode ser punido com a prisão. Diante das ameaças da Fifa, de que a punição aos atletas que protestassem no mundial seria mais severa do que uma multa, Kane recuou. Em vez das cores do arco-íris, a braçadeira usada em campo trazia a mensagem No Discrimination.
No entanto, o ato mais corajoso veio da seleção do Irã, que permaneceu em silêncio durante o hino nacional do país. Antes do apito, o capitão da equipe, Ehsan Hajsafi, disse que ficaria feliz se o seu time servisse como força de mudança no Irã. Há meses, o país assistia a uma onda de protestos pela morte da jovem Masha Amini. “Temos que jogar e marcar alguns gols para o corajoso povo do Irã. O que quer que a gente conquiste é deles. Temos que lutar”, disse o atleta.
Ons Jabeur e o apoio aos palestinos de Gaza (2023)
A tenista tunisiana, que foi a primeira mulher árabe a chegar à final de um Grand Slam, em 2022, deu um depoimento emocionado no ano passado sobre as vítimas em Gaza nas finais da WTA (Associação Feminina de Tênis), disputada em Cancún, no México. Ainda em quadra, após vencer a tcheca Markéta Vondroušová, Ons Jabeur disse que doaria parte do prêmio em dinheiro para ajudar os palestinos. “A situação no mundo não me deixa feliz”, disse, tentando conter as lágrimas. “É muito duro ver crianças e bebês morrendo todos os dias. É de partir o coração.”
A tenista, que é embaixadora do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, também manifestou apoio à criação do estado independente da Palestina e pediu paz na região em suas redes sociais. Não demorou muito para a Federação Israelense de Tênis formalizar uma queixa contra a tunisiana junto à WTA. Jabeur parece não ter se intimidado com a pressão. Em entrevistas durante o torneio de Roland Garros, em junho, voltou ao assunto. Disse ficar triste e revoltada com o silêncio de alguns países e a falta de ação para que o conflito chegue ao fim.
Vini Jr. e a luta contra ataques racistas (2024)
Vini Jr. Foto: Getty Images
Vinícius Júnior tem sido vítima de episódios racistas desde que passou a atuar como atacante do Real Madrid, na Espanha, em 2018. As agressões incluíram a imagem de um boneco inflável com a camisa do atacante enforcado numa ponte de Madri, entre cerca de 20 episódios.
Em um dos mais emblemáticos, no jogo entre Valencia e Real Madrid, em maio do ano passado, Vini Jr. foi hostilizado pela torcida do time adversário após reclamar com o juiz sobre um lance de jogo. O atacante foi até o árbitro e apontou de onde vinham as ofensas racistas. Uma confusão se formou, com jogadores puxando o brasileiro para longe da torcida do time adversário. Minutos depois, após outro lance do jogo, o goleiro do Valencia partiu para cima de Vini. No meio do empurra-empurra, o jogador Hugo Duro, da equipe adversária, deu um mata-leão no brasileiro. Ao tentar se livrar, a mão dele atingiu o rosto do adversário. O árbitro expulsou Vini. Ele, que era a vítima, foi tratado como vilão.
Em 2024, ele voltou a jogar contra o Valencia no mesmo estádio e fez os dois gols que garantiram o empate do Real Madrid. Comemorou com o punho cerrado, diante da torcida adversária, repetindo um gesto de resistência, assim como fizeram no passado Reinaldo, ex-jogador do Atlético Mineiro, e Sócrates, no Corinthians, na luta contra a Ditadura no Brasil.
Eleito recentemente o melhor jogador da Champions League e um forte candidato a levar a Bola de Ouro como o melhor do mundo em 2024, Vini tem mais um motivo para comemorar. Sua luta rendeu frutos: em decisão histórica, a Justiça da Espanha condenou em junho os três torcedores do Valencia que o atacaram com insultos racistas em 2023 a oito meses de prisão. “Muitos pediram que eu ignorasse, outros tantos disseram que minha luta era em vão e que eu deveria apenas jogar futebol. Mas, como sempre disse, não sou vítima de racismo. Eu sou algoz de racistas. Essa primeira condenação penal da história da Espanha não é por mim. É por todos os pretos”, escreveu o brasileiro em suas redes sociais.